Narrado por Rei
Eu nasci no meio da merda. E fui me tornando ela. Não tive escolha. Quando se cresce cercado de morte, você aprende a lidar com ela cedo. Meu pai era apenas mais um nome riscado em uma lista de acertos. Minha mãe virou estatística antes de eu completar sete anos. Depois disso, o mundo me ensinou tudo que eu precisava saber: se você não impõe respeito, você vira alvo. Aos quinze, já tinham me dado apelido. "Reizinho", diziam. Achavam graça. Eu achava útil. Aos vinte e três, já mandava em quatro morros e dois bairros nobres, com sangue na camisa e grana no colchão. Agora... aos trinta, sou o nome sussurrado com medo, o homem que a polícia não encosta e que até os chefes das outras bocas observam com cuidado. O Rei. Mas naquela noite, enquanto o sangue escorria da minha cintura, enquanto sentia o peso da morte quase encostar no meu ombro, eu só conseguia pensar nela. Na médica de boca suja que me encarou como se eu fosse qualquer um. Mariana. Ela me tirou a bala. E levou um pedaço da minha paz com ela. [...] — Tem reunião com os vapores hoje às cinco, chefe — avisou Bruno, meu braço direito. Ele era fiel. Calado, preciso, eficiente. Matava quando eu mandava e calava quando era pra calar. Eu acenei, sentado na cadeira do meu escritório, um dos esconderijos aqui no complexo, onde nenhuma câmera chega, onde nem helicóptero da polícia ousa sobrevoar. A ferida no meu abdômen latejava. A médica tinha mãos firmes, isso eu não podia negar. Mas o que grudou na minha mente foi o jeito como ela me desafiou. Me viu sangrando e ainda teve a ousadia de me desprezar. "Espero que da próxima vez, a bala seja na cabeça", ela disse. E eu… gostei. [...] Às cinco em ponto, a sala encheu de fumaça de cigarro, cheiro de pólvora e vozes tensas. Os vapores chegaram — os mais próximos a mim, os homens de confiança que controlavam áreas estratégicas da facção. Entre eles, estava Kauan, responsável pelo abastecimento de armamento, e Tico, o que organizava a segurança dos pontos. — O Alemão tá vindo com tudo — disse Tico. — Ou a gente recua, ou vai ter corpo até nas vielas do lado nobre. — Recuar não é uma opção — respondi, firme. — Mas a gente tá com pouca munição... — Kauan começou, e eu ergui a mão. Silêncio. — Amanhã à noite, a gente fecha com o carregamento da fronteira. Bruno já organizou o transporte. Vocês só precisam manter o controle até lá. Depois disso... a gente toma o Morro dele de uma vez por todas. Eles assentiram, mas eu via no olhar de alguns o medo. Tinham razão. A guerra tava se formando como tempestade no horizonte. Mas o que me incomodava mais do que qualquer guerra... era o fato de Mariana não sair da minha cabeça. [...] — Você acha que ela vai abrir a boca? — perguntei a Bruno, mais tarde, quando estávamos a sós. Ele franziu a testa. — A médica? Assenti. — Não. Ela tem cara de marrenta, mas não é burra. Se ela fosse correr pra polícia, já teria feito. Mas... — Mas? — insisti. — Mas você tá diferente desde que viu ela. Tá me perguntando coisa demais sobre uma civil. Isso não é você, chefe. Ele me conhecia bem. Mas não o suficiente. — Manda alguém seguir ela. Discretamente. Quero saber com quem ela fala, onde trabalha, onde dorme. E se alguém chega perto demais. Bruno não questionou. Só assentiu. Era isso. Eu queria saber. Eu precisava saber. Não era amor. Não era nem desejo. Era controle. E Mariana tinha me tirado dele por alguns minutos. [...] Na madrugada seguinte, recebi as primeiras informações. Ela morava sozinha num apartamento pequeno, em cima de uma padaria. Quarto modesto. Cozinha organizada. Agenda cheia. Três plantões por semana. Duas noites de folga. Nenhum namorado aparente. Nenhum contato com a polícia. Boa garota. Mas algo nela ainda me incomodava. Uma altivez. Um orgulho. Aquilo me fazia querer quebrar as defesas dela com as mãos. — Chefe... — Bruno apareceu na porta de novo. — Tem movimentação no acesso sul. Gente armada, sem identificação. Merda. O Alemão começava a mostrar os dentes. — Manda descerem. Se for invasão, a gente segura aqui mesmo. Quero o chão daquele morro lavado antes do amanhecer. E assim foi. [...] O tiroteio durou horas. Doze mortos do lado de lá. Quatro do nosso. Um dos nossos mais antigos, Fabinho, tomou um tiro na cabeça. Não deu tempo nem de socorrer. Quando o silêncio voltou, a fumaça dos fuzis ainda flutuava no ar. A adrenalina me deixava insone. E, mesmo assim, meu pensamento não era só sobre o Alemão. Era sobre a porra da minha vida inteira. Sobre a médica que por ventura, sem nem saber onde entrou, foi arrastada para o meu mundo onde só há caos e sofrimento. [...] Eu a vi duas noites depois. Plantão da madrugada. Usei um dos meus caras mais discretos pra fingir ser segurança de hospital. Passou pela portaria, ficou no fundo da ala de emergência. Me enviou fotos dela atendendo, andando pelos corredores, brigando com outro residente. Temperamental. Linda. Mas o que me pegava mesmo era a raiva dela daquilo tudo. O desprezo. Era como se ela carregasse ódio do mundo inteiro nas costas, e ainda assim, tivesse escolhido salvar vidas. Incompatível. E por isso... interessante. — Chefe, quer que a gente encoste nela de novo? — Não — respondi. — Ainda não. Mas... me consiga o número pessoal dela. — Vai ligar? — Talvez. Talvez não. Talvez eu só queira saber que, se eu quiser, posso. [...] No meio disso tudo, o Alemão mandou recado. “Ou vocês recuam, ou vai morrer até criança de colo.” Pior escolha da vida dele. O plano que montei com os vapores era claro: vamos fingir um recuo. Desmobilizar dois pontos estratégicos. E quando eles invadirem, caem numa emboscada. Simples. Rápido. Mortal. Mas enquanto tudo era armado, meu olhar ainda voltava pra Mariana. — Por que você, hein, doutora? — murmurei sozinho, diante de uma garrafa de uísque. Ela mexia com algo dentro de mim que eu não sabia nomear. Mas sei reconhecer um vício quando vejo um. E ela era isso. Um vício começando a se instalar. E todo vício precisa ser controlado.Do terraço mais alto da minha casa, eu observava as luzes da cidade como quem observa um império que construiu com as próprias mãos. Lá embaixo, as vielas serpenteavam entre casas coladas, crianças brincando com o que restava de inocência, e os olhares atentos dos meus soldados protegendo as bocas. A guerra não para. Só muda de endereço. O Morro da Rocinha sempre foi meu. Desde o dia que eu coloquei o primeiro vapor armado lá, já era meu por direito. Quem entrava sem permissão, caía sem aviso. Agora o Alemão queria tomar o que é meu? Ele ia engolir o próprio sangue. Mas em meio a toda essa guerra eu não podia deixar de pensar nela. Mariana. A médica que salva vidas e não teme sequer a própria. Um dos caras que seguiu ela, o Menor L, me disse que ela saiu do plantão às três e foi direto pra casa. Chegou de táxi. Nem olhou pro lado. Subiu as escadas do prédio com o jaleco pendurado no braço. Ela mora a uns quinze minutos da base. Perto demais pra estar tão longe da minha mão.
Narrado por MarianaEu costumava amar o silêncio. A calma depois de um plantão pesado. O som abafado das minhas próprias batidas cardíacas enquanto caminhava de volta pra casa. Mas hoje, o silêncio me apavora.Não sei se é só impressão... ou se tem mesmo alguém me observando.Desde aquela noite em que costurei um traficante — o tal "Rei" da Rocinha — algo mudou. Não só dentro de mim, mas ao meu redor também. É como se a sombra dele tivesse me seguido pra casa. Como se os olhos dele nunca tivessem saído de cima de mim.Tentei ignorar. Tentei racionalizar.Mas até isso está falhando.[...]— Mariana, ei! — A voz de Camila, minha colega de plantão, me tirou do transe.— Oi, desculpa. Tô meio aérea hoje.— Percebi. Desde que chegou, tá parecendo que viu um fantasma.Camila era aquela pessoa que, mesmo no meio do caos, encontrava tempo pra rir. Médica também. Dois anos mais nova que eu, mas com uma coragem que eu invejava.— Só não dormi bem — menti.— É aquele caso da bala na cintura, né
Narrado por MarianaO hospital estava mais silencioso do que o normal naquela manhã.O tipo de silêncio que antecede alguma tempestade. Aquele que faz a gente olhar por cima do ombro, mesmo sabendo que não tem ninguém atrás. Que faz o coração apertar sem explicação. Eu já tinha aprendido a não ignorar esses sinais.Entrei na ala ortopédica com os olhos fixos na prancheta. João já tinha me avisado no começo do plantão que o paciente da fratura — aquele mesmo — ainda estava internado. "Alemão", ele disse, como quem cuspia o nome. "Tá lá ainda, cheio de sorrisinho."— Vai lá ver como ele tá? — João perguntou, com aquele ar maroto de sempre. — Ou vai evitar ele também?— Vou fazer o meu trabalho. É diferente.— Claro, doutora. Só cuidado, dizem que esse cara é mais perigoso do que parece.Respirei fundo.Não era novidade. Desde a primeira vez em que tratei daquela fratura no braço esquerdo — dias atrás —, eu já sentia o incômodo. Era mais do que o típico desconforto por tratar alguém envo
Narrado por ReiO rádio chiava no canto da sala enquanto eu terminava de enrolar mais um baseado. O vento da manhã ainda tava úmido, carregando aquela fumaça suja que sobe do asfalto molhado lá de baixo. A Rocinha respirava em silêncio, mas o que vinha dentro de mim era puro trovão. Desde a última noite eu não dormia direito. Aquela cena da Mariana mexendo nos curativos, os olhos dela cravados nos meus, ainda dançava na minha mente. Só que hoje... hoje o bagulho mudou de figura.— Chefe — Cebola entrou devagar, sem levantar a voz — a informação chegou.Levantei o olhar.— Fala logo.— A médica cuidou do Alemão. Ele deu entrada no Hospital da Rocinha, ficou sob os cuidados dela. E... teve caô.Fechei a mão devagar, o sangue fervendo até a ponta dos dedos.— Que tipo de caô?— Dizem que ele deu em cima dela. Pegou no braço dela, chamou de bonita. Uma enfermeira contou que ele tentou segurar a mão dela depois do curativo. Mariana deu uma cortada, saiu da sala, mas ele ficou falando merda
Narrado por MarianaO dia amanheceu abafado, e como de costume, eu já estava a caminho do Hospital antes mesmo do sol nascer completamente. O calor impregnava as paredes do morro como se o concreto fervesse, e dentro da minha cabeça, a sensação era a mesma. Os últimos plantões estavam me consumindo de uma forma cruel. Não apenas pelo número de casos, que aumentava diariamente, mas pela estrutura do hospital, que estava ruindo.Faltava tudo. Desde luvas descartáveis até antibióticos. As lâmpadas da emergência piscavam, algumas nem acendiam mais. O refeitório funcionava com doações, e o gerador falhava com frequência. A gente já tinha feito vaquinha, campanhas, pedidos desesperados a órgãos públicos, mas ninguém parecia se importar com um hospital enfiado no meio do morro.Era desesperador. Era humilhante.Entrei pela porta dos fundos como sempre, já que a recepção estava com a fechadura quebrada — mais um item na lista interminável de problemas. Cumprimentei alguns colegas com um aceno
Narrado por ReiEu não sou homem de dar satisfações. Mas tem uma coisa que me intriga: Mariana. Desde aquela primeira vez que a vi no hospital, com a mão suja de sangue e o olhar limpo, eu soube que ela seria problema. Só não imaginava que eu ia gostar tanto desse tipo de problema.Hoje, acordei com um pensamento fixo: provocar. Não com bala, com grito ou com ameaça. Provocar de outro jeito. Queria ver ela aqui, na minha casa. Queria ver ela em um ambiente que fosse meu — e só meu.Então mandei um recado."Preciso de atendimento urgente. É sobre o Rei."Simples. Rápido. Sabia que ela viria.Sentei na varanda, camisa aberta no peito, corrente balançando, o corpo esticado na poltrona de couro surrado. Os moleques lá embaixo abriram passagem assim que o carro dela subiu. Me dei o prazer de observar a movimentação do morro da Rocinha com a tranquilidade de quem reina. E naquele momento, eu era o próprio rei esperando sua visitante.A porta da sala se abriu com um estalo firme. Ela entrou.
Era início de plantão quando Mariana encontrou o bilhete. Estava preso discretamente entre os papéis da prancheta de prontuário, em sua sala. Não havia envelope. Apenas uma folha dobrada com pressa. As letras rabiscadas carregavam a ameaça como uma promessa escrita a sangue:"Eu vou voltar pra te buscar. E dessa vez, não vou sair sem você. – Alemão"O estômago dela afundou. O coração acelerou com uma sensação que misturava medo e raiva. Ele tinha sido expulso do hospital dias antes, após a descoberta de que era um rival do Rei, o traficante que dominava aquele território — e com quem Mariana havia selado um acordo perigoso, mas necessário.Com o bilhete apertado na mão, ela saiu da sala. Não tinha outra escolha. Precisava falar com ele.[...]A casa do Rei exalava poder. Mariana foi recebida por um dos vapores, o Nando, que logo a conduziu até o andar de cima. Ele não perguntou nada. Apenas fez um gesto com a cabeça e a deixou em frente à porta do escritório.Ela bateu duas vezes.— E
Narrado pelo ReiO sol nem tinha nascido ainda quando bateram na minha porta com urgência. Acordei com a sensação de que algo não estava certo. Depois da noite com a Mariana, do corpo dela gemendo debaixo do meu, pensei que ia ter um pouco de paz. Ledo engano. A guerra não dorme, muito menos quando se trata de proteger o que é meu.— Rei, tem um vapor que não voltou da entrega. Dizem que tavam esperando ele na viela, e sumiu. — o gerente da boca falava com os olhos arregalados.— Quem? — perguntei, com a voz grave e seca.— O Guto, o novo. Tava indo com o carregamento leve, só um pacote, mas sumiu. Uns disseram que viram um carro preto parado, com os vidros fumê...A informação não me desceu. O Guto não era burro. Não ia vacilar. Isso tinha dedo de gente de fora. E a primeira coisa que veio na minha cabeça foi o bilhete que a Mariana recebeu. O maldito bilhete.— "Eu volto. Mas volto pra te buscar. E não vai demorar."Língua do Alemão. Aquele filho da puta tava me testando. Mexer com