Capítulo 2

Narrado por Rei

Eu nasci no meio da merda.

E fui me tornando ela.

Não tive escolha. Quando se cresce cercado de morte, você aprende a lidar com ela cedo. Meu pai era apenas mais um nome riscado em uma lista de acertos. Minha mãe virou estatística antes de eu completar sete anos. Depois disso, o mundo me ensinou tudo que eu precisava saber: se você não impõe respeito, você vira alvo.

Aos quinze, já tinham me dado apelido. "Reizinho", diziam. Achavam graça. Eu achava útil.

Aos vinte e três, já mandava em quatro morros e dois bairros nobres, com sangue na camisa e grana no colchão.

Agora... aos trinta, sou o nome sussurrado com medo, o homem que a polícia não encosta e que até os chefes das outras bocas observam com cuidado.

O Rei.

Mas naquela noite, enquanto o sangue escorria da minha cintura, enquanto sentia o peso da morte quase encostar no meu ombro, eu só conseguia pensar nela.

Na médica de boca suja que me encarou como se eu fosse qualquer um.

Mariana.

Ela me tirou a bala. E levou um pedaço da minha paz com ela.

[...]

— Tem reunião com os vapores hoje às cinco, chefe — avisou Bruno, meu braço direito.

Ele era fiel. Calado, preciso, eficiente. Matava quando eu mandava e calava quando era pra calar.

Eu acenei, sentado na cadeira do meu escritório, um dos esconderijos aqui no complexo, onde nenhuma câmera chega, onde nem helicóptero da polícia ousa sobrevoar.

A ferida no meu abdômen latejava. A médica tinha mãos firmes, isso eu não podia negar. Mas o que grudou na minha mente foi o jeito como ela me desafiou.

Me viu sangrando e ainda teve a ousadia de me desprezar.

"Espero que da próxima vez, a bala seja na cabeça", ela disse.

E eu… gostei.

[...]

Às cinco em ponto, a sala encheu de fumaça de cigarro, cheiro de pólvora e vozes tensas. Os vapores chegaram — os mais próximos a mim, os homens de confiança que controlavam áreas estratégicas da facção. Entre eles, estava Kauan, responsável pelo abastecimento de armamento, e Tico, o que organizava a segurança dos pontos.

— O Alemão tá vindo com tudo — disse Tico. — Ou a gente recua, ou vai ter corpo até nas vielas do lado nobre.

— Recuar não é uma opção — respondi, firme.

— Mas a gente tá com pouca munição... — Kauan começou, e eu ergui a mão.

Silêncio.

— Amanhã à noite, a gente fecha com o carregamento da fronteira. Bruno já organizou o transporte. Vocês só precisam manter o controle até lá.

Depois disso... a gente toma o Morro dele de uma vez por todas.

Eles assentiram, mas eu via no olhar de alguns o medo. Tinham razão. A guerra tava se formando como tempestade no horizonte.

Mas o que me incomodava mais do que qualquer guerra... era o fato de Mariana não sair da minha cabeça.

[...]

— Você acha que ela vai abrir a boca? — perguntei a Bruno, mais tarde, quando estávamos a sós.

Ele franziu a testa.

— A médica?

Assenti.

— Não. Ela tem cara de marrenta, mas não é burra. Se ela fosse correr pra polícia, já teria feito. Mas...

— Mas? — insisti.

— Mas você tá diferente desde que viu ela. Tá me perguntando coisa demais sobre uma civil. Isso não é você, chefe.

Ele me conhecia bem. Mas não o suficiente.

— Manda alguém seguir ela. Discretamente. Quero saber com quem ela fala, onde trabalha, onde dorme. E se alguém chega perto demais.

Bruno não questionou. Só assentiu.

Era isso. Eu queria saber. Eu precisava saber.

Não era amor. Não era nem desejo.

Era controle.

E Mariana tinha me tirado dele por alguns minutos.

[...]

Na madrugada seguinte, recebi as primeiras informações. Ela morava sozinha num apartamento pequeno, em cima de uma padaria. Quarto modesto. Cozinha organizada. Agenda cheia. Três plantões por semana. Duas noites de folga. Nenhum namorado aparente. Nenhum contato com a polícia.

Boa garota.

Mas algo nela ainda me incomodava. Uma altivez. Um orgulho. Aquilo me fazia querer quebrar as defesas dela com as mãos.

— Chefe... — Bruno apareceu na porta de novo. — Tem movimentação no acesso sul. Gente armada, sem identificação.

Merda.

O Alemão começava a mostrar os dentes.

— Manda descerem. Se for invasão, a gente segura aqui mesmo. Quero o chão daquele morro lavado antes do amanhecer.

E assim foi.

[...]

O tiroteio durou horas.

Doze mortos do lado de lá.

Quatro do nosso.

Um dos nossos mais antigos, Fabinho, tomou um tiro na cabeça.

Não deu tempo nem de socorrer.

Quando o silêncio voltou, a fumaça dos fuzis ainda flutuava no ar. A adrenalina me deixava insone. E, mesmo assim, meu pensamento não era só sobre o Alemão.

Era sobre a porra da minha vida inteira.

Sobre a médica que por ventura, sem nem saber onde entrou, foi arrastada para o meu mundo onde só há caos e sofrimento.

[...]

Eu a vi duas noites depois.

Plantão da madrugada.

Usei um dos meus caras mais discretos pra fingir ser segurança de hospital. Passou pela portaria, ficou no fundo da ala de emergência. Me enviou fotos dela atendendo, andando pelos corredores, brigando com outro residente.

Temperamental.

Linda.

Mas o que me pegava mesmo era a raiva dela daquilo tudo. O desprezo. Era como se ela carregasse ódio do mundo inteiro nas costas, e ainda assim, tivesse escolhido salvar vidas.

Incompatível. E por isso... interessante.

— Chefe, quer que a gente encoste nela de novo?

— Não — respondi. — Ainda não. Mas... me consiga o número pessoal dela.

— Vai ligar?

— Talvez.

Talvez não.

Talvez eu só queira saber que, se eu quiser, posso.

[...]

No meio disso tudo, o Alemão mandou recado.

“Ou vocês recuam, ou vai morrer até criança de colo.”

Pior escolha da vida dele.

O plano que montei com os vapores era claro: vamos fingir um recuo. Desmobilizar dois pontos estratégicos.

E quando eles invadirem, caem numa emboscada.

Simples. Rápido. Mortal.

Mas enquanto tudo era armado, meu olhar ainda voltava pra Mariana.

— Por que você, hein, doutora? — murmurei sozinho, diante de uma garrafa de uísque.

Ela mexia com algo dentro de mim que eu não sabia nomear.

Mas sei reconhecer um vício quando vejo um.

E ela era isso.

Um vício começando a se instalar.

E todo vício precisa ser controlado.

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