4

A abertura da caverna era quase imperceptível. Entre as colossais cadeias montanhosas que abrigavam o berço do deserto arenoso, e escondida entre espessas dunas no pé de uma montanha, uma abertura na pedra podia ser vista somente com muita atenção por olhos perspicazes. Era quase impossível ver a fresta na pedra devido à ação do tempo e do vento, que ocasionalmente movia as colinas de areia.

Parecia pouco natural, como se houvesse sido escavada pelos homens há centenas de anos. Não era surpresa, haviam pelo menos uma centena de cavernas como aquelas espalhadas por toda parte no deserto até o sul do sultanato de Abal. Além de servir como moradia aos beduínos, também serviam como proteção contra as tempestades de areia e contra o frio temeroso das noites. A noite, as temperaturas despencavam drasticamente. Era necessário se aquecer em algum lugar onde o vento cortante do deserto não acertasse o seu rosto como laminas afiadas.

No céu, as nuvens amarelas pinceladas de um laranja intimidante da tempestade de areia já começavam a se aproximar cada vez mais de Amara e Riad.

Amara observava seu captor à distância, mantendo-se desconfiada, porém um tanto aliviada. O homem havia cumprido a promessa de não infringir seu espaço pessoal, um gesto que já lhe conferia certo conforto. A jovem aprendera, através de suas idas à cidade para adquirir suprimentos, a habilidade de circular livremente disfarçada de menino, vestindo os trajes de seu pai. Nesse contexto, ela se tornava invisível aos olhares cobiçosos e perigosos dos homens, uma precaução essencial para uma jovem solteira desprotegida como ela.

Ao contrário dos outros, Riad não a encarava como um objeto de desejo. Surpreendentemente, em algumas ocasiões, ele parecia mais interessado em ouvir suas palavras do que em qualquer outra coisa, um comportamento que a desconcertava. Com o passar do tempo, Amara, ao amadurecer, transformou-se em algo semelhante a uma flor tóxica, assemelhando-se às rosas do deserto que a rodeavam. O veneno dessas rosas, percebeu ela, era uma forma de proteção contra predadores, algo necessário para florescer em um terreno árido e desafiador.

Aceitar sua natureza tornou-se inevitável, pois Amara reconhecia que não podia negar quem era, assim como a natureza seguia seu curso. No entanto, seu maior arrependimento residia em ter caído nas garras de Riad, mesmo sabendo que, se necessário, não hesitaria em roubá-lo novamente. Essa dualidade a confundia profundamente, pois, ao contrário dela, Riad aparentava ser um homem honrado.

Enquanto se recostava em um canto escuro da caverna, Amara sentia-se receosa com a proximidade, desgostando da sensação de estar aprisionada na tempestade de areia que era Riad. Era como se ambos travassem, a todo momento, uma luta silenciosa — uma batalha que Amara já sabia ter perdido, mas para a qual se recusava a se render.

— Precisaremos pernoitar aqui. Os ventos estão mais intensos do que eu imaginava. — Riad pronunciou as palavras com cuidado ao se virar na direção da jovem.

 Amara assentiu o silenciosamente, não gostava nenhum pouco da ideia. Estava longe o bastante de casa. Não tinha outra escolha a não ser pernoitar naquele espaço estreito onde o ar se tornou demasiadamente escasso, junto àquele homem desconhecido pelo qual ela mesma tentara enganar.

Nenhum dos dois estava confortável com tal situação.

— Tenho sede. — Falou ela — não me negará um pouco de água, negará?

O sultão suspirou e balançou a cabeça, consciente do cansaço que se refletia em suas mãos sujas da poeira da túnica. Sentia-se exaurido, ansiando por uma noite reparadora de sono, embora tal descanso parecesse uma perspectiva distante diante das atuais circunstâncias. Percebia a necessidade de manter uma vigilância constante sobre a mulher. Sua determinação era notória, capaz de levá-la a colocar a própria vida em risco para escapar. Riad, por sua vez, estava decidido a não permitir que ela fugisse novamente. O desafio de mantê-la sob controle era uma responsabilidade que ele aceitava, consciente de que não poderia dar margem para outra fuga.

— Tome. — murmurou, entregando o seu cantil a ela pacientemente — Tem uma ideia muito errada de minha pessoa. Creio que não estamos tão distantes de Dhafik, há muito mais água em minha terra. Porque haveria de negar-lhe algo que possua em tanta abundância?

— Mas não tem água aqui. Não neste instante — Amara respondeu bebericando um pouco que água, se deliciando a cada gole fresco — Não venho até estas terras. É longe demais das terras de meu povo. Precisa mesmo tripudiar sobre a desgraça de minha gente?

— O que quer dizer? — Questionou ele curioso inclinando-se até ela.

— A quanto tempo está distante de casa? Não há mais rios ou poços no sultanato de Sahid, os poucos que restaram, são alimentados pela água da chuva escassa.  — Amara sorriu amargamente e se encolheu — Todos estão definhando devagar desde que os seus governantes fecharam as fronteiras que levavam para longe do deserto. Não há para onde correr.

Uma avalanche de culpa assolou Riad como um relâmpago. Todas aquelas escolhas nefastas haviam sido engendradas pelo seu pai, inúmeras vidas prejudicadas pelo ego ferido de um homem que detinha o poder. A guerra entre as famílias perdurava por longos anos, e Riad estava determinado a extinguir a animosidade para permitir que todos pudessem desfrutar de uma vida respeitável e digna. A exaustão diante da crueldade desencadeada por homens que possuíam tudo era avassaladora. Ele ansiava por encerrar esse conflito insensato, mas sabia que nem todas as decisões estavam sob seu controle.

A complexidade da situação era palpável. Com habilidade, Riad se apossou do trono que pertencera a seu pai, no entanto, conquistar a confiança e lealdade de seus vizires e do grão-vizir não era tarefa fácil. O respaldo de Ahmad surgia como sua carta mais valiosa contra os rebeldes, mas angariar esse apoio era um desafio que se apresentava como um intrincado quebra-cabeça.

A pressão sobre Riad aumentava a cada instante, à medida que ele se esforçava para consolidar seu domínio. Ter capturado o trono era apenas o primeiro passo, agora ele se deparava com o desafio árduo de reverter as consequências das decisões questionáveis de seu pai.

O peso moral de guiar milhares de vidas para fora do tumulto da guerra era esmagador. Cada vítima, cada família dilacerada pelos conflitos, pesava em sua consciência como um fardo insuportável. No entanto, sua resolução permanecia inabalável; ele estava disposto a enfrentar as complexidades do poder para alcançar uma paz duradoura.

Enquanto Riad se empenhava em construir uma nova era, ele compreendia que o verdadeiro desafio residia na conquista da confiança de seus conselheiros. O trono agora lhe pertencia, mas a estabilidade de seu reinado dependia da lealdade e colaboração daqueles que ocupavam posições estratégicas.

— Desculpe-me por manter as cordas tão apertadas em seus punhos. Sabe que não tive outra escolha. — desconversou o homem, respirando fundo o ar denso daquele recinto.

— Todos temos escolhas, meu senhor.  Assim como escolhi roubá-lo, assim como escolheu fazer justiça e me levar contigo, e minhas escolhas me levaram a este destino. O que não significa que não lutarei contra ele.

Riad sorriu com o canto dos lábios.

— Você não como as outras mulheres. O que há de errado com você? Não estou tentando puni-la Se a trago junto a mim, é para ter uma chance de viver dignamente. Estou salvando-lhe de uma terra tão pouco próspera que apenas te levaria à morte em um ou dois meses. — Ele argumentou.

— Eu não preciso ser salva — Falou ela, bastante ofendida — Não sou adepta da caridade. Olhe para mim. Sei me virar muito bem sozinha. Não preciso da sua pena. Não quero que tenha pena de mim. Tampouco sou digna de sua compaixão. Um pouco mais de veneno de minhas rosas do deserto e teria morrido bem onde o deixei.

— Não estava tentando me matar, tenho certeza disso. Se quisesse me matar, teria o feito desde o primeiro momento que teve a oportunidade — Riad ergueu uma sobrancelha interessado e a observou cruzar os braços contra o corpo feito uma criança mimada — Você não é de todo mal, Amara. Posso ver em seus olhos.

— E o que exatamente é capaz de ver? — Questionou ela, olhando-o incrédula — O quer de mim? Sou apenas uma desvirtuada e voltarei a meu caminho torto assim que virar as suas costas.

—  Vejo uma jovem desesperada, desamparada e inteligente, que clama silenciosamente por ajuda com seus atos. É realmente tão cabeça dura e incapaz de aceitar ajuda?

Amara respirou exasperadamente já cansada de toda aquela discursão. Não precisava de ajuda, muito menos da ajuda dele.

— Porque está tão interessado em me mudar, senhor? Não há nada de especial sobre mim. O que move o teu senso de justiça inócuo? — Ela riu — Eu não mudarei, sou assim. É o que aprendi a ser.

Riad sorriu de forma tensa. Muitas coisas o movia. A mais importante delas, era a sua honra. A honra de um guerreiro que urgia por consertar os erros de sua família, implorando por fazer com que as coisas fossem diferentes.

Ele próprio não tinha uma resposta para a pergunta da jovem mulher.

— Nunca entenderá meus motivos, talvez eu nem tenha de fato um motivo. É apenas o meu modo de me redimir com o meu passado, gostaria de ter feito mais por aqueles que um dia foram importantes para mim. — Riad suspirou erguendo as sobrancelhas, e brincando com um galho, desenhando distraído pequenos círculos no chão — Diga-me, Amara. Não tem família? Ninguém? Não há nenhum passado para se redimir, ninguém pelo qual gostaria de mudar o passado e fazer tudo diferente?

Ela apenas concordou silenciosamente. Ainda não o compreendia ao certo, refletiu por um segundo e pensou nos pais, mesmo que pudesse voltar ao passado, não poderia luta contra a morte. A única certeza inevitável.

— Todos se foram. No fim, todos estamos sozinhos.

— Essa é a questão, não precisamos estar. Gosto de me cercar de pessoas que fazem minha existência um pouco melhor, gosto de poder ser útil de algum modo. Não espero nada em troca.

Amara proferiu uma risada sonorosa, tão sonorosa quanto os ventos fortes que sacudiam os galhos e a manta que tampavam a entrada da caverna. É claro que não esperava ser retribuído, pensou ela, um homem que levasse contigo tanto ouro, jamais experimentou a fome em sua porta e o que a necessidade é capaz de fazer com a mente.

— Já me conformei com o meu destino, eu lhe disse, não preciso ser salva. Apenas faço o que preciso fazer e não olho para trás. É mais fácil ser sozinha.

— Não deverias resignar-te a tal destino. — Assegurou Riad — És tão jovem, tens toda uma vida diante de ti. Cada novo amanhecer traz consigo a oportunidade de moldar o teu próprio destino.

— Está mesmo muito empenhando em me transformar em uma boa mulher? — Sorriu ela  — Não tenho família, não tenho nada. Não é como se pudesse escolher um outro caminho.

Riad balançou a cabeça, desviando o olhar para o teto por um breve instante. Ele compreendia a postura dela, apesar de sentir irritação diante de sua teimosia e desconfiança. Reconhecia em si mesmo uma sombra dessa desconfiança, uma constante luta diária contra o destino compartilhado por todos os homens de sua linhagem. Ao longo do tempo, observara como seus antecessores se transformavam em seres cruéis e sanguinários, sedentos por poder e conquistas.

Riad aspirava ser uma exceção, acreditava que podia ser diferente, mas sabia que precisava provar isso a si mesmo, dia após dia.

— Prometo não a deixar desamparada. Quando eu retornar, garanto que proporcionarei a ti um teto para viver e comida em abundância para que nunca mais conheça a fome. Terá outro caminho, eu lhe asseguro.

Amara deslizou suavemente para o chão, envolvendo seu rosto com um lenço enquanto repousava sobre a areia granulada. Não havia planos delineados em sua mente. O futuro era uma ideia distante, nunca contemplada. Seus pensamentos se limitavam ao próximo alimento, sem preocupações além da luta pela sobrevivência diária. Sua existência parecia um grande equívoco, ecoando as palavras finais de sua mãe em seu leito de morte. Todas as manhãs, Amara se questionava sobre a persistência em continuar esse ciclo.

Desprovida de afeto, sua vida transcorreu sem descobertas além da narrativa que seu pai compartilhava em suas histórias de viagens, descrevendo terras magníficas e povos desconhecidos. O mistério que a intrigava residia no motivo que levou seu pai a se estabelecer em um lugar tão remoto. Apesar das explicações sobre o amor arrebatador que sentia pela mãe de Amara desde o primeiro olhar, a jovem nunca compreendeu como esse sentimento poderia alterar tão radicalmente a perspectiva de alguém sobre a vida.

Ansiando por experimentar a sensação de um coração batendo por outro, Amara não encontrava eco para seu desejo. Não era como sua mãe; nenhum homem parecia destinado a se apaixonar perdidamente por ela simplesmente ao posar os olhos sobre a jovem. A busca por um amor que transformasse sua existência continuava sendo um anseio não realizado.

Mas certas coisas, Amara não poderia explicar.

— Por que devo confiar em ti?

Riad olhou-a por um longo momento na escuridão. O sol já havia sumido, só lhes restara a cálida escuridão da noite e os ruídos do vento forte assobiando na pedra. Pensou sobre as mulheres de sua família, a mãe, as muitas irmãs, todas que se foram. Não estariam mortas.

— Não tenho uma resposta para esta pergunta. Não ainda. — Recolheu-se pensativo.

Riad parecia se preocupar genuinamente com tudo sobre ela. Pensar sobre isso a fez estremecer. Sacudiu a cabeça. Virou-se para o lado e fechou os olhos.

— Me acorde ao amanhecer.

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