A expressão era sempre ferina, ela estava constantemente mal-humorada. Sua voz sempre afiada para me atingir. Definitivamente, eu era uma impostora. Eles não estavam felizes comigo ali.
Um eco da série de choques que eu sentira naquele dia provocou-me tremores por todo o corpo, mas ao mesmo tempo, minha ira rebelde também me invadiu e ergui meu queixo para dizer:—Não fiz de propósito.O silêncio impregnou o ambiente enquanto os olhos duros estavam fixos nos meus:—Não seja tão hipócrita a ponto de questionar minha palavra com respeito a isso, ou de querer discuti-la. Com o passado que carrega, duvido! Agora vai! Continue seu trabalho. Depois lave a louça e só então terá direito de comer o que sobrou.Eu assenti para ela sem discutir e pisando duro, voltei a fazer o meu trabalho.Allah! Dai-me forças!Amor era um sentimento do qual eu nem mais me lembrava. Eu só via ódio nos olhos deles. Acho que o único que aparentava gostar de mim um pouco, mas não podia transparecer, era meu tio, irmão de meu pai. E acredito que isso se deva ao fato de eu ter o seu sangue.Tirei toda a mesa de cabeça baixa. Fazendo o máximo possível para não ser notada. Meus pés estavam cheios de bolhas. Sempre andei com sapatos de saltos altos. Mas, na minha antiga vida de princesa, eu andava como se levitasse, agora eu me sentia como se eu marchasse.Acabou meu nariz em pé, acabou meu desejo por joias, acabou meu desejo de qualquer outra coisa que não fosse o carinho, o amor das pessoas por mim. Eu queria conquistá-las, mas eu não sabia como. Quando coloquei o vestido, foi apenas para lembrar um pouco de tudo que eu tinha nas mãos e perdi.Lembrei-me de um verso que eu vivia de Khalil Gibran:"Aprendi o silêncio com os faladores, a tolerância com os intolerantes, a bondade com os maldosos..." Essa agora era o meu novo "eu". Totalmente mudada.Comecei a lavar louça, mas quando via a água correndo, me deu vontade de usar o banheiro. Fechei a torneira e passei pela sala me esgueirando pelos cantos, de cabeça baixa. Alcancei o banheiro e tão logo fechei a porta atrás de mim, fiz xixi.Ahhhhhhhh! Alívio....Quando finalizei me limpei e lavei as mãos. Ainda pensativa, abri a porta.Allah! Levei um susto, quando dei com Samir parado em frente a minha porta no corredor, quase dei um encontrão nele.Nossos olhos se encontraram. Aquele sorriso de sempre, surgiu em seu rosto. Eu me virei, mas antes de ir, sua mão pegou meu braço como garras, a outra tampou a minha boca. Seus olhos então me olharam predadores e ele veio para cima de mim. Ele me empurrou para dentro do banheiro e tentou fechar a porta com o pé. Mas eu lutei, para que isso não acontecesse.—Não! Nã... —Eu disse quando sua mão saiu da minha boca, mas seus lábios tomaram os meus calando o meu grito.Não sei quanto tempo isso levou até que ouvir uma voz estridente:—Samir! —Era a voz de Raissa atrás de nós. Ele ficou tenso, e eu aproveitei e mordi seus lábios. Samir me soltou e a encarou com a boca suja de sangue sem fala. Ela, como ódio, olhou para mim. — Sua vadia! Sua detestável!— Essa mulher me atacou!Eu me defendi:—Mentira dele, os olhos dele sempre foram maus para mim.Ele tentou falar.— Rai...— Cala a boca! — Ela disse para ele.O grito dela e a exclamação dele chamaram a atenção de todos, pois logo o corredor se encheu de olhares curiosos vendo a cena. Raissa estava lá, vermelha, olhando para mim e para Samir com ira nos olhos.Ela voou em mim e me acertou as faces e olhando para ele gritou:—Não haverá mais casamento! Seu idiota, porco! —Esbravejou.Chorando, saiu correndo esbarrando em todos os presentes, abrindo passagem. Selima correu atrás dela.Ela acreditou em mim?Se sim, não deixaria de me odiar por eu ter provocado o desejo em seu noivo.Samir saiu de fininho e seus pais o acompanharam. Eu fitei meu tio que me olhava furioso, vermelho de raiva. Said que até agora estava na sala, se uniu para ver a confusão no corredor. Minha tia estendeu para Ali um cinto, que ele pegou com um sorriso maldoso e avançou sobre mim.—Não! —Eu gritei e tentei entrar no banheiro, mas ele me alcançou.Recebi cintadas nas pernas, nos braços. Me inclinei quando ele começou a me bater nas costas.—Pare! Não bata nela! —O som veio de trás, um som ameaçador, sentir uma pontada de medo. Em sua voz continha uma autoridade que que não poderia ser negada ou ignorada. Tanto que meu tio parou de me bater.Eu fitei o dono daquela voz. Said estava ali na porta do banheiro. Enorme, com aquela aura superior, nos encarando com o olhar duro.—Senhor Haji. —Meu tio Ali disse, instantaneamente me liberando e dando um passo atrás. Disse cuidadoso. — Melhor o senhor não se meter. Você não a conhece, não se deixe encantar por esses olhos inocentes.Said me observou em silêncio por alguns minutos. Como se me dissesse que agora eu estava nas mãos dele. Fiz o mesmo, mas suplicando com os olhos para que ele me livrasse de toda aquela confusão.Seus olhos voltaram-se para o meu tio com expressão sombria e irritada.—Mesmo assim, não bata nela! —Said disse com voz firme, precisa, aterradora, mesmo num baixo volume, sem precisar elevá-la. Isso fez meu coração bater forte no peito. Desde que cheguei, essa era a primeira vez que alguém tomava partido por mim.—O senhor não viu o que ela fez? Ela acabou com a felicidade de minha filha. Não haverá mais casamento. Até o senhor foi atingido indiretamente. Sem esse dote, eu não conseguirei pagar o aluguel!Said olhou para mim como se pensasse. Eu o encarava emudecida, com os olhos embaçados pelas lágrimas abundantes e que molhavam todo o meu rosto.—Faremos o seguinte. Eu ficarei com ela, ela trabalhará de empregada na minha casa em troca do aluguel.Meu tio o fitou confuso, e depois olhou para mim, seus olhos foram ficando mais e mais duros conforme ele me olhava. Ele encarou Said novamente.—Eu não sei. Meu irmão me confiou os cuidados com ela. A responsabilidade de lhe dar um corretivo é toda minha. Por favor, digo e repito, não se encante por esses belos olhos. Foi pega em adultério. Ela é ardilosa, fútil.Percebi que Said ficou desconfortável com essa informação sobre minha pessoa. Seus olhos então procuraram os meus. Vi uma tempestade dentro deles. Ele estudou meu rosto, os olhos negros profundos movendo-se sobre a minha aparência, e um lento sorriso se espalhou em seu rosto. Ele então disse:—Sempre gostei de desafios. E como disse, você tem uma dívida comigo, então não terá outra solução.Allah! Estremeci de medo. Não sei se seria boa ideia estar nas mãos dele. Eu me perdi nos pensamentos e olhei para as minhas mãos, me sentindo um cachorro sem dono. Então, fitei os olhos gelados de Said que estavam postados no meu tio, esperando a resposta dele. Meu tio estava ali pensativo, sem saber o que fazer.—Tudo bem. Ela trabalhará para o senhor. — Ali disse, correndo a cinta nas mãos, nervosamente. Minha tia que deveria estar escutando tudo, surgiu na porta e me olhou com ódio nos olhos.—Ela terá que dormir no emprego. —Said anunciou.Meu tio respirou fundo:—Tudo bem.Eu me senti como se fizesse parte de um filme de terror, imaginando que tipo de situação a personagem passaria a qualquer momento. E tudo que você só sabe era que seria algo terrível.Said estendeu a mão para Ali para fechar o acordo. Meu tio pegou a mão dele e apertou suas mãos. Quando eles soltaram as mãos, seus olhos negros voltaram-se para mim.—Qual é o seu nome?Eu, que estava perdida em pensamentos confusos, me endireitei. Limpando meu rosto de lágrimas que ainda teimavam em descer respondi:—Jamile.—Arrume suas malas. Partiremos amanhã cedo.Eu assenti para ele.—Ela tem louça para lavar. — Minha tia avisou, com ira nos olhos.—Termine seu serviço e depois arrume suas malas. —Ele disse me olhando por um tempo antes de se virar.Seus olhos fixaram em todos que imediatamente entenderam o recado e deixaram o corredor. Eu, ainda trêmula por tudo que aconteceu e pelo meu futuro incerto, me sentei na privada, tentando imaginar que tipo de vida eu levaria lá.Escutei, então, os brados indignados que vinham do quarto ao lado. Era a minha tia e meu tio brigando entre si. Isso acabou surtindo um efeito bom em mim. A caldeira do inferno tinha sido aumentada, e sair de lá seria bom. Se não fosse por essa proposta, eu teria apanhado muito e receberia todo tipo de represaria dos meus tios.Allah! Me lembrei da maquiagem. Mesmo que eu conseguisse provar que eu fui vítima, quando ele soubesse que Samir me viu maquiada, ele iria me massacrar, me acusando de incitar o desejo nele e eu teria que me acostumar à ideia que a porta do meu cárcere se encerraria de fato. Ele jamais me arrumaria um marido e eu o serviria para sempre como empregada.Agora com Said, eu poderia trabalhar para pagar a dívida do meu tio e quando ela se finalizasse, eu pediria para prosseguir com meu trabalho. Faria um pé de meia e depois tentaria viver minha vida. Poderia até voltar para a Inglaterra.Sim! Positivo! Eu precisava pensar positivo!Senti um alívio feroz quando deixei aquela casa. Quase chorei de felicidade. Na despedida, me deram um beijo no rosto de praxe, mas sem sentimento algum. Talvez até alívio. Como se cumprissem um protocolo. Raissa naturalmente não me beijou e de quebra me olhava com ódio nos olhos. Ao olhar para ela, me vi. Odiei Khadija por inveja, puro despeito. Agora eu pagava por isso.Estava deixando para trás um remoinho de humilhações, violência e abusos de autoridade. Lembranças que eu queria esquecer. Caminhei até a porta com Said, rumo a minha nova vida.Por que não a liberdade?Eu ansiava esquecer toda a injustiça sofrida com meus tios, que me atormentou durante um ano em que eu estive com eles. As portas se fecharam atrás de nós com estrondo. Fechei os olhos, lágrimas desceram dos meus olhos. Respirei fundo o ar fresco da manhã. Ouviu pela primei
JamileEu fui até o banheiro. E estava me sentindo nauseada com tudo isso. O sentimento de angústia que senti com suas palavras colaboraram muito para isso. Vi o quanto eu estava mudada. Se fosse outra Jamile, usufruiria com o que ele me daria. Sim, pois com certeza, sendo sua amante, eu teria muitas regalias e ofato de ele não seguir os costumes seria muito bem-vindo. Só que hoje eu pensava diferente. Eu estava vivendo as falas de Zafir " Espero que não enxergue o preço das coisas e sim o valor das pessoas. " Elas agora não eram mais como um eco na minha cabeça, elas desceram para o meu coração, e se fixaram na minha alma.Hoje eu queria ser amada. Tinha trinta e três anos nas costas. Não estava na flor da idade. Eu não era mais uma jovenzinha despreocupada, com aquela mentalidade que eu tinha uma vida pela frente. A idade já estava come&
Eu assenti para ele. Meu corpo doía clamando pelo dele, mas eu me mantive firme em afastá-lo de mim. Saímos da biblioteca. Algumas empregadas que limpavam o local pararam o que estavam fazendo por um breve tempo e me estudaram com os olhos.Atravessamos o vestíbulo, os passos ecoando no lindo piso de mármore branco e preto. Entramos num corredor com colunas trabalhadas. O sol entrava pelas janelas, cortinas lindas e leves balançavam com o vento. Grandes mosaicos decoravam as paredes e grandes abajures de cobre pendiam do pé-direito alto.Passamos por mais um ambiente que conduzia à parte externa. As rosas desabrochadas e o perfume me fizeram lembrar do jardim de rosas da minha antiga casa. Senti uma súbita pontada ao pensar em tudo que perdi com meu orgulho. Estava pagando meus pecados.Said se deteve diante de uma grande porta e a abriu para mim. O quarto era espaçoso. O pé-direito alt
SaidSaí do quarto dela e fui em direção a sala. Com os nervos à flor da pele, caminhei pelo palácio pensativo. Eu a conhecia bem. Jamile era esperta, usava meu passado para me atingir. Eu não deveria me abalar, mas suas palavras conseguiram me tocar.Considerando sua situação, deveria ter um comportamento submisso, pedir desculpas. Entretanto, me encarava nos olhos, o queixo erguido de modo rebelde, os lábios carnudos apertados. Allah! Aqueles lábios eram para mim uma perdição! Essa mulher me deixava louco. Quanto mais ela me afastava, mais vontade eu tinha de tê-la para mim, domá-la.Se fazendo de vítima! Tudo encenação.Era bem melhor atriz do que eu supusera. Tanto que, às vezes, ela me tocava com sua vulnerabilidade, quase me deixando seduzir por seus encantos. Nessa hora meu instinto protetor crescia e a vonta
SaidAllah! Por que eu não a ajudava ir embora como ela queria?Nos dois anos, desde a morte de Raissa, eu me sentia um morto-vivo, infeliz. Não consegui mais olhar uma mulher com interesse, aos poucos eu estava levando minha vida, tentando superar tudo. No entanto, isso era maçante.Agora estava eu, perseguindo-a, me sentindo confuso. A querendo de qualquer jeito, mesmo que minha mente me condenasse que ela era uma mulher pouco confiável.Eu era o Sheik Haji. Eu não ficava louco e não perseguia mulheres. Mas eu não conseguia deixá-la ir. Isso não aconteceria. Eu acreditava que essa estranha fascinação iria acabar no momento que eu a tivesse na minha cama. Era isso que eu precisava para tirá-la dos meus pensamentos.Com determinação, eu andei com rapidez, a raiva incitava minhas pernas para frent
Said —Abiá. Dê todos os banheiros para ela limpar. Ela piscou para mim. —Todos? —Sim, você está surda? —Não, vossa majestade. Meu filho se movimentou nos meus braços querendo ir para o chão. Mas ele coçava os olhos demonstrando sono. —Chame a babá. Peça para ela fazê-lo dormir. Abiá apertou os lábios, contrariada. —Ela não consegue nem sair da cama. Está com dores na coluna. Allah! Eu queria dar uma lida em alguns papéis. —Tudo bem, eu faço ele dormir. Peça depois para Baraque levá-la ao médico. Ela precisa se recuperar para ficar com Bashir. Jamile nessa hora entrou na sala. —Vossa majestade precisa arrumar outra babá. Mesmo que ela se recupere, ela não irá agüentar o menino. E tem mais um agravante, ela está perto de se aposentar. Essa situação está ficando insuportável. A irritação era evidente nas suas palavras. Tal como
SaidDepois de uma hora, consegui fazer meu filho dormir. O coloquei na sua cama e fui até meu quarto. Entrei no banheiro, louco por um banho. Coloquei a banheira para encher enquanto fazia a barba. Meus pensamentos estavam caóticos. A verdade era que eu estava preocupado com meu filho. Tentando achar uma solução para o problema, mas me recusando a aceitar o que me fora proposto. Jamile não servia!Logo depois, entrei na água quente como eu gostava. Passei sabonete na região fétida do meu corpo o esfregando até que o cheiro saísse. Só então pude relaxar.Fechei os olhos.Minutos depois quando eu estava para sair da banheira a porta se abriu.Oh, Allah! Era ela... tão doce, ali estava Jamile, encarando-me com seus belos olhos negros quentes. Seus lábios estavam entreabertos e sua face delicada refletia sua surpresa.A
No dia seguinte acordei cedo fui até a cozinha para tomar café. Abiá surgiu com o garotinho no colo e me deu um comando dizendo que, depois que eu terminasse os banheiros, para eu varrer a varanda.Pelovisto, Said tinha ido trabalhar. Dei-me conta que não sabia absolutamente nada dele.Aliviada por poder transitar na casa sem esbarrar nele, iniciei meu trabalho. Quando o relógio marcou dez horas da manhã, eu já tinha limpado todos os banheiros. Estava indo para a varanda com a vassoura, quando Abiá apareceu com Bashir chorando.—Allah! Fique com ele. —Ela disse colocando o menino nos meus braços, ele cheirava mal.—Abiá, eu não posso.—Said não está aqui, e isso é um caso de urgência. Eu preciso sair. Ir ao supermercado.—Leve-o com você!—Allah! Não dá. A compra é