A médica do tráfico
A médica do tráfico
Por: Luiza Marques
Capítulo 1

Narrado por Mariana

Eu já devia ter aprendido que paz demais era sinal de que alguma merda estava prestes a acontecer.

A noite estava abafada, o plantão corria num ritmo quase entediante no Hospital Geral do Norte, e o café da máquina tinha gosto de arrependimento. Eu me recostava na parede do corredor, revisando prontuários, tentando manter a mente ocupada com algo que não me lembrasse o porquê de eu estar ali — ou melhor, o que eu estava tentando esquecer.

Foi quando o rádio interno chiou, seguido por passos apressados e olhares trocados entre os plantonistas. Antes que eu pudesse entender, um dos seguranças do hospital apareceu com olhos arregalados, suando frio.

— Dra. Mariana... é melhor a senhora vir comigo.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, já me colocando de pé, instintivamente ajustando o jaleco.

Ele hesitou. — Não é... comum. Mas... ele tá pedindo pela senhora.

— Ele quem?

O segurança engoliu em seco.

— O Rei.

Eu congelei. O nome soou como um trovão. Eu já tinha ouvido histórias, todos tinham. O homem que comandava o tráfico na zona norte da cidade como se fosse um império. Ninguém ousava contrariá-lo. E agora, supostamente, ele estava pedindo por mim?

Fui levada até a saída dos fundos do hospital, onde uma SUV preta, com vidros escurecidos, me esperava com o motor ligado. Dois homens armados abriram a porta traseira.

— Entra. Agora.

— Isso é sequestro?

— Isso é um favor que você vai nos fazer, doutora. E vai ser melhor pra todo mundo se você colaborar.

Minha consciência gritava para correr, mas o instinto de sobrevivência falou mais alto. Entrei. O carro arrancou em disparada.

[...]

O barraco onde me levaram era discreto, enfiado em algum beco da favela onde nem a polícia ousava entrar. O cheiro de sangue e pólvora dominava o ambiente. E ali, deitado sobre um colchão manchado, estava ele.

O Rei.

Tinha um ferimento feio na lateral do abdômen, e sangue escorrendo sem trégua. Mas mesmo assim, seus olhos estavam afiados, cravados em mim, como se me analisasse peça por peça.

— Até que enfim — ele resmungou. — Pensei que médicos eram mais rápidos.

— Pensei que traficantes sabiam desviar de balas — rebati, ajoelhando ao lado dele com a maleta de emergência que me enfiaram às pressas nas mãos.

Houve um murmúrio entre os capangas. Ele sorriu de canto, cínico.

— Tem língua afiada, doutora. Isso vai te trazer problemas.

— E você tá sangrando, então acho que seus problemas são maiores que os meus.

Ele não respondeu de imediato. Me observou enquanto eu cortava a camisa ensanguentada dele, analisava o ferimento, limpava o excesso de sangue e verificava se o projétil ainda estava alojado. Estava.

— Vai conseguir tirar? — perguntou, como quem desafia.

— Vou tentar. A menos que prefira morrer devagar.

— Você é sempre assim? Irritante e convencida?

— Só quando sou arrancada do hospital no meio da noite pra atender um criminoso.

O silêncio se instalou por alguns segundos. Senti o olhar dele cravado em mim enquanto eu enfiava a pinça no ferimento com a precisão de quem já fez isso dezenas de vezes — mas nunca nessas condições.

Ele não gritou. Nem gemeu. Só contraiu o maxilar.

— Dói, né? — murmurei, sem olhar pra ele. — Pena que não trouxe anestesia.

— Eu gosto da dor.

Arrogante. Frio. E perigoso. Era assim que ele era descrito, e nada na sua expressão contrariava isso. Mas havia algo ali, um brilho nos olhos, um mínimo de curiosidade... como se ele tentasse entender por que eu não tremia diante dele.

Talvez porque eu já estivesse quebrada demais por dentro pra ter medo de mais alguma coisa.

[...]

Depois de remover a bala, estancar o sangramento e fazer um curativo improvisado, me levantei. Minhas luvas estavam sujas de sangue, o jaleco manchado, a alma cansada.

— Já terminou? — ele perguntou, ainda deitado.

— Já. Vai viver. Pra continuar fazendo as merdas que faz, imagino.

— Você fala como se soubesse da minha vida.

— Eu sei o suficiente pra querer distância.

Ele soltou um riso baixo. — É... talvez você seja interessante, doutora.

Dei meia-volta. Não queria ouvir mais nada.

— Alguém me leva de volta — falei, sem olhar pra trás.

Um dos homens assentiu. Mas antes de sair, ouvi a voz do Rei novamente, baixa, rouca:

— Mariana, né?

Parei por um segundo, surpresa por ele lembrar meu nome.

— Espero não precisar de você de novo. Mas se precisar... eu vou chamar.

Virei o rosto só o suficiente pra encará-lo.

— E eu espero que da próxima vez, a bala seja na cabeça.

Ele sorriu. Um sorriso perigoso. Quase divertido.

— Gosto de você.

[...]

Naquela noite, de volta ao hospital, lavei as mãos mais vezes do que o necessário. Mas o sangue dele ainda parecia estar ali. Nas minhas mãos. Na minha memória. No meu corpo inteiro.

E eu sabia. Aquilo não era o fim.

Era o começo.

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