Narrado pelo ReiA chuva caía fina naquela manhã cinzenta, mas minha cabeça estava um caos muito maior do que qualquer tempestade que pudesse desabar sobre esse morro. Mariana tinha sumido desde a noite passada. Não respondia minhas mensagens, não atendia minhas ligações. Nem os vapores posicionados na frente da casa dela conseguiram trocar uma palavra com ela. Mandou dizer que não queria ver ninguém. Nem a mim.Sabia que ia dar merda. Eu senti. Desde o momento em que ela apareceu naquela noite, com os olhos molhados e o rosto duro, segurando aquelas fotos nas mãos como se fossem a arma do seu próprio desencanto.Ela jogou sobre a mesa sem dizer uma palavra. E eu, estatelado, olhei as imagens em preto e branco, tiradas à distância. Eu e o moleque. E mais ao fundo, a mulher. Bruna. O passado que eu nunca quis misturar com o presente. E que agora tava explodindo bem no meio do meu futuro.— Você tem uma família? — ela cuspiu as palavras, como se elas queimassem na boca. — Um filho? Uma
Narrado por Mariana — Eu quero conhecer o seu filho. As palavras saíram antes mesmo de eu pensar. A voz firme, mesmo com o coração acelerado. O Rei me encarou como se não tivesse entendido, mas eu sustentei o olhar. Tanta coisa tinha acontecido. Tanta coisa ainda estava por vir. Eu precisava entender se havia espaço para mim naquela vida dele. Ou se eu era só mais um capítulo de uma história que já tinha começado antes de mim. — Tem certeza? — ele perguntou, com a voz mais grave do que de costume. — Se a gente vai continuar, eu preciso saber quem faz parte da sua vida. E quero conhecer os dois: o seu filho e a mãe dele. O olhar dele mudou. Aquilo o pegou de surpresa. Mas eu estava decidida. Eu precisava encarar de frente. Precisava saber se eu era forte o bastante para lidar com tudo isso. [...] A casa era simples, afastada do centro. Um sobrado com muros altos e um portão cinza. Aquele tipo de lugar que passa despercebido. Mas eu não estava lá para observar a fachada. Quando
Narrado por Rei O moleque mal tinha fechado a porta e eu já tava com a respiração pesada. A minha mente dava voltas indo até horas atrás, quando por pouco eu não perdi o Juízo e acabei com o pingo de felicidade que faz a minha existência melhor. Me virei devagar pra Bruna, que agora fingia estar distraída com o celular. Mas ela sabia. Sabia que tinha ido longe demais. — Só não te destruí aquela hora porque meu filho tava aqui — falei, sem elevar a voz, mas com a firmeza de quem não repete. — E porque a Mariana tava do lado. Mas cê sabe, né? Isso aqui… isso tem limite. E você passou dele. Ela me encarou, meio sem graça, tentando manter a pose, mas não durou nem cinco segundos. — Foi só uma piada, Rei… relaxa. — Não, Bruna. Não foi piada. Foi desrespeito. Foi provocação. Foi veneno. E eu engoli. Pela última vez. Dei um passo à frente, encurtando o espaço entre a gente. Ela deu um passo pra trás, quase tropeçou no tapete. — Escuta bem: daqui pra frente, quando eu quiser ver meu fi
Narrado por Mariana O sol ainda nem havia surgido quando abri os olhos, sentindo a ardência sutil nas costelas. O lençol estava bagunçado, meu corpo nu sob ele, e a brisa que entrava pela janela me lembrava da madrugada passada. Levei a mão até a lateral do quadril e fechei os olhos por um segundo. Era ali que doía mais. Levantei devagar, caminhando até o espelho do banheiro. E lá estavam: marcas roxas, vermelhidões espalhadas, pequenos hematomas como assinaturas da noite anterior. O espelho devolveu meu reflexo com sinceridade cruel. Meu pescoço, a parte interna das coxas, os punhos... Ele não economizava intensidade. Toquei um dos hematomas com a ponta dos dedos. O corpo reclamou, mas a minha mente… a minha mente se incendiou. Como era possível que aquilo doesse tanto e ao mesmo tempo me lembrasse de tanto prazer? Suspirei fundo, apoiando as mãos na pia. O Rei me consumia. Não havia outra forma de dizer. Ele era como um incêndio dentro de mim. Não deixava espaço pra nada alé
Os dias seguintes à discussão entre Mariana e o Rei se arrastaram como semanas silenciosas e pesadas. Ela havia decidido se afastar. Precisava pensar, respirar, se entender longe dele. Havia muita coisa em jogo. Seu coração estava um caos, sua mente, dividida entre razão e desejo. Não era apenas sobre amor. Era sobre sobrevivência, identidade, e o que ela estava disposta a abrir mão por esse homem.O Rei sentiu o golpe com mais intensidade do que esperava. Mandou flores, caixas com livros que ela adorava, bilhetes com frases sórdidas que ela amava quando saiam de sua boca. Nenhuma resposta. Nenhuma mensagem visualizada. E isso o fez mudar. A frieza retornou ao olhar dele, a brutalidade nas decisões se intensificou. Quem trabalhava com ele notou. Era o Rei de antes de Mariana. Um homem que não hesitava. Um homem sem freios.Mariana, por sua vez, se jogou de cabeça no trabalho. Mas não conseguia dormir. Os hematomas em seu corpo ainda marcavam a noite de entrega e dor que viveram juntos
Narrado por MarianaO enjoo matinal voltou. Três dias seguidos. Três manhãs se arrastando até o banheiro, a boca amarga e o estômago revirando, como se meu corpo estivesse tentando me contar algo que minha mente ainda não queria aceitar. Sentei na beirada da cama com o teste de farmácia entre os dedos trêmulos, o visor ainda com a linha cor-de-rosa me encarando como se gritasse: grávida.Grávida.Encostei as costas na parede, abracei os joelhos e deixei as lágrimas escorrerem silenciosas. Não era tristeza. Não era felicidade. Era medo, era choque. Era o mundo girando mais rápido do que eu podia acompanhar.Depois do tiro. Depois do susto. Depois de ser salva por um vapor que apareceu do nada — como sempre, enviado por ele. Depois de tudo isso, agora isso.Não dava. Não dava pra continuar no hospital como se nada estivesse acontecendo. Não dava pra viver como se eu não estivesse sendo caçada por alguém que queria me calar. Então, sem pensar muito, pedi licença. Arrumei uma mala pequena
Narrado por MarianaO dia começou igual aos outros: a luz fraca entrando pelas frestas das janelas, cortinas grossas mal desenhadas, e o leve eco dos passos dos vapores nos corredores. Eu abri os olhos e senti novamente o peso enorme da casa segura. As paredes me cercavam, mas não havia muralhas de pedra — apenas seguranças, câmeras e portas blindadas. Na prática, era um castelo, mas para mim parecia uma gaiola.Levantei devagar, observando a sala silenciosa. Havia um sofá enorme, uma televisão sempre ligada em canais que falavam de violência e “soluções”, e à frente, duas portas que davam para quartos trancados. Cada manhã, eu fazia o mesmo caminho: passava pelos vapores que me cumprimentavam com acenos contidos — Tavinho, Aline, Tuca. Eles eram leais ao Rei, carregavam armas e promessas de proteção, mas não trocavam uma palavra além da necessidade. A cada vez que eu cravava os olhos em suas fardas escuras, sentia um frio na espinha. Não era hostilidade; era o reconhecimento de que e
Narrado por MarianaEu já devia ter aprendido que paz demais era sinal de que alguma merda estava prestes a acontecer.A noite estava abafada, o plantão corria num ritmo quase entediante no Hospital Geral do Norte, e o café da máquina tinha gosto de arrependimento. Eu me recostava na parede do corredor, revisando prontuários, tentando manter a mente ocupada com algo que não me lembrasse o porquê de eu estar ali — ou melhor, o que eu estava tentando esquecer.Foi quando o rádio interno chiou, seguido por passos apressados e olhares trocados entre os plantonistas. Antes que eu pudesse entender, um dos seguranças do hospital apareceu com olhos arregalados, suando frio.— Dra. Mariana... é melhor a senhora vir comigo.— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, já me colocando de pé, instintivamente ajustando o jaleco.Ele hesitou. — Não é... comum. Mas... ele tá pedindo pela senhora.— Ele quem?O segurança engoliu em seco.— O Rei.Eu congelei. O nome soou como um trovão. Eu já tinha ouvido