3

Amara sentiu as cordas pinicarem a sua pele, quanto mais tentava se mover, mais o material áspero cravava em sua carne. Furiosa, emitiu um grunhido que nem sequer abalou Riad. Na verdade, Riad optou por ignorá-la por todo o seu caminho, seus grunhidos e suspiros já não lhe afetavam mais desde os cinco primeiros minutos de estrada. Aquela malfeitora perversa se mostrou muito pouco agradável como companhia viajante, apesar de não dizer nem sequer uma palavra, não parou de tentar uma fuga nem por um momento. Se rebatia, andava de má vontade e o atrasava cada vez mais, Riad já começava a sentir a sua paciência se esvair depressa.

Não possuía tato para com as mulheres, tampouco paciência, nenhuma mulher antes havia lhe desafiado daquela maneira tão desgostosa. Estava mais que acostumado a viver cercado de mulheres prontas para satisfazer a cada uma de suas vontades, de concubinas, criadas e esposas, o seu círculo privado era feito. Era sempre tratado com respeito e muito decoro, a sua posição parecia impelir às mulheres ao seu redor de permanecerem afastadas dele, talvez estivessem habituadas aos castigos impostos pelo pai no palácio em razão da desobediência, que jamais foi tolerada.

Certa vez, viu uma das esposas do pai ter as mãos decepadas, simplesmente porque perdera um brinco de ouro presenteado pelo marido. A visão ainda lhe causava arrepios, impediram-na de receber qualquer tratamento, a pobre sangrou até a morte em um quarto escuro onde foi trancafiada até o seu último suspiro. A barbárie deixava Riad enojado, a crueldade do pai era sua grande marca, impunha respeito pelo medo, e ainda nos dias presentes ainda o temiam por sua crueldade exacerbada. Riad sempre se questionou de onde vinha tanto ódio, o antigo sultão tinha o seu trono embebido em sangue de centenas de pessoas; muitas delas, inocentes.

E a visão da mulher de mãos decepadas nem era sua pior lembrança envolvendo o pai, que sem um pingo de compaixão, matou até mesmo alguns de seus filhos por capricho. Dizia que os mais fracos precisavam ser varridos de sua linhagem, não suportaria que carregassem o seu nome pelo mundo como covardes privilegiados. Riad, como o bom e obediente filho, nunca interferiu, sabia bem que qualquer protesto também lhe levaria até uma dolorosa morte solitária pelas mãos de sua própria gente. Traições eram os piores dos pecados.

Aprendeu a ser forte de um jeito ou de outro. Separado de sua mãe ainda muito novo, jamais voltou a vê-la. Assim como os irmãos, foram destinados aos melhores mestres da guerra, cresceu para a selvageria, aprendeu a matar e a sobreviver. Não se orgulhava de nada disso, talvez por isso escolheu deixar o sultanato, por algum tempo, foi feliz longe de sua terra. E agora, lá estava de volta, na mais alta posição que sonhou jamais  em alcançar, comandando todo o império de seu sobrenome mesmo contra a sua vontade, sendo parte daquilo que odiou sempre .

Sob o lombo de seu cavalo a cruzar o deserto, sentia-se pouco importante, e aquela sensação era um alívio, a única vida em sua responsabilidade era a de sua jovem e sedutora prisioneira. Ali, Riad não era ninguém, e estava satisfeito em não ser. Por algum tempo, permitiu-se viver na mentira criada por sua mente de que não haveriam problemas se ali continuasse. Olhou para a jovem, que naquele instante parecia tentar roer a corda ao redor de seus pulsos com os próprios dentes.

De onde havia surgido aquele ser demoníaco desprovido de medo? Que tipo de mulher era capaz de erguer a voz para um homem sem ressalva? Estava intrigado. Amara subitamente parou de andar e permitiu-se ser arrastada pelo cavalo na areia áspera, Riad sacudiu a cabeça farto e parou o corcel de imediato por medo de machucá-la.

— O que pensa estar fazendo? — Questionou ele estreitando os olhos na direção da mulher.

Ela ergueu o seu rosto na direção do homem, seu cabelo desgrenhado sacudindo com o vento forte que atingia o seu rosto.

— Uma tempestade de areia se aproxima.  Precisamos nos proteger.

— Não pararemos. Cubra o rosto, seguiremos pela tempestade do mesmo modo. Não estou disposto a desperdiçar meu tempo.

— Escute-me, senhor. Não terá visibilidade, as dunas se moverão depressa e nos perderemos para sempre.

— Conheço bem o deserto. Não preciso de sua opinião.

Furiosa, Amara agarrou a corda que a prendia em seu raptor e a puxou com força, fazendo-o guinar para trás desavisado. Apesar de um homem grande e musculoso, Riad quase vacilou, um segundo a mais e teria despencado de seu cavalo.

— Precisamos nos proteger — Insistiu ela revirando os olhos — Não falo apenas de nós, mas falo pelo teu animal. Ou pretende pedir ao cavalo que também cubra o rosto? Tenho certeza de que ele entenderá perfeitamente.

— Há uma caverna na terra a talvez há uns dez minutos de caminhada, não sei ao certo talvez possa estar errada. — Amara ergueu o seu rosto na direção indicada — Está escondida entre as pedras, parcialmente coberta pela areia.

— Então acho melhor apressarmos o passo. — Falou Riad.

Amara puxou a corda um pouco mais em protesto.

— Espere.

O sultão então se virou a direção da mulher olhando-a, confuso.

— O que é agora?

Ela sacudiu a cabeça devagar. Pareceu ligeiramente envergonhada.

— Preciso fazer minhas necessidades. Talvez eu tenha tomado água demais antes de partirmos. Desculpe-me.

Riad respirou exasperadamente.

— E o que a impede de fazer o que tem de concretizar aqui mesmo?

Amara torceu o nariz, enojada. Não conseguiu crer no que o homem a sugeriu naquele instante, teve vontade de gritar.

— Eu não acredito que está mesmo me fazendo esta pergunta. Não posso urinar com você me olhando a todo momento. Isso é bem pouco cordial de sua parte.

Ele sorriu com o canto dos lábios. É claro que se viraria na hora em que fosse necessário. Riad não estava nem um pouco interessado em ver uma mulher em uma situação tão constrangedora como tal. Afinal de contas, um pouco de privacidade era necessário. Entendia muito bem. Contudo, não podia permitir que Amara fosse para muito longe, a prisioneira precisava estar por perto de forma que fosse possível manter os olhos sobre ela, certamente poderia ser somente um de seus muitos truques.

— Vou desamarrá-la, mas não tente correr. Se o fizer, eu a pegarei de uma forma ou de outra.

A garota assentiu com o seu olhar inocente, os olhos azuis muito calmos brilharam em sua direção como duas pedras preciosas. Não se permitiu afetar pelo rosto delicado e olhos hipnotizantes de menina, era como uma feiticeira perigosa presa em um corpo escultural, dotada de um rosto inofensivo e imaculado. Uma tentação perigosa escondida por detrás de olhos cor de mar. Aproximou-se devagarinho, quase como se temesse ser reduzido em cinzas por aquele olhar ingênuo.

Riad agarrou a faca de sua cintura e cortou o nó que apertava as mãos unidas da jovem. Assim que o pedaço de corda trançada caiu sobre a areia, Amara girou os punhos aliviada. Foi complicado não se compadecer pela situação da jovem, as marcas avermelhadas na pele bronzeada pareciam demasiadamente fundas, sangue brotava em pequenas fissuras. Sentiu-se culpado, prometeu a si mesmo que jamais torturaria uma mulher como parecia ser prazeroso para o pai, que o fazia apenas guiado pelo tédio leviano. Foi arrastado para os terríveis acontecimentos que presenciara, lembrou mais uma vez da mulher de mãos decepadas a gritar insana, sentiu um calafrio correr pela espinha. Sacudiu a cabeça de um lado para o outro, Amara não tinha nada de inofensiva, fez o que tinha de fazer para contê-la, tentou convencer a si mesmo disso repetidas vezes e enquanto afastava os pensamentos sombrios de sua infância.

— Obrigada. — Falou ela — Já não podia sentir os meus próprios dedos.

Riad ergueu a sobrancelha.

— Sabe melhor do que ninguém que não posso confiar em ti. Caso contrário, não seria necessário estar presa a mim.

Ela deu de ombros como se não se importasse nem um pouco com a observação vaga de seu raptor. Amara compreendia perfeitamente o ponto do homem. Essa sempre foi natureza. Sobreviveu durante tanto tempo sozinha desde a morte do pai.  O que poderia esperar de uma jovem faminta que sozinha havia cavado o túmulo próprio genitor em sua terra? A fome veio, com ela a sede e a loucura. Precisou seguir sozinha, ou morreria sentada em um canto escuro do casebre, definhando depressa. Sentia-se sozinha. Não tinha ninguém. Aprendeu a não confiar em ninguém. Nunca aprendeu a ter amigos, mas aprendeu a não precisar dos outros.

O que o estranho entenderia sobre isso?

Ela mesma não confiava em si na maior parte do tempo. Nos nossos dias silenciosos em que só o som da areia se movendo nas pedras era o que enchia os cômodos de sua casa, Amara se dava conta de que por dias nem sequer ouvia a própria voz. Sendo sincera, nos últimos momentos já havia trocado mais palavras com um estranho do que já trocara por toda a sua vida.

Suspirou. Virou de costas e fez o seu caminho para longe de Riad.

— Vire-se, meu Senhor. Não espera mesmo que eu faça o que tenho de fazer sobre os seus olhares curiosos, não é mesmo?

 Ele sorriu com os cantos dos lábios em divertimento.

— Certamente. — Respondeu já se virando na direção de seu Corcel, acariciando o lombo do animal.

Ouviu os passos da jovem se distanciarem devagar. Não se preocupou nos primeiros segundos, mas em pouco tempo, os passos se tornaram demasiadamente apressados. Estranhou. Virou-se depressa a tempo de ver a jovem correndo feito louca pelo deserto. A cada passo, vacilava e caia. Os dedos afundavam completamente entre a areia e o seu lenço sacudia com o vento.

Praguejou furioso pela tolice, mais uma vez havia se deixado levar na conversa daquela garota, coisa que pensou que voltaria jamais  a acontecer. Sempre se achou tão esperto, mas agora havia conhecido uma garota tão esperta quanto ele. Uma criminosa oportunista de olhos hipnotizantes e convincentes que o havia enganado duas vezes.

— Volte aqui! — ele berrou furioso — sabe que não tem para onde fugir, Amara.  Vou encontrá-la de qualquer modo!

Amara não recuou nem sequer por um segundo. Continuou correndo sem rumo, os braços sacudindo ao redor do corpo. Uma única oportunidade, não teria outra chance. Não poderia se permitir ser capturada mais uma vez, estava em pleno desespero. Correu até que os seus calcanhares parecessem ter se tornado areia.

Desceu a duna desnorteada, resfolegante, foi quando aquela mão agarrou o seu vestido pela altura do pescoço, puxando o lenço com o solavanco. Amara gritou. Em seguida, caiu feito uma fruta podre, rolou descontrolada como uma pedra na encosta, sentindo a areia debaixo de seus pés se mover para longe.

Seu perseguidor também não teve muita sorte. Ambos despencaram juntos e rolaram sem rumo, areia entrando em suas roupas, ouvidos, boca e nariz.

Em uma grande confusão de corpos, caíram sobre o chão fofo. Amara caiu sobre o homem. O rosto bem próximo ao dele. Seus corpos unidos, cobertos por uma fina camada de areia, se entreolharam por um breve segundo em reconhecimento. Amara praguejou. Moveu-se para longe profundamente envergonhada. Cuspiu um punhado de areia seca e sacudiu o cabelo desgrenhado.

Imediatamente, Riad saltou sobre a moça e a prendeu com os seus braços musculosos mais uma vez contra o chão. Seu corpo pesado sobre o dela de forma ameaçadora, seus olhos castanhos procurando os olhos de Amara.  As bochechas da jovem envergonhada foram tomadas pelo rubor. Sua tentativa de fuga falha havia se tornado um grande desastre pelo qual teria de conviver.

 — Eu disse que a alcançaria. — Sorriu ele satisfeito — Não pode mais fugir de mim.

Ela bufou furiosa.

— Eu tinha de tentar. Não é mesmo? — Sacudiu a cabeça tentando fingir algum orgulho.

O sultão ergueu-se sob os seus calcanhares e puxou a garota do chão com um solavanco. Desconcertada, a moça ajeitou o vestido. Pareceu extremamente perturbada pelo toque firme e repentino do homem. Estremeceu. Riad fingiu não notar. Tentou não imaginar coisas, quanto menos pensasse sobre o assunto, melhor seria.

— Vamos voltar. Não temos muito tempo até a caverna. Como pode pensar que fugiria de mim assim tão facilmente? — Zombou ele sacudindo a cabeça — é mesmo uma grande estúpida.

— Não seja assim tão confiante, meu senhor. Sou tão estúpida que fui capaz de enganá-lo por duas vezes, quer mesmo apostar que haverá outra chance?

Riad soltou o ar devagar pelas narinas um tanto cansado, não estava nem um pouco à vontade em responder ao desaforo da jovem. Nas mãos de um outro homem, teria levado uma grande surra, era sortuda somente por não ter ideia alguma da verdadeira identidade de seu raptor. Era honrado, pouco inclinado às terríveis crueldades executadas por sua família, não a machucaria intencionalmente jamais.

— Meus homens estão espalhados pelo deserto, provavelmente a minha espera — Alertou ele — Nenhum deles seria tão cordial quanto a mim. Entenda, Amara, por mais que não acredite, não desejo o teu mal. Enquanto estiver comigo, estará segura.

— Segura? Me arrancaste de minha casa e ainda me fala sobre segurança? Se não deseja me machucar, me permita ir embora. Prometo a você que não voltarei a roubar ou machucar forasteiros ingênuos, apenas permita-me voltar a minha terra e jamais verá o meu rosto outra vez.

— Sabe muito bem que não posso fazer isso. Não confio em tuas palavras. — ele a soltou brevemente e a empurrou para que seguisse.

— Está começando a se tornar um homem esperto — Zombou ela com um sorriso largo pouco disposta a ceder — Também não confio em ti, senhor. E para minha precaução, peço apenas que mantenha as tuas mãos longe de mim doravante.

O sultão sorriu em divertimento e ergueu as sobrancelhas frente a audácia da jovem.

— Com todo o prazer.

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