Não serei sua amante.

Jamile

Eu fui até o banheiro. E estava me sentindo nauseada com tudo isso. O sentimento de angústia que senti com suas palavras colaboraram muito para isso. Vi o quanto eu estava mudada. Se fosse outra Jamile, usufruiria com o que ele me daria. Sim, pois com certeza, sendo sua amante, eu teria muitas regalias e o fato de ele não seguir os costumes seria muito bem-vindo. Só que hoje eu pensava diferente. Eu estava vivendo as falas de Zafir " Espero que não enxergue o preço das coisas e sim o valor das pessoas. " Elas agora não eram mais como um eco na minha cabeça, elas desceram para o meu coração, e se fixaram na minha alma. 

Hoje eu queria ser amada. Tinha trinta e três anos nas costas. Não estava na flor da idade.  Eu não era mais uma jovenzinha despreocupada, com aquela mentalidade que eu tinha uma vida pela frente. A idade já estava começando a pesar.

Uma coisa eu sabia, quando Said olhava para mim com interesse nos olhos, era difícil me lembrar de que se eu caísse na lábia dele, eu seria usada e descartada. 

Said me atraia, sim! Mas eu teria que lidar com isso. E lutaria bravamente com esse sentimento que eu não tinha direito de sentir. Se me deixasse levar por ele, aí sim, ele não me valorizaria.

  Olhe para você! Por que agora se tornou tão importante que ele te valorize? 

Não! Eu faria isso por mim mesma! Eu que precisava me valorizar!

Pensei no motivo de eu estar com ele.... Said com certeza tinha agido por impulso.

 E agora? Ele estava sentindo uma espécie de arrependimento tardio?

 Com certeza ele achava que eu tinha ido ao quarto dele de propósito, como se tivesse armado tudo para conquistá-lo. Lembro-me de suplicar-lhe com os olhos para que ele agisse, de alguma maneira, na hora que meu tio me batia. Mas jamais imaginei que eu seria uma moeda de troca entre ele e meu tio.

Em frente ao espelho, tirei o lenço e abri a torneira. Lavei as mãos e passei água no rosto e pescoço tentando me acalmar e me deixar alerta. Dei um passo para trás. O espelho exibia meus cabelos negros lisos e um pouco emaranhados. Os meus olhos negros receosos tentando manter a compostura. Passei o dedo pelos cabelos e coloquei o hijad novamente.

 Quem sabe Said só tenha falado tudo aquilo para me assustar? E que chegando em sua casa, toda a nebulosidade de suas palavras se desfaria e eu trabalharia realmente para ele? 

Saí do banheiro e fui em direção a saída. Senti o sol ardido queimando a pele do meu rosto e ar estava abafado. Mesmo assim, Said estava lá, encostado ao carro, com a expressão carregada e um cigarro entre os dedos. O vício só comprovava o que ele tinha me dito sobre não seguir os costumes. Eu me arrepiei. Quando ele me viu, aprumou o corpo e jogou o cigarro fora. Entrou no carro sem abrir a porta para mim.

Allah! Abrir a porta do carro para mim?

Caia na realidade!  Você para ele é uma simples empregada!

Entrei no carro fresco pelo ar condicionado ligado e fiquei atrás da cabeleira negra dele. Assim não corria o risco de encontrar seus olhos no retrovisor do carro. Passei a viagem restante imersa em pensamentos ou fitando tudo lá fora, mas geralmente sem nada ver. A paisagem passou diante dos meus olhos em um estado confuso de nervosismo e negação. 

Duas horas e meia depois, chegamos ao nosso destino. O motorista entrou num caminho ladeado por palmeiras. À medida que o carro se aproximava dos enormes portões, estes se abriram automaticamente.

— Lar, doce lar. — Said disse. Ele estava ironizando? Ou disse satisfeito?

Percorremos o caminho ladeado por palmeiras frondosas. Surgiu então uma grande construção da cor branca. O palácio era formado por várias edificações lindamente conectadas por pátios e jardins. Nenhuma igual à outra. Algumas com torres, outras com domos, todos os muros cobertos de trepadeiras.

O carro parou diante da construção mais alta, de dois andares com portas e colunas douradas. Na entrada, na grande varanda, os empregados trajando kandura brancos estavam alinhados e sorriram para ele, se curvando em reverência quando ele saiu do carro.

Mesmo vivendo com Zafir numa casa enorme, nunca tivemos esse tipo de pompa. Sempre testemunhei demonstrações de respeito, mas o que eu via agora era algo diferente. Eles o tratavam de forma especial. Vi nos olhos deles aquela alegria genuína. Said deu um sorriso de menino recebendo os cumprimentos, demonstrando seu sentimento recíproco. Do interior da casa, saiu uma senhora grisalha e um menininho de uns dois anos, bem branquinho e de cabelos negros. Ele veio correndo em direção a Said e agarrou suas pernas o chamando de pai.

Allah! 

Said era casado?

 Viúvo?

Separado?

Claro! Um homem bonito, rico, que beirava seus trinta e nove anos tem um passado. Ele não ficaria solteiro.

 Said o pegou no colo e lhe deu um beijo no rosto. Eu resolvi sair do carro e quando me aproximei deles, ele chamou a mulher, Zilá, e colocou a criança nos braços dela. A criança começou a chorar.

—Leve-o para dentro.

Depois que ela entrou, Said me encarou.

—Esse é meu filho, Bashir. Não quero que ele se apegue a você. Por isso, não quero que tenha nenhum tipo de contato com ele. Está me entendendo? —Ele me disse de forma bem seca.

Assenti com a cabeça para ele, muda.

—Vamos!

Deixamos para trás a luz do sol e o calor. Entramos numa sala que transmitia calma e frescor. Era linda! O teto da sala era formado por uma abóbada azul e dourada de cair o queixo. 

Uma empregada veio nos receber quando cruzamos um arco grande e paramos no meio da sala. A senhora também não usava lenço. Estava vestida com o Jelabiah, uma roupa tradicional, semelhante a uma túnica longa até os pés da cor branca.

—Senhor Haji, bom dia.

—Bom dia. — Said me olhou por um tempo. Então acenou como se tivesse chegado a uma conclusão. —Essa é Jamile. Arrume para ela o quarto ao lado do meu...

Ao lado do dele?

—Sim senhor.

Vi o motorista segui-la com minhas malas.

— Me acompanhe.

Eu o segui, mas nem consegui reparar no lugar, caminhei muda como se tivesse indo para o matadouro. Ele abriu uma grande porta que deu numa linda biblioteca. Quando entramos no interior dela, ele fechou a porta atrás de nós. Se virou para mim e se aproximou. Sua fragrância almiscarada tomou conta de mim novamente.

 A frieza no olhar dele me avisou que ele me olhava como se tratasse de negócios agora. 

—Não sou de fazer jogos bobos. Sou muito direto e eu a quero para mim. Luxuria, êxtase. Chame como quiser.

Suas palavras me arrepiaram e eu falei sem pestanejar:

— Não serei sua amante. Me dê qualquer outra coisa para fazer.

Ele baixou a cabeça sorrindo e a meneando de um lado para o outro. Quando a ergueu, vi um traço de aborrecimento vindo novamente em sua expressão. O tempo congelou entre nós. Suas narinas se dilataram:

—Chega de jogos. Deveria se sentir honrada que eu a deseje, mesmo sabendo quem está por trás dessa aparência inocente. Eu não estive com uma mulher há bastante tempo. Estou limpo. Você comigo terá, em troca, uma vida confortável. Estipularemos um tempo para que a dívida seja toda sanada. Eu serei a formiga e você a cigarra. Enquanto eu trabalho, você canta para mim. O que acha?

—Você está louco? —Eu perguntei duramente. Eu queria gritar com ele, mas mordi a língua. — Eu não sou uma prostituta!

Ele riu e deu um passo mais à frente, meu coração disparou. Minha respiração se atenuou:

—Mas eu não disse que você era. Pense que é uma troca simples. Você usufrui de tudo que eu tenho e eu a tenho na minha cama.

—Você joga tudo que tem como se eu o quisesse, como se assim você pudesse dormir comigo?

Cada polegada de mim estava em chamas. Seus lábios se esticaram com um sorriso lindo, charmoso, sedutor. Seus lindos olhos me levando com um vertiginoso efeito sobre mim.

—Não estaríamos dormindo, Jamile. —Ele disse com ironia.

Pisquei para ele aturdida e tentei suprimir a raiva que borbulhava para a superfície.

—A resposta é não.

Ele se aproximou mais.

—Ah, Jamile. Eu conheço as mulheres. Não me jogue palavras de negação. Você é uma mulher quente. Se não o fosse assim, não teria um amante.

Minha raiva cresceu de tal forma que lhe acertei as faces tão forte quanto pude.

Allah! Tirei a trave de uma granada e ela estava agora prestes a explodir na minha frente. Em choque fiquei o olhando, me admirando do que eu tinha feito.

Sua louca! 

Bater num homem árabe?

Said estava lá: a surpresa em seu rosto, seu peito subindo e descendo rapidamente e com uma súbita fome em seus olhos enquanto olhava para mim.

 "O que foi que eu fiz?"Foi meu último pensamento antes que ele desse um passo para frente e esmagasse seus lábios contra os meus. Eu estremeci. Não eram punitivos, e sim envolventes, doces. Ele tinha gosto de menta e tabaco, era a coisa mais gostosa que eu já tinha experimentado. Sua língua se chocando com a minha e seus dentes mordiscaram meu lábio inferior. Meu corpo traidor tremia, violentamente. Eu nunca experimentei um desejo assim, tão ardente. Senti, então, na barriga seu cume duro e isso me foi como um sinal de alerta.

O afastei um pouco e me livrei dos lábios dele, enfiando meu rosto em seu peito cheiroso.

— Não, por favor não!

Ele respirava pesadamente, abraçado a mim. Talvez tentando colocar seus pensamentos em ordem. Agarrou o meu lenço e puxou minha cabeça para eu olhar para ele. Seus olhos exibiam toda a sua frustração.

—Seu corpo me deseja. Senti isso aquele dia no meu quarto. Se eu não tivesse me afastado, você teria permitido que eu a beijasse. E agora eu te provei isso. Por que esse jogo comigo agora? Por que me rejeita? —Ele me perguntou tudo em luta, seus olhos eram tempestuosos, sua testa estava franzida.

—Eu não estou fazendo jogo algum.

—Não? — Ele me soltou, olhando-me duro. —Não percebe o que está acontecendo entre nós?

— Não há nada acontecendo entre nós. —Eu disse de queixo erguido.

Seus olhos brilharam nos meus.

— Mentirosa. —Ele passou a mão pelo cabelo, parecia angustiado. —Se pensa em me conquistar se fazendo de difícil, pode esquecer!

Fechei por um momento meus olhos e neguei lentamente.

—Estou cansada. Eu poderia ir para o meu quarto?

—Descansar? Se não vai ficar comigo, terá que pagar de alguma maneira sua estadia, concorda? Você não é uma hóspede. Lembra?

Meu queixo caiu e eu olhei para ele perplexa.

—Eu estou acalorada. Não poderei nem tomar um banho?

Said sorriu friamente.

—Não me olhe com essa cara. Eu te possuo agora, lembre-se disso! E quando eu tenho uma coisa, eu controlo. Essa é a razão por eu ser um homem bem-sucedido e você fará o que eu m****r.

Allah! Coisa?

Meu coração se apertou. Ainda chocada perguntei:

—Você vai me obrigar a fazer algo que não quero fazer?

Ele franziu a testa, irritado.

—Eu não faço sexo com mulheres à força, se é a isso que você está se referindo. Eu não preciso, também. Tenho mulheres solteiras desimpedidas o suficiente se atirando para mim. Ah, algumas casadas se oferecem, lógico que elas são espertas, não dão bandeira como você. Desculpe desapontá-la.

Eu senti meu sangue subir para o rosto por sua observação venenosa.

— De maneira nenhuma estou desapontada, Sr. Haji. Posso ir para o quarto e apenas me trocar, meu amo?

—É essa a sua resposta? Prefere se matar de trabalhar nessa casa do que estar na minha cama cantando no meu ouvido? Se meu beijo foi bom, imagine o resto.

Eu estremeci, mas disse de forma convincente:

—Sim, mesmo porque, como disse, tem mulheres de sobra e não quero ser mais uma na sua cama.

—Não será mais uma, mas exclusiva.

—Por quê? Se tem mulheres a sua escolha, por que insiste comigo?

—Você é diferente. —Ele disse calmamente.

— Diferente como?

Ele deu um passo à frente, me olhando por vários momentos, e não conseguia ler sua expressão. Fiquei mais desconfortável a cada segundo que passava. Por fim ele respondeu:

— Apenas diferente.

Ele balançou a cabeça lentamente, seus olhos parecendo pensativos. —Jamile. —Ele disse como se estivesse provando meu nome na sua língua. — Eu vi você naquele vestido, você sabe. E desde então, te quero na minha cama. Simples, como um mais um são dois. Surpresa?

Meus lábios tremeram e fiquei sem ar. Minhas bochechas aqueceram e o encarei com surpresa.

— Não foi minha intenção te provocar.

— Seu tio me disse que você sabia que eu me hospedaria naquele quarto. Deve ter falado de mim, que sou um homem rico, então acendeu uma lâmpada na sua cabeça: porque não provocá-lo e então passar uma imagem inocente? Você queria me deixar de quatro, apaixonado?

—Eu não fiz nada disso. Você não pode estar falando sério!

—Eu não nasci ontem.

Balancei a cabeça, lutando para manter meus olhos fixos nos dele.

— Eu não fiz nada disso! —Repeti minhas falas.

Ele riu ironicamente.

—Jamile, Jamile, Jamile. Eu estive lá. Assisti de perto seu labor. Vi como era sua vida. Vi a maneira que era tratada. O não pensa que não reparei. O que pensou? Que eu seria seu salvador? Ficaria perdidamente apaixonado por você? Vai para o seu quarto! Pode ir!

Ele deu um passo para trás. Eu engoli em seco. Não respondi por um momento. Eu estava muito ofegante. Ele me olhava de cara fechada.

  — Eu não sei onde é meu quarto.

Ele bufou, e disse entredentes:

 — Me acompanhe!

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