Você tem língua? Ou a cortaram?

Senti um alívio feroz quando deixei aquela casa. Quase chorei de felicidade. Na despedida, me deram um beijo no rosto de praxe, mas sem sentimento algum. Talvez até alívio. Como se cumprissem um protocolo. Raissa naturalmente não me beijou e de quebra me olhava com ódio nos olhos. Ao olhar para ela, me vi. Odiei Khadija por inveja, puro despeito. Agora eu pagava por isso.

Estava deixando para trás um remoinho de humilhações, violência e abusos de autoridade. Lembranças que eu queria esquecer. Caminhei até a porta com Said, rumo a minha nova vida.

 Por que não a liberdade?

Eu ansiava esquecer toda a injustiça sofrida com meus tios, que me atormentou durante um ano em que eu estive com eles. As portas se fecharam atrás de nós com estrondo. Fechei os olhos, lágrimas desceram dos meus olhos. Respirei fundo o ar fresco da manhã. Ouviu pela primeira vez o canto dos pássaros debaixo de uma árvore ao sol. Prestei atenção nos movimentos dos carros. Pessoas caminhando em direção as lojas naquela parte da Medina.

Todo esse tempo que estive com eles, consegui apenas uma vez caminhar entre as lojas. Isso porque, fui com um objetivo. Minha tia tinha me pedido para comprar farinha. Aprisionada. 

E agora? Eu estava indo para a outra gaiola, só que dourada? Limpei as lágrimas, e ajeitei o hijad preto escondendo meus cabelos. Sabendo que minha aparência deixava a desejar, vestida com aquela abaya negra.

Aparência? 

Há muito tempo eu não sabia o que era me arrumar, desde aquele dia....

Allah! No mínimo quando Said me viu com aquele vestido, ele me enxergou como uma vadia, ou uma cavadora de ouro.

Respirei fundo.

—Vamos? —Ouvi a voz de Said.

Só então percebi a porta aberta do veículo preto. Sem encará-lo muito nos olhos, eu assenti para ele com um gesto de cabeça. Deslizei para o assento de couro marrom. Said se sentou no banco da frente ao lado do motorista. Quase não dormi a noite, pensando em tudo que aconteceu, na guinada que deu minha vida. Tentei deixar que o barulho suave do motor me acalmasse. Mas foi em vão. Eu estava agitada demais.

Fitei o retrovisor do carro e encontrei os olhos sérios e observadores de Said em mim. Limpei minha garganta, mas não saiu dela som algum.

 Foi então que ele me disse:

—Descanse. Serão cinco horas e meia de carro até Marrakesh.  No meio do caminho paramos para almoçar.

Meu coração se agitou no peito. Assenti para ele e desviei meu olhar dos profundos olhos negros dele e direcionei-os para a janela, mas sem nada ver.

Almoçar com ele…Pensei.

Said para mim era um mistério. Eu não me admirava em nada que ele o fosse. Eu nunca participei de nenhum assunto da casa. Era tratada apenas como uma empregada. Quando meu tio usava seu tempo precioso para falar comigo, era apenas para recitar o livro sagrado e me dar versículos para decorar. Se eu não os decorasse até o dia seguinte, ele não poderia participar da refeição, isso até eu decorar. 

Era uma espécie de passaporte, pedágio para eu me comer. A tecnologia deixou a idade das trevas para trás, mas minha sociedade machista continuava a viver nela. Eles eram ainda movidos pelas formas bárbaras. As mulheres cordeirinhos de homens predadores.... Meu estômago revirou com esses pensamentos e eu os afastei.

O trajeto longo, muito. Depois de uma hora de viagem, as casas e estabelecimentos foram ficando para trás e agora estavam cada vez mais rareando na paisagem. Meus olhos foram ficando pesados pela noite mal dormida. Resolvi me deitar no banco do carro para tirar um cochilo. Me encolhi. Eu só queria o escuro agora.

Acordei mais tarde com um toque nos ombros.

—Jamile.

Meu coração acelerou, um rubor atingiu meu rosto quando me lembrei a onde eu estava. Me levantei e dei com os olhos negros de Said postados em mim. Ele estava do lado de fora do carro e tinha aberto minha porta. 

Me endireitei no banco e deslizando saí do carro. Percebi que estávamos no estacionamento de um restaurante, acima dele balançava a bandeira da Itália.

Restaurante Italiano?

—Está com fome?

Eu assenti para ele com um sim. Ele me observou.

—Você tem língua? Ou a cortaram?

—Tenho.

—Ótimo, então faça uso dela. Não gosto de monólogos. Já comeu comida italiana?

Eu baixei meus olhos.

Sim! Eu adorava comida Italiana. Zafir sempre que podia me levava. Meu coração se apertou com um sentimento de tristeza. As dores passadas me atacaram novamente. Rejeição.

—Eu te fiz uma pergunta?

Pisquei, quebrando minhas memórias e ergui meu rosto para ele. Said me olhava impaciente.

—Eu gosto muito.

Said me estudou antes de dizer:

—Pelo visto frequentou restaurantes assim.

—Sim. — Era aquela ligação entre o passado e o meu agora presente. A liberdade que eu tinha, e agora a prisão, a obrigação. Essa consciência me deixou mais no chão. A melancolia que ela me engoliu por inteiro com essas lembranças como uma maldição.

Eu o fitei, ele me estudava. Quando nossos olhos se encontraram, ele disse impaciente:

—Vamos!

Eu assenti e caminhamos lado a lado em direção à porta de vidro do restaurante.  Alguns passos depois eu tropecei. Dedos seguraram meu braço e por pouco não caí no chão. Me endireitei. Suas mãos me soltaram.

—Você parece que tem dois pés esquerdos. —Ele disse. 

Eu respirava com dificuldade, odiando o olhar de diversão que vi no rosto dele. Então me lembrei de ontem à noite no quarto dele, quando caí como manga madura no chão. Senti meu rosto vermelho, e não consegui deixar de sorrir sem graça.

—Geralmente não sou tão atrapalhada.

Seus olhos negros ficaram mais intensos e desceram para os meus lábios, fazendo meu coração palpitar mais rápido no peito.

Não! Não! Eu não podia me apaixonar por ele. Baixei meu rosto.

Eu tinha medo do meu “eu apaixonado”. Eu estava indo muito bem até agora, eu podia estar numa prisão, mas a paz do meu coração “livre” era inigualável. Um dia eu me transformei de um gatinho manso em um felino com garras e dentes.

Ele disse rude, cortando meus pensamentos:

—Sabe que seus olhos passam pureza? Mas isso não me engana, eu sei o que se esconde por trás dessa aparência. Vamos!

As palavras dele me atingiram, trazendo dor ao meu peito. Ele avançou sem me esperar. Eu fiquei ali parada por um tempo. Anda! Pare de agir como vítima!

Forcei meus passos até alcançá-lo. Conforme caminhava ao lado dele, briguei com meu coração para parar de bater daquele jeito. Tentei acalmar minha respiração, dizendo para mim mesma:

Foi ótimo.

Melhor!

Não fique assim!

Pés no chão sempre!

Foco!

Mas isso nada adiantou. Caminhando no interior do restaurante charmoso, eu não consegui parar uma lágrima quente que desceu queimando a minha bochecha.

O que estava acontecendo comigo? A limpei com raiva.

Said

Allah! Ela chorava?

Essa mulher estava me atingindo de uma maneira estranha. Era uma briga de sentimentos dentro de mim. Num momento eu a queria, em outros eu a desprezava.

Eu não estava acostumado ao caos dos sentimentos que ela estava me provocando. No pouco tempo que eu a tinha conhecido, ela me fez sentir algo que há muito eu não sentia.

Era algo ilógico. Tudo era contra ela. Mas todos os argumentos, seu passado e todas as dificuldades não tinham me preparado para a complicação dos meus sentimentos. Essa força repugnante de emoções.

Como eu poderia entender e manter meus pensamentos seguros se ela toda hora me passava uma imagem?

A de mulher fatal, então ingênua. Ousada, então tímida. Medrosa, então orgulhosa....

Agora mesmo um flash de vulnerabilidade brilhava em seu rosto.

O Maître me indicou uma mesa vazia perto da janela. Assenti para ele ainda com aqueles pensamentos viciosos na minha cabeça. A verdade era que ela atiçou aquele desejo dormente em mim.  Ela mexeu com todas as minhas fantasias sexuais quando eu a vi naquele vestido.

Me virei para ela. Ela veio na minha direção com a cabeça baixa. Cabeça e corpo todo coberto, diferente da mulher que ficou gravada como fogo na minha mente.

Eu precisava vê-la assim, dentro dos nossos costumes. Respirei fundo e afastei a cadeira para ela se sentar. O Maître nos deu o cardápio.  Ela olhou para mim e depois se escondeu atrás dele. Minutos depois ela o colocou na mesa:

—E então?

—Não sei.

—Como não sabe? Não conseguiu escolher um prato?

—Eu sou apenas uma empregada. Quanto pretende gastar?

—Não se preocupe com isso. Pode pedir o que quiser.

Jamile

Meu coração se apertou agitou no peito com sua resposta. Allah! Muito estranho. Eu podia pedir o que eu quisesse porque ele era rico? Ou tinha algo por trás disso tudo?

—Que tipo de empregada eu serei?

Said deu uma risada de canto. Meu coração imediatamente se agitou no peito. Lindo! Isso o definia. Ao mesmo tempo que eu constatava isso, seu sorriso me preocupava.

—Não tenho nada definido ainda para você.

Meu coração conseguiu ficar mais agitado do que estava. Nessa hora o garçom se aproximou:

 —Senhor. Já fizeram suas escolhas? Posso anotar o pedido?

Said pegou o cardápio e pediu:

—Lasanha e alcachofra à moda romana. —Ele me olhou por trás do cardápio. —Posso pedir o mesmo para você?

—Só lasanha.

—O que irão beber?

—Suco de abacaxi e você Jamile?

—O mesmo.

O garçom anotou o pedido e se afastou. Eu encarei Said, cheia de dúvidas na cabeça.

—E então?

Said que olhava pela janela me encarou.

—E então o quê?

—Disse para o meu tio que eu trabalharia para o senhor. Estava mentindo? Tudo isso não passou de um jogo para me ... levar para a ...?

A severidade dele se atenuara. Ele não exibia mais aquela expressão enigmática. Agora seus olhos negros observavam-me atentamente, até demais. Meu coração se agitou no peito.

Said disse com voz aveludada.

—Eu te livrei de ser espancada. Nunca me agradou esse tipo de coisa. Senti o clima na casa muito pesado, e agi.

—Só isso?

Ele riu.

—E você acha pouco?

—Não foi isso que eu quis dizer.

—Não existe nenhum jogo. Mas posso pensar a respeito.

Eu fiquei branca. Ela não queria acreditar nos meus ouvidos. Senti vontade de gritar.

—Eu não serei sua a....mante!

Said sorriu friamente para mim, como se apreciasse meu nervosismo.

—Isso ainda não decidi. Só o que sei é que sou seu dono. Paguei pelos seus serviços e não foi barato. 

Eu engoli em seco. Os olhos de Said endureceram.

—Não sei porque tanto pudor. Conheço toda a sua história, nos mínimos detalhes. Eu e seu tio tivemos uma conversa ontem. Não adianta passar uma imagem que não é. Isso não funcionará comigo. E lembre-se que eu vi como você é realmente.

Allah! Ele estava se referindo ao dia que ele me viu vestida no quarto dele daquele jeito. Minha respiração se agitou.

—Isso é con...tra os costumes. —Gaguejei. —Não posso ser sua amante.

Said se recostou na cadeira e deu um sorriso debochado, cruzando os braços na frente do peito como o profeta.

—Não sou muçulmano. Se quiser pode deixar de usar o hijad, usar roupas mais descontraídas. —Ele então falou num tom baixo e debochado. Isso me abalou. —Mas sugiro que num país onde a maioria é muçulmana, você não tire o lenço agora, só faça isso quando estivermos na minha casa. Então, você poderá andar mais à vontade.

Allah! Isso não era bom. 

Eu tirei do meu rosto a surpresa e demonstrei toda a minha seriedade quando perguntei:

—Num país onde a maioria é muçulmana como disse, por que você não segue os costumes?

Ele sorriu friamente.

—Meu pai era norte americano. Veio para o Marrocos a trabalho e se casou com minha mãe que era órfã. Nem ele, nem ela, eram presos às tradições. 

Eu engoli em seco e resolvi explicar toda aquela confusão.

—Aquele dia... Quando eu estava no seu quarto. Eu usava um dos meus vestidos. Estava apenas revivendo o passado, nada mais que isso. —Meus olhos foram tomados por um brilho triste.

—Sim, revivendo um passado cheio de glamour, riquezas e que você daria tudo para tê-lo de volta.

Meus olhos brilharam, eu dominei minhas emoções, me esforçando para que minhas lágrimas não caíssem.

—Exatamente. —Ergui meu queixo. —Mas não pelo glamour ou pelas riquezas como está dizendo. Quando coloquei aquele vestido eu estava me lembrando do meu ex-marido.

Said riu.

—Allah! Essa é boa! Você trai o pobre coitado e quer que eu acredite que morria de amores por ele?

Eu baixei meus olhos tristes.

—Eu sei que errei. Quando me olhei no espelho com aquele vestido, pensei em como tudo poderia ter sido diferente.

Ele fez um "hah!" Antes de dizer:

—Carregada com toda aquela maquiagem! Você quer que eu acredite nisso? —Ele rebateu em tom seco. —Não faça esse papel de Madalena arrependida. Isso só piora as coisas para você e pena me leva ao asco.

A esperança zombou de mim, fazendo-me acreditar que eu tinha uma chance. Uma pequena, quase inexistente chance de ele acreditar nas minhas palavras, mas ainda uma chance. Isso foi cruel. Mau. Agora...

Said

Jamile me olhou a princípio sem se mexer. Como se o mundo a sua volta tivesse parado e ela somente ouvisse sua respiração ofegante.

Vi o quanto minhas palavras a afetaram a ponto do sangue fugir de seu rosto. Então, desviou seus olhos dos meus e eu assisti rolar uma lágrima solitária em suas faces rosadas. Apertei minhas mãos debaixo da mesa com furor e desviei os olhos da sua figura frágil.

Lágrimas de crocodilo! Ela estava jogando comigo para me conquistar?

Por que ela estava vestida daquele jeito no meu quarto? Para me impressionar? E depois vir com essa história triste para eu cair como um patinho?

 O que havia nessa mulher que me perturbava dessa forma?

Allah!

Pior que desde que a vi no quarto vestida daquele jeito ela não me saia mais da cabeça! O que era isso? Uma praga de um fetiche?

Meu coração bateu descompassado; meu sangue correu denso e enjoativo quando pensei na possibilidade de estar nas mãos dela, isso fez todos os meus músculos se retesarem.

Uma voz, vinda do fundo da minha alma, relembrou-me que desde a morte de Layla eu vivia de luto. A parte estranha, a parte mais complexa e até mesmo mais extraordinária, era que essa mulher a minha frente conseguiu mexer comigo, ela me fez abraçar meu bárbaro interior, me fez por um momento esquecer a minha tristeza. E outra voz mais forte me fazia reconhecer a verdade por trás de todo aquele prazer, eu a queria para mim. Independentemente do quão contraditório pudesse ser em sua efemeridade.

Agora ela era minha.

Eu possuía sua vida por causa do pagamento de uma dívida. Só de pensar nisso a adrenalina correu densa nas minhas veias, fazendo meu coração se agitar.

Tudo aconteceu por um impulso, mas dentro de mim cresceu esse estranho prazer de tê-la nas minhas mãos. E agora?  Ela seria minha cura? Ou minha ruína?

Sorri com o rosto voltado para a janela ao me lembrar da imagem surpresa de seu rosto quando eu lhe disse que não era muçulmano e que as regras não se aplicavam a mim. Deve ter sido aterrador saber que eu não estava preso aos costumes.

Tirei o sorriso do rosto e respirei fundo. Quando a encarei nossos olhos se encontraram. Ah. Já tinha percebido isso, ela adorava me observar quando eu não estava olhando. Segurei por um tempo seu olhar. Ela, constrangida, o desviou dos meus.  O Garçom nessa hora surgiu e começou a nos servir e voltei a minha atenção para o meu prato, mas totalmente consciente dela. Como um felino que conhece todos os movimentos da sua presa.

—Eu preciso ir ao banheiro. —Ela me disse como um coelhinho assustado quando finalizamos o almoço.

Eu não queria vê-la assim. Queria que aquela máscara de boa moça caísse.

—Tudo bem. Te espero no carro. 

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