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O corpo de Samia repousava sobre um leito de flores, meticulosamente arranjado pelas criadas, cujas mãos habilidosas conferiam um toque de cores vibrantes e detalhes requintados. No entanto, mesmo com o esmero dedicado à preparação, seu rosto pálido e cadavérico não conseguia escapar da inescapável evidência de sua morte. Uma vez mais, uma mulher de Riad sucumbira, deixando-o imerso em um véu de mistério e desconfiança. Cada olhar discrepante e cada palavra que ressoasse de maneira desafinada se tornavam motivos para suspeita, e Riad percebia claramente a trama do assassino, urdida para semear desconfiança em seu reino.

Embora não mantivesse uma proximidade íntima com Samia, a perda repetitiva de pessoas próximas estava corroendo Riad. A sensação de perder o controle, de ver as rédeas de seu sultanato e palácio escorregando de suas mãos, crescia incessantemente. O retorno de sua viagem desencadeou uma avalanche de reflexões sobre a desordem que permeava sua vida. A presença de Amara o confrontara com a dolorosa verdade de que nem sempre poderia salvar a todos. A despeito de ocupar o posto mais elevado entre seu povo, sentia-se impotente à beira de um abismo.

A intrusão de um agente do caos no palácio era evidência de uma mente astuta, capaz de burlar a vigilância e adentrar o harém. Enquanto Riad acariciava os cabelos de Samia, seus dedos exploravam a frieza da pele da mulher falecida. Sinalizando para que a levassem, ela parecia adormecida, sem vestígios de agressão ou qualquer sinal de violência. Intrigado, o sultão permaneceu em silêncio, observando os raios de sol que se filtravam pelo salão, resplandecendo sobre o piso de cerâmica polida, lançando uma luz cruel sobre a sombra que pairava sobre seu reino.

— Riad — Ahmad surgiu na porta, o som de seus passos pesados inundaram o recinto — Perdoe incomodá-lo, sei que não é o momento adequado.

— Tudo bem. — Respondeu levantando-se de maneira calma, tentou não transparecer toda a sua real preocupação no rosto ao erguer o olhar na direção do grão-vizir — Não há momento inadequado quando a segurança de meu palácio está sob ataque.

Ahmad concordou com um leve aceno, mas seu semblante era inquietante. Um sorriso desagradável, revelando dentes amarelados, se desenhou em seus lábios enquanto ele colocava as mãos sobre os quadris, emanando uma aura de desconforto palpável. A relação entre o grão-vizir e o sultão nunca foi marcada pela amizade, e nenhum esforço era feito para alterar essa dinâmica. O que os unia era uma formalidade masculina, uma espécie de trégua silenciosa forjada em prol do povo que governavam. Riad, habilidoso em separar seus sentimentos pessoais do papel político que desempenhava com firmeza, compreendia que essa relação delicada era crucial para a estabilidade do reino.

— É hora de decidir. A pressão está se tornando cada vez mais insustentável. Se a paz não é uma poção para Sahid, não deveria ser para nós. Nossos aliados estão impacientes.

— Não vou atacá-los, Ahmad. Isso está fora de cogitação, não seremos os primeiros a fazer qualquer movimento. Não desencadearemos uma guerra apenas pela possibilidade remota de haver uma, isso envolve muito mais do que o interesse de qualquer aliado. Há pessoas no meio de toda essa insanidade.

O rosto de Ahmad esboçou uma expressão desgostosa, suas sobrancelhas se uniram e seu olhar contrariado o fuzilou por um longo momento.

— E como pode saber se já não deram o primeiro passo? Desta vez, foi Samia. E se a próxima vítima for Jamile?

Riad bateu as mãos sobre a mesa, ressoando um ruidoso eco por toda parte de forma assustadora.

— Não gosto do que está insinuando. Minha primeira esposa está sob segurança estrita a todo instante de seu dia, Jamile é intocável.

— Não é o que a tua esposa deixa transparecer, Riad. Jamile está com medo, cada um que se aproxima pode ser o seu assassino, a tensão aumenta a cada dia neste palácio e você finge não notar. Precisamos mostrar a Jawhal Sahid que não pode brincar com a vida dos nossos...

— Já chega, Ahmad. Não temos prova alguma de que tudo isso é culpa dele, não há prova alguma de que qualquer uma das mortes tenha sido executada por um inimigo. E se há mesmo um inimigo, ele está entre nós, é um dos nossos. — Riad encarou o grão-vizir determinado — Não ouse tomar qualquer decisão que fira minhas ordens, está me ouvindo?

— Certamente. — Respondeu Ahmad Al Sananieh de punhos cerrados e maxilar trancado — Suas ordens.

Gritos vieram do corredor, as vozes pareceram se aproximar cada vez mais. A tensão entre os dois homens foi substituída pela curiosidade, viraram-se depressa para ver os guardas do palácio adentrarem no salão oval em peso.

Jamile encabeçava a confusão, seguindo à frente com seus passos calmos e caminhar ousado. A esposa tinha os seus cabelos caramelados preso em um coque elaborado, enfeitado com pequenas correntes de ouro cravejadas com esmeraldas. Os olhos amendoados e sensuais se ergueram na direção do marido, com sua desenvoltura natural, a sultana realizou um breve cumprimento ajoelhando-se no chão, e aguardou que o marido permitisse a sua aproximação.

Riad sabia o quanto a mulher poderia ser implacável.

Jamile, a sultana predestinada pelo pai desde antes de seu nascimento, foi escolhida para ser a futura esposa de Riad. A surpresa de todos foi imensa quando o jovem filho do sultão, contra todas as expectativas, ascendeu ao trono paterno. Diante dessa realidade inusitada, Riad viu-se obrigado a cumprir com as formalidades impostas, dentre elas, o casamento com Jamile. Apesar de sua beleza deslumbrante e de um olhar sedutor, ela era como um animal sem dono, manipulando sutilmente todos ao seu redor e exibindo uma superioridade implacável, aproveitando-se de sua posição privilegiada.

Por vezes, o sultão preferia ignorar essas nuances, escolhendo não confrontar situações que pudessem gerar conflitos desnecessários. Assim, determinou-se a conduzir a relação com Jamile dessa maneira, aceitando as formalidades que a posição exigia. Seu sentimento em relação a ela era desprovido de amor; consistia apenas em um respeito sincero, especialmente pelo fato de o pai de Jamile ser seu tio próximo.

A conexão entre as duas famílias sempre fora exemplar ao longo dos anos, e, decidido a preservá-la, Riad aceitou a responsabilidade que lhe cabia em relação a Jamile. No entanto, essa obrigação não lhe concedia escolha. Enquanto mantinha as aparências para cumprir seu papel como marido, o sultão encontrava-se enredado em uma trama complexa de relações, onde a cortesia exterior escondia um casamento permeado por camadas de emoções não expressas e escolhas que o destino lhe impusera. A cordialidade forçada ocultava a verdadeira natureza de uma união marcada por dilemas e destinos entrelaçados.

Honra é honra, e Riad Abdelkarin levava o conceito a sério.

— Perdoe-me, marido. — Começou ela a dizer erguendo-se do chão devagar — Não tenho a intenção de tomar muito de seu tempo.

— Não vê que estou ocupado? — Disse Riad com um olhar impaciente — Tenho certeza de que qualquer assunto que tenha a tratar possa esperar.

— Não vim a esta casa para esperar, meu sultão. É um assunto de extrema importância, preciso apenas de seu consentimento para que uma execução seja realizada.

Surpreso, Riad sacudiu a cabeça. Não era nada do que esperava, foi pego completamente desprevenido, olhou-a com suas sobrancelhas erguidas interessado.

— Execução? — Questionou Ahmad curioso — Não há nenhuma execução no palácio para hoje, minha senhora.

— É exatamente sobre isso que desejo falar — Jamile sorriu com o canto dos lábios como se dissesse trivialidades sobre o clima, virou-se na direção de um soldado no canto do salão e inclinou a cabeça levemente — Tragam-na.

Os gritos no corredor se tornaram mais ferozes, os guardas pareciam furiosos e impacientes, escoltavam a prisioneira um tanto desgostosos. Quando adentraram o salão, a jovem mulher se rebatia nos braços dos homens, com toda a sua força, tentava se soltar de suas mãos sobre seus braços expostos.

— Soltem-me! Não lhes fiz nada, nada!

Riad prendeu a respiração.

Rapidamente, passou pelo grão-vizir perplexo e caminhou até a outra ponta do salão. Jamile observou o marido passar por ela completamente alheio, sentiu-se pessoalmente ferida pela desatenção, disse algo que Riad não foi capaz de ouvir. Estava em choque, jamais imaginou ver aqueles olhos novamente em sua vida.

Amara se assossegou em espanto, o cabelo desgrenhado caindo sobre o seu rosto, quase escondendo os olhos azuis muito vivos. Sua boca abriu levemente em surpresa, dela não saíram palavras, também não esperava encontrar o seu algoz novamente, não tão cedo. Riad aproximou-se da moça, parecia quase envolvido por um transe misterioso, parou há dois passos de Amara e sorriu pela ironia.

— Amara. — murmurou baixinho, estupefato.

O rosto da garota se contorceu em reconhecimento, olhou-o nos olhos, perdida. Sentiu as bochechas queimarem, estava demasiadamente envergonhada por ser pega após a sua partida, mais uma vez capturada como se o destino os fizessem se encontrar de novo e de novo.

Uma triste ironia.

— O que está havendo? Conhece essa insolente, Riad? — Jamile cruzou os braços contra o corpo, as pulseiras emitindo um som de chocalho ao balançar junto a seus punhos — A prisioneira precisa ser punida quanto antes. Ameaçou-me publicamente na rua, é perigosa, não irá tolerar que ameacem a tua sultana sem haver qualquer tipo de punição, irá? Sou tua esposa!

Amara e Riad se entreolharam por um longo momento, o salão foi tomado pelo mais puro silêncio com aquele olhar de reconhecimento.

— Deve pedir que executem-na, sultão? — Ahmad perguntou dispondo-se a resolver o impasse.

— Não. — Respondeu Riad sem mover os olhos para longe da jovem moça parada à sua frente — Não executamos pessoas apenas porque Jamile não gosta delas. Não executamos pessoas nesta cidade nem em lugar algum.

Amara ampliou o olhar, sua expressão agora repleta de perplexidade diante da súbita revelação. O impacto da informação recém-exposta a envolveu como um vendaval, e ela se esforçava para assimilar cada detalhe. Sultão? A ideia parecia absurda, impossível. Seus olhos se dilataram ainda mais, revelando o choque que a dominava enquanto tentava processar o inimaginável. A consternação se refletia em seus gestos, uma dança incerta entre incredulidade e compreensão.

Um frio congelante percorreu seus ossos quando a ficha finalmente caiu. Ela, sem saber, tinha roubado do sultão. O temor a envolveu, mas, aos poucos, as peças começaram a se encaixar em sua mente embotada. Seus olhos encontraram os dele em um confronto silencioso, uma troca de olhares carregada de dúvida e assombro. Um turbilhão de perguntas agitava-se dentro dela, mas o receio de dirigir-lhe a palavra prendeu suas indagações em sua garganta.

Amara estava em meio a uma encruzilhada, onde o desconcerto se misturava com a incerteza do que aguardava seu futuro. O dilema silencioso se desenrolava diante dela, e a sombra do que estava por vir pairava no ar, acrescentando um tom sombrio à narrativa de sua vida já complexa.

Riad poderia estar furioso pela fuga da jovem.

— Não pode estar falando sério. — Jamile gritou enraivecida.

O sultão virou-se na direção da esposa com um olhar de repreensão. Não gostava de ter a mulher se metendo diretamente em suas decisões, já estava farto o bastante.

— Não é tua decisão, Jamile. Esta moça não oferece risco algum à segurança do palácio, tampouco a tua. — Respondeu calmamente com um sorriso nos lábios —  Já me decidi. Ela ficará.  Levem-na para o harém, vistam-na e a deem de comer. Aqui será a sua casa a partir de agora.

Alice Dubois

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