A minha mente parecia flutuar entre fragmentos, minha consciência indo e vindo até que senti sendo atraída por algo. Primeiro, uma sensação de calor. Depois, o cheiro de ervas misturado ao som suave de uma lareira crepitando. Pisquei algumas vezes, mas, mesmo a luz fraca do ambiente, ainda me parecia intensa. Meu corpo pesava, como se chumbo estivesse preso aos meus membros.
Tentei me mover, mas uma dor aguda percorreu meu flanco, fazendo-me soltar um gemido involuntário. A lembrança do frio cortante, do vento contra minha pele e da queda vertiginosa no precipício vieram em flashes. Mas tudo antes disso… era um vazio absoluto.
— Ela acordou — a voz suave de uma mulher idosa encheu o cômodo.
Meus olhos foram atraídos por um rosto gentil, enrugado pelo tempo, mas cujos olhos brilhavam com bondade. Ao lado dela, um homem de ombros largos e cabelos grisalhos me observava com uma expressão grave, mas não hostil.
— Onde… onde estou? — minha voz saiu rouca, quase irreconhecível.
A mulher sorriu com doçura, ajeitando as cobertas ao meu redor.
— Está segura, querida. Meu nome é Margaret, e esse é meu marido, Henry. Encontramos você desacordada perto do rio, machucada e congelando. Trouxemos você para cá.
Minha cabeça latejava. Tentei puxar qualquer recordação, mas o pânico se instalou quando percebi que não havia nada. Nenhum nome. Nenhuma imagem. Somente um buraco negro onde minha identidade deveria estar.
— Eu… eu não sei quem sou — minha própria voz tremia ao pronunciar as palavras.
Henry e Margaret trocaram um olhar rápido, e então ela voltou a segurar minha mão.
— Você precisa descansar, querida. Podemos conversar sobre isso depois. Por enquanto, que tal apenas escolhermos um nome? Poderia ser… Lin.
— Lin? — repeti, estranhando a forma como o nome soava em minha boca.
Margaret sorriu.
— Até que sua memória volte, precisa de um nome. E você me lembra uma flor que cresce perto do rio. Forte, mas delicada. Lin.
Eu não tinha forças para argumentar, então apenas assenti. Melhor ser Lin do que ninguém.
O tempo passou. Três anos para ser exata.
Margaret e Henry se tornaram minha família, e a vila se tornou meu lar. Trabalhei no café local, fiz amigos e criei uma rotina. Mas a inquietação nunca desapareceu. Todas as noites, sonhava com sombras, gritos e olhos dourados que me observavam na escuridão. Eu acordava com o coração disparado, mas nunca lembrava o suficiente para entender o que aqueles pesadelos significavam.
Então, havia as coisas que eu não podia explicar. Meu corpo se movia rápido demais, meus reflexos eram mais aguçados que o normal. Eu podia ouvir conversas distantes, distinguir cheiros que ninguém mais percebia. E, acima de tudo, havia minha força. Uma vez, ao tropeçar e cair, apertei o batente da porta e deixei marcas profundas na madeira.
Eu via os olhares. Henry e Margaret evitavam comentar. Mas Eva via tudo.
Eva Moreau foi minha primeira amiga na vila. Ela era energia pura, um furacão de opiniões fortes e sorrisos travessos. Nos tornamos inseparáveis.
Em uma tarde qualquer, sentadas à beira do rio, ela jogou uma pedra na água e me encarou com a cabeça inclinada.
— Você precisa sair do café. Não vai conseguir ajudar Henry e Margaret ganhando tão pouco.
Suspirei. Os problemas financeiros deles estavam piorando, e eu não podia continuar fingindo que tudo ficaria bem. As colheitas do ano não foram boas, gerando prejuízos e empréstimos que eles não conseguiam quitar.
— Mas o que mais posso fazer?
Eva sorriu como quem já tinha um plano preparado.
— Tem uma empresa na cidade vizinha, a Blackthorn Enterprises. Dizem que pagam muito bem. Você deveria tentar.
Algo dentro de mim pareceu se apertar. O nome me atingiu como um golpe invisível. Um gosto metálico surgiu na minha boca. Meus dedos instintivamente se fecharam em punhos.
— Blackthorn? — repeti, sentindo um calafrio subir pela espinha.
— Sim! Negócios, investimentos… eles dominam tudo. O dono é um magnata misterioso, um lobo solitário que raramente aparece. Mas dizem que ele é um tremendo gostoso.
Ri fraco, mas a sensação de alerta permaneceu. Não importava. Henry e Margaret precisavam da minha ajuda. E eu faria qualquer coisa para retribuir o que fizeram por mim nos últimos anos.
O prédio da Blackthorn Enterprises era imponente. Suas janelas refletiam o céu nublado, e a fachada escura transmitia poder e frieza. Eu nunca havia me sentido tão deslocada.
Enquanto esperava na recepção, uma assistente loira, usando um terninho perfeitamente cortado, veio até mim.
— Senhorita Lin, o CEO deseja entrevistá-la pessoalmente.
Meu coração acelerou. Um arrepio percorreu minha espinha, minha respiração ficou curta e minha visão periférica parecia turva.
— O próprio dono da empresa? Tem certeza?
Ela apenas assentiu e me guiou até um escritório espaçoso. Cada passo parecia pesar uma tonelada.
Quando entrei, vi um homem de costas para mim, olhando através da grande janela panorâmica. Seus longos cabelos estavam presos em uma trança firme, que caia sobre seu ombro esquerdo.
Ele se virou lentamente.
O ar pareceu ser sugado para fora da sala. O tempo congelou.
Os olhos de um âmbar-dourado cravaram-se nos meus. Uma presença avassaladora, um rosto forte, traços afiados, e um ar de algo... perigoso. Ele parecia dobrar o próprio espaço ao seu redor, como um buraco negro puxando tudo para dentro. Uma sombra escura de barba cobria seu queixo anguloso, e sua aura dominava todo o ambiente.
Eu o conhecia. Eu tinha certeza disso.
Meu coração batia descompassado. Atração e medo se misturaram de forma inexplicável. Ele também me olhava de um jeito estranho, como se tentasse lembrar de onde me conhecia.
— Seu nome. — Sua voz grave ressoou no cômodo, como um trovão contido.
Engoli em seco.
— Meu nome é Lin. Estou aqui para a entrevista.
Um longo silêncio se seguiu. Seu olhar se estreitou, analisando-me.
Então, ele sorriu. Frio. Calculado.
— Sente-se, senhorita Lin. Isso será interessante.
O som da sua voz reverberou dentro de mim. Um choque elétrico percorreu minha espinha.
Eu já havia ouvido aquela voz antes. Um arrepio percorreu minha espinha, me causando calafrios. Onde eu havia ouvido aquela voz?
DamianO escritório estava silencioso, exceto pelo tique-taque distante do relógio e pelo zumbido discreto do ar-condicionado. O ar carregava um peso que eu não sabia explicar, como se algo estivesse fora do lugar, errado de uma maneira que eu não conseguia identificar.Quando a porta se abriu, me mantive de costas, ouvindo com atenção os passos suaves sobre o carpete. Virei o rosto, meu olhar vagando de forma automática, sem realmente me importar com a candidata da vez. Mas assim que meus olhos pousaram nela, algo dentro de mim se agitou.A mulher à minha frente tinha uma presença inquietante. Não por algo óbvio. Não era sua postura, ainda que ela mantivesse o queixo erguido, tentando parecer confiante, nem sua aparência, por mais que houvesse algo nela que me atraísse de maneira absurda. Era outra coisa que não conseguia explicar com palavras.Seus olhos verdes encontraram os meus, e por um breve instante, senti um choque percorrer minha espinha. Um alerta primitivo, como se um frag
LinO escritório parecia menor, como se o ar estivesse sendo lentamente drenado dali. Meu peito subia e descia em um ritmo que eu não conseguia controlar, e minhas mãos estavam frias, mesmo que o ambiente não fosse gelado. Não era apenas o escritório… era ele.Damian Blackthorn.Sentada naquela cadeira de couro impecável, eu sentia o olhar dele queimando sobre mim como uma lâmina afiada, analisando cada detalhe, esperando qualquer sinal de fraqueza. Mas eu não cederia. Não diante dele.A entrevista deveria ter terminado há muito tempo. Qualquer outro candidato já teria sido dispensado. Mas Damian parecia se divertir prolongando aquilo. Cada pergunta carregava um tom afiado, cada provocação trazia uma faísca de algo que eu não conseguia decifrar.Ele me estudava. Testava. E eu não sabia por quê.— Então, senhorita Lin — ele quebrou o silêncio, tamborilando os dedos na mesa. O som ritmado ecoava pelo ambiente, marcando cada segundo de tensão. — Além de nunca desistir, que outras qualida
O vento cortante da noite balançava as cortinas finas da janela do quarto, mas o frio que percorria minha pele vinha de dentro. Meus dedos apertavam a borda da mesa da cozinha, meus olhos fixos nos papéis espalhados à minha frente. Os números eram cruéis. O dinheiro que tínhamos não seria suficiente para pagar a dívida.Dois dias haviam se passado desde a visita dos homens do banco. Dois dias que passaram como uma névoa de preocupação e incerteza. Henry e Margaret tentavam agir como se tudo estivesse sob controle, mas eu via as olheiras sob seus olhos, os sussurros abafados quando pensavam que eu não estava ouvindo.Eles estavam assustados.E eu não sabia o que fazer para lhes dar o mínimo de paz.— Isso é um absurdo. — A voz de Eva me trouxe de volta à realidade. Ela puxou uma das cadeiras e se jogou nela, cruzando os braços. — Eles não podem simplesmente tomar a casa do nada!— Eles podem, sim. — Minha voz saiu baixa, cansada. Tudo que Henry e Margaret construíram poderia desaparece
O vento cortante da noite chicoteava minha pele enquanto eu caminhava de volta para casa. Mas o frio que percorria minha espinha tinha outro motivo. Meu peito pesava, como se um nó invisível apertasse cada vez mais meus pulmões."Case-se comigo."As palavras de Damian ainda ecoavam na minha mente. Ele as disse como se estivesse me oferecendo um contrato qualquer, como se minha vida fosse um detalhe insignificante diante de seus negócios. Não havia emoção, hesitação ou um traço sequer de humanidade na proposta. Apenas uma certeza cruel: eu não tinha escolha, apenas aceitar.O peso da decisão me esmagava. Eu sabia que ceder significava renunciar a qualquer chance de liberdade. Mas recusar… significava condenar Henry e Margaret.Ao me aproximar da casa, parei ao ouvir as vozes abafadas de meus avós. Eles raramente discutiam, mas o desespero nos tons baixos e trêmulos era inconfundível. Parei diante da porta, me mantendo em silêncio.— Não podemos contar para ela, Henry. — A voz de Margar
O silêncio daquela casa era ensurdecedor. Desde que me mudei para a mansão Blackthorn, tudo parecia sufocante, como se eu estivesse presa em um lugar sem vida. Era como se as paredes quisessem me lembrar constantemente de que eu não pertencia ali. Damian passava o tempo todo fora, saindo antes do amanhecer e voltando tarde da noite, evitando qualquer tipo de contato. Mesmo que tivéssemos assinado um contrato de casamento, éramos estranhos dividindo o mesmo espaço.No primeiro dia, tentei ignorar essa realidade. Me ocupei explorando os cômodos vazios e impessoais, buscando qualquer vestígio de que Damian realmente vivia ali. Mas não havia nada. Somente um ambiente impecável, sem qualquer rastro de personalidade. O lugar inteiro parecia um museu abandonado, onde ninguém deixava marcas de sua presença.No segundo dia, liguei para Henry e Margaret, sentindo um nó no estômago ao ouvir suas vozes. Eles pareciam aliviados ao saber que eu estava bem e empolgados com a promessa de que logo a d
Capítulo 8: Entre Quatro ParedesO som da chuva contra as janelas ecoava pela mansão silenciosa, cada gota estalando no vidro como um sussurro persistente. O vento uivava lá fora, sacudindo as árvores e fazendo as janelas vibrarem levemente. A tempestade havia começado há algumas horas, mas parecia que ficaria mais intensa com o passar da noite.A casa estava mergulhada em escuridão, exceto pela luz amarelada de um abajur no canto da sala. Eu estava encolhida no sofá, abraçando minhas pernas, tentando ignorar o peso que aquela noite trazia e a sensação sufocante de solidão que parecia se intensificar a cada trovão que cortava o céu. Havia algo de inquietante naquela tempestade, algo que mexia com meu subconsciente.Me deitei no sofá, sem coragem para subir para o quarto. Fechei os olhos, respirando fundo, tentando encontrar um pouco de paz, mas assim que o sono começou a me envolver, ele trouxe consigo imagens que não pareciam fazer sentido.Chamas. Sombras distorcidas. E olhos doura
A ideia parecia absurda desde o começo. Um jantar especial para Damian? Para um homem que me tratava como uma sombra dentro daquela casa? Eu não fazia ideia do que Eva queria provar com essa ideia maluca, mas, ali estava eu, diante do fogão, mexendo em uma panela com um olhar perdido.— Você vai acabar queimando isso. — A voz divertida de Eva me fez revirar os olhos.— Talvez essa seja a minha intenção. — Suspirei, sentindo o calor do vapor subir pelo meu rosto.Ela se aproximou, pegando uma faca e começando a cortar alguns vegetais.— Lin, eu sei que ele é um idiota. Mas algo me diz que ele não é completamente um caso perdido.— Acho que ele faz questão de ser um caso perdido. — Eva me olhou por um instante antes de dar de ombros.— Talvez. Mas a única forma de descobrir é tentando. E você sabe que quer tentar.Eu não respondi. O problema era que ela estava certa. Desde o momento em que Damian me cobriu com aquela manta, um conflito crescia dentro de mim. Ele passava o tempo todo fin
O ar parecia mais pesado desde o jantar da noite anterior. Havia algo diferente no jeito que Damian me olhava, e eu tinha certeza de que não era imaginação minha. Ele continuava mantendo a distância, se refugiando em sua frieza habitual, mas eu percebia os detalhes. A maneira como seus olhos dourados pousavam em mim quando ele achava que eu não estava olhando. Como sua postura ficava rígida quando eu passava por perto.Eu não sabia dizer o que aquilo significava. Mas, se Damian Blackthorn acreditava que poderia esconder algo de mim, estava muito enganado.Naquela manhã, a casa estava silenciosa como sempre. O café da manhã foi solitário, como de costume, mas enquanto mexia no chá quente entre os dedos, senti aquela presença familiar. Levantei os olhos e, como esperado, Damian estava parado próximo à porta da cozinha, observando-me. Seus braços estavam cruzados sobre o peito, e as tranças caíam sobre seu ombro, dando a ele um ar perigosamente despreocupado.Ele me olhava de um jeito di