O hóspede.

Jamile

Allah! Zafir não poupara despesas. O vestido era realmente lindo. Fiquei na ponta dos pés em frente ao espelho, me imaginando com sapatos de saltos altos.

Isso era passado.  Engoli meu choro. Zafir jamais fez economia comigo...nada. Tudo que eu pedia ele me dava. Nossa casa proclamava o quanto éramos ricos.

Allah! Agora acabou a riqueza e meu prestígio em ser a esposa de Zafir Youssef Xarif.

Quando me casei, eu senti como se ele fosse educar um cavalo de corrida promissor, querendo me transformar na esposa perfeita. Mas não era isso que eu sonhava. Eu esperava que ele me amasse. Que ele me dissesse que me amava. Que seus olhos gentis, se tornassem quentes. 

—Deixe-me entender isso direito. A odalisca acompanha o quarto? —Ouvi uma voz grave nas minhas costas.

Allah! Fechei os olhos. Aquela era a última coisa que queria que acontecesse. Com o coração agitado, me virei e dei com aqueles olhos negros que se fixaram no meu rosto. Estava diante de um homem másculo, bonito. Ele parecia um bárbaro do deserto. Usava um Dishdasha bege, o relógio de ouro brilhava no seu pulso.

Era o hóspede.

Seus olhos negros passaram por meu busto e meu colo visível, depois, por minhas curvas acentuadas pelo vestido justo e por uma de minhas pernas na fenda daquele vestido. Precisei me esforçar para manter o rosto inexpressivo, o corpo rijo e implacável.

Allah! Meu tio iria me bater! Ele um dia já havia me ameaçado.

Eu não conseguia falar, de tão passada que eu estava. Só pensava agora nas consequências.

Eu sabia que precisava reagir, mas os fogos dos olhos dele passando por meu corpo pareciam me queimar, me deixando mais sem atitude. Foi então que seus olhos escuros se encontraram com os meus, e mergulhou na minha alma como se fosse uma adaga.

—Said! —Eu iniciei.

Allah! Não! Piorei. O que Selima tinha me contado sobre seus olhos me vieram com tanta força que eu o chamei pelo nome. Passei a língua nos lábios, nervosa, isso piorou as coisas, pois ele sorriu.

O que eu estava fazendo? Loucura. Isso me desesperou.

Ele se virou para fechar a porta.

— Eu não sou uma odalisca. Isso tudo é um mal-entendido!

Não! Não podia perder tempo com explicações; eu colocaria minhas roupas, e mais tarde ele nem repararia mais em mim. Precisava sair dali e rápido. Com o coração acelerado batendo com força, eu disse rouca:

— Preciso ir, com licença...

Corri para o banheiro e fechei a porta, peguei minhas roupas e tirei o vestido e me troquei com pressa. Abri a porta e dei com aquele homem me olhando. Tentando entender essa confusão. Assustada com a força do olhar dele, eu me virei, mas desequilibrada, tropecei no tapete e cai no chão num baque.

 Ouviu uma exclamação em voz baixa e, de repente, as mãos estavam em mim, erguendo-me. Sentiu a eletricidade do seu toque firme, tão masculino e forte e aquele cheiro másculo emanando do corpo dele. Olhei para cima e dei com o rosto belo, mas implacável, vi o desejo naquelas pupilas dilatadas. O tempo parou e havia apenas nós dois. Eu mal consegui falar, nem mesmo respirar. Contra a minha vontade, meus olhos devoraram cada detalhe daquele rosto. Os longos cílios negros, o nariz aquilino, a boca máscula.

Seus olhos desceram para os meus lábios e ficaram ali. Seu rosto foi descendo. Allah! Eu prendi a respiração. Quando seus lábios estavam quase próximo dos meus, ele parou, como se hesitasse. Estremeci. Seus olhos procuraram os meus novamente cheios de sombras. Como se ele tivesse sido atingido por um golpe físico, ele então me soltou.

E eu, sem dizer nada apertei meus passos e sai do quarto. No corredor encontrei a gêmea má. Sei, pois seus olhos endureceram.

Allah! A maquiagem! Desde que eu tinha colocado os pés nessa casa, eu nunca a usei. E agora...

—Jamile, Jamile, já foi se oferecer para o nosso hóspede?

Ajeitei meu lenço nos cabelos.

—Não! Claro que não!

—Então, como explica seu rosto pintado como uma mulher vulgar? Uma espetaculosa!

Eu engoli em seco.

—Raissa, eu só passei para me lembrar dos velhos tempos.

Ela balançou a cabeça.

—Você não me engana Jamile. Vou contar tudo para o papai.

Cerrei os olhos, bloqueando a visão dela por um segundo. Obriguei o meu corpo se acalmar, a respiração se normalizar, dominando as minhas emoções. Depois de tantos anos de prática, sabia exatamente o que fazer.

Eu abri meus olhos e ergui minha voz, dizendo duramente:

—Eu não fiz por mal. A minha maquiagem estava no quarto de hóspedes e eu num impulso passei. Me pintei sem maldade.

Mas ela não se deixou abater por minha ira.

—Sem maldade? Aposto que arrumou para o senhor Haji. Nada boba você!

O noivo dela surgiu no corredor dizendo.

—Raissa. Sua mãe está te chamando...— Quando ele me viu, parou de falar e seus olhos faiscaram quando viram meu rosto pintado e ele sorriu. —Olá, Jamile.

—Amanhã, você não escapa. —Ela disse me ameaçando.

Ela se virou e saiu seguida por aquele idiota.

Cinza, assim que estava a minha vida.

Acordar cedo, me dar conta todo dia que serei discriminada e tratada como uma empregada, ouvir as repetições dos versos do livro sagrado pelo meu tio como se eu fosse uma débil mental. Não poder ter uma conversa normal com minhas primas, pois segundo eles, eu poderia desvirtuá-las. Agora eu tinha mais um item da minha grande lista para me preocupar.

Respirei fundo.

Eu me recusava a chorar!

Bufei, dei mais alguns passos e entrei no meu quarto. Fui ao banheiro e lavei todo o meu rosto, tirando toda a maquiagem. Fazendo essa tarefa me lembrei que eu ainda precisava arrumar o quarto do hóspede. Na pressa de sair eu tinha deixado tudo desarrumado.

Allah! Que vergonha! Coloquei a mão no meu rosto que ficou vermelho quando me lembrei novamente do ocorrido. Me senti dentro daqueles filmes pastelões, em que as pessoas nos tomavam como idiotas.

Bem, o negócio agora era ter calma e tentar passar despercebida por todos. 

 Caminhando de um lado para o outro, nervosa, dei um tempo, para não correr o risco de pegar Said no seu quarto. Quando entendi que o tempo de espera fora o suficiente, caminhei pelo corredor. Mesmo assim, com muito medo de reencontrá-lo. 

A porta dele estava fechada, hesitei antes de bater nela. Nenhuma resposta. Coloquei meus ouvidos e não ouvi som algum. Respirei fundo e abri a porta. Como previsto, ele não estava. Agradeci a Allah por isso.

O cheiro do quarto estava tomado pelo perfume dele, sobrepondo-se a fragrância aromática da alfazema que saía do bukhur. Um cheiro maravilhoso, bem másculo, combinava com o dono. Era tão marcante que parecia que ele estava no quarto agora. Balancei a cabeça para tirar aqueles belos olhos negros da minha mente.

Arrumei a cama com os lençóis limpos e depois coloquei a colcha por cima. Fui até o banheiro e encontrei meu vestido dobrado num canto do gabinete e meu estojo de maquiagem. Peguei tudo e guardei na caixa e depois coloquei dentro do guarda-roupa.

Sai do quarto carregando o rodo e o balde que tinham ficado lá. Fui até área de serviço. Minha tia quando me viu apertou os lábios, contrariada.

—Você já limpou os banheiros?

—Não deu tempo.

—Então vá logo. Hoje a casa está cheia. Temos convidados. Você me ajudará na cozinha e na hora de servi-los.

—Sim, minha tia.

—Então vai! Vamos! Por que ainda está na minha frente!

Eu me virei rápido e trombei com alguém.

Allah!

O peito era duro como um granito, e aquele perfume maravilhoso. Com o coração batendo em disparada dentro do meu peito, com a respiração ofegante ergui meu rosto e dei com os olhos negros de Said. Seu semblante era sério. 

  —Jamile! Olha para onde anda! —Meu tio que estava ao lado dele me repreendeu.  

Dei um passo atrás. Apertei meus olhos e me lamentei para mim mesma num sussurro. 

O que estava acontecendo comigo hoje!

Abri meus olhos e encarei meu tio e apenas acenei com a cabeça para ele com um sim, consciente dos olhos negros de Said sobre mim. Com o coração agitado, baixei a cabeça e me afastando deles, caminhei em direção a área de serviço. O perfume dele fixo na minha memória olfativa.

Levou vinte minutos para eu limpar os banheiros. Então, lavei as mãos e fui para a cozinha. Minha tia estava atrapalhada com as panelas. O cheiro de queimado estava no ar.

—Graças a Allah você chegou. Mexa essa carne para mim. Enquanto eu lido com esse molho.

—A senhora parece nervosa, minha tia.

—Claro! Hoje é um dia importante para a minha Raissa. Ao contrário de você, ela está feliz com esse casamento.

Senti o rosto esquentar e desvie meu olhar dela, sentindo uma lágrima furtiva rolar no meu rosto sem que eu tivesse controle. Não respondi para a minha tia. Não adiantava. Enquanto mexia a carne refleti sobre as condições do meu casamento.

Na época não tive a oportunidade que Raissa estava tendo de conhecer melhor seu noivo. Zafir sempre fora muito ocupado. Meu casamento fora arranjado pelos pais dele. Só nos conhecemos no dia do nosso casamento. Mas desde o momento que coloquei meus olhos sobre Zafir, ele me atraiu. Na nossa lua-de-mel, aqui no Marrocos, ele se mostrou uma pessoa prestativa, educada, encantadora. Não tinha como eu não me apaixonar.

Claro que eu o amei!

Tremendo por dentro, contive minhas emoções e me concentrei naquilo que eu estava fazendo. A carne parecia bem cozida, mexendo-a com a colher de pau, disse:

—Tia, acho que já está bom.

Ela se aproximou de mim e provou.

—Sim, está.

O jantar marroquino era diferente dos nossos ingleses, as mesas eram baixas e sentava-se sobre almofadas. 

Os pratos eram trazidos pouco a pouco. Uma empregada ou um membro da família (sempre uma mulher) levava antes uma bacia de metal com sabão no meio, às vezes feito de esculturas artesanais, e água em volta. As mãos são lavadas e uma toalha é oferecida para secá-las. Os marroquinos têm o costume de beber chá verde com hortelã (menta) e açúcar antes e depois da refeição. Agradecem a Deus dizendo "Bismillah". 

As mulheres se sentavam separadas dos homens. Então eu teria que servir duas mesas.

—Eu vou lá na sala e dar uma olhada se você já pode servir. Aguarde aqui para eu te chamar. E lembre-se, ficará tudo por sua conta. 

Eu forcei um sorriso.

—Está certo, tia.

Ela me estudou com o semblante sério antes de ir. Como se perguntando se ela poderia mesmo confiar em mim. 

Ajeitei meu lenço nos cabelos, para que eles ficassem bem presos. Separei a bacia, a jarra o sabão para o ritual de lavar as mãos. Coloquei a toalha nos ombros e aguardei. Titia logo surgiu na cozinha e fez sinal dizendo que eu poderia começar a servir.

Com o coração batendo como um tambor, caminhei até a sala de jantar. Parei na entrada e observei todos muito a vontade, se falando alegremente. Meu coração se apertou no peito e nessa hora eu senti na pele a dor da rejeição. Eles praticamente me excluíram da família. Eu estava ali de favor e trabalhava para pagar o que eu comia, e o teto sob a minha cabeça. 

Todos os olhares se voltaram para mim quando me aproximei da mesa dos homens. Eu podia sentir os olhos do nosso ilustre convidado e pude ver de esguelha os olhos do noivo de Raissa postados em mim, sempre com aquele sorriso irônico nos lábios.

Esse homem não presta!

Caminhei primeiro até meu tio com a bacia com pouca água e o jarro. Meu tio lavou suas mãos e eu despejei sobre elas mais água para tirar o excesso de sabonete, depois a toalhinha para secar. Depois fui até o futuro sogro de Raissa, e fiz o mesmo processo. Agora era a vez do noivo dela, ele se lavou e eu o ajudei como fiz com os outros. Quando eu estava me dirigindo a Said. Senti a mão gelada de Samir correndo meu tornozelo por baixo do meu vestido. 

Na hora estaquei.

Allah! 

Eu o encarei surpresa. Embora eu carregasse a fama de ser uma 'ulalaat il-Haya (sem vergonha) ibn iš-šarmuuTa (filha da P...) E ele com certeza sabia desse meu passado, eu não esperava tamanha ousadia.  Saí de lá com pressa e com uma tremedeira danada. Despejei a bacia já cheia de água em um balde e fui em direção a Said. Quando nossos olhos se encontraram, percebi a hostilidade do seu olhar.

Allah! Será que ele tinha reparado no gesto de Samir? E agora achava que eu tinha dado tamanha liberdade para isso?

Se ele pensasse que se dane! Era apenas mais um na minha coleção de pessoas que estavam a ali para me julgar e sem se importar com minha defesa me condenar. 

Empinei meu nariz.

Meus passos incertos soaram pelo piso conforme eu caminhava na direção dele. Um misto de sentimentos por causa dos últimos acontecimentos, deixaram meus nervos em frangalhos. Por isso, minhas mãos tremiam quando me inclinei com a bacia e a coloquei sobre a mesa para ele lavar suas mãos. Despejei a água do jarro sobre as mãos dele, mas por causa do meu nervosismo, sem querer, deixei cair um pouco em seu colo. Na hora ele se remexeu quando sentiu o gelado nas pernas e barriga. 

Eu ergui o jarro e com meus olhos assustados e o encarei. Quando nossos olhos se encontraram, eu enrubesci.   

—Perdoe-me, foi sem querer. — Disse fugindo do seu olhar perturbadoramente quente e lhe entreguei a toalha. Ele enxugou a mão sem tirar seus olhos de mim, e depois passou no seu Dishdash molhado.

Quando me ergui para levar as coisas, fitei meu tio que me olhava com os olhos duros. Com certeza ele viu o que aconteceu.

Eu definitivamente tinha acordado com os dois pés esquerdos.

Fui em direção às mulheres e fiz esse mesmo processo com cada uma delas. Titia, Selima, Raissa e a sogra dela. Quando finalizei. Caminhei até a cozinha e peguei o bule e despejei o chá com menta em xícaras. Tive que fazer duas viagens até a cozinha, para que todos fossem servidos. Fiz tudo de cabeça baixa e de forma serviçal.

Samir foi o último a ser servido. Quando me inclinei para ele pegar a xícara, ele soprou no meu ouvido: "linda". Abruptamente eu me ergui. Meus olhos procuraram os dele, e eu o fuzilei com o olhar.  Mas isso ao contrário de inibi-lo, só o fez sorrir mais aberto para mim. A bandeja tremeu na minha mão e enfurecida me afastei dele em direção a cozinha, mas antes de alcançá-la pude ver os olhos negros de Said postados em mim. E pela hostilidade que vi neles, ele tinha percebido algo. 

Entrei na cozinha e agitada caminhei de um lado para o outro tentando me acalmar. Só porque eu tinha um passado vergonhoso que, com certeza Raissa contou para Samir, ele se achava no direito de me assediar.

O jantar todo foi assim, eu indo de lá para cá, servindo e sentindo todos tipos de olhares direcionados para mim: Especulativos, repressores, furiosos, curiosos...no final do jantar vi meu tio e minha tia cochichando enquanto olhavam para mim. Eu odiei aquilo. Era um aviso de uma conversa séria mais tarde comigo.

 Quando eu vim para cá, eu sabia que eu ia arder no mármore do inferno, mas juro que eu não sabia que seria tão insuportavelmente quente.

Agora todos estavam conversando. Meu tio dando atenção para o futuro sogro de Raissa e Said. E outro grupinho, Samir, sua mãe, titia, a noiva-cadáver e Selima.

Eu, andando de um lado para o outro tirando as coisas das mesas enquanto todos se socializavam. Numa dessas minhas idas para a cozinha, minha tia me segurou, suas mãos no meu braço como garras: 

—Jamile. Não pense que sairá impune disso. Eu vi quando derramou água no convidado. Isso foi imperdoável.

—Não derramei por querer.

—É esse ponto que eu queria chegar. Por que justo nele? Com certeza para chamar sua atenção. Pois saiba que sua vida social acabou. Acredite, ninguém vai te livrar das lições que terá conosco

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo