Narrado por Mariana
Eu já devia ter aprendido que paz demais era sinal de que alguma merda estava prestes a acontecer. A noite estava abafada, o plantão corria num ritmo quase entediante no Hospital Geral do Norte, e o café da máquina tinha gosto de arrependimento. Eu me recostava na parede do corredor, revisando prontuários, tentando manter a mente ocupada com algo que não me lembrasse o porquê de eu estar ali — ou melhor, o que eu estava tentando esquecer. Foi quando o rádio interno chiou, seguido por passos apressados e olhares trocados entre os plantonistas. Antes que eu pudesse entender, um dos seguranças do hospital apareceu com olhos arregalados, suando frio. — Dra. Mariana... é melhor a senhora vir comigo. — Aconteceu alguma coisa? — perguntei, já me colocando de pé, instintivamente ajustando o jaleco. Ele hesitou. — Não é... comum. Mas... ele tá pedindo pela senhora. — Ele quem? O segurança engoliu em seco. — O Rei. Eu congelei. O nome soou como um trovão. Eu já tinha ouvido histórias, todos tinham. O homem que comandava o tráfico na zona norte da cidade como se fosse um império. Ninguém ousava contrariá-lo. E agora, supostamente, ele estava pedindo por mim? Fui levada até a saída dos fundos do hospital, onde uma SUV preta, com vidros escurecidos, me esperava com o motor ligado. Dois homens armados abriram a porta traseira. — Entra. Agora. — Isso é sequestro? — Isso é um favor que você vai nos fazer, doutora. E vai ser melhor pra todo mundo se você colaborar. Minha consciência gritava para correr, mas o instinto de sobrevivência falou mais alto. Entrei. O carro arrancou em disparada. [...] O barraco onde me levaram era discreto, enfiado em algum beco da favela onde nem a polícia ousava entrar. O cheiro de sangue e pólvora dominava o ambiente. E ali, deitado sobre um colchão manchado, estava ele. O Rei. Tinha um ferimento feio na lateral do abdômen, e sangue escorrendo sem trégua. Mas mesmo assim, seus olhos estavam afiados, cravados em mim, como se me analisasse peça por peça. — Até que enfim — ele resmungou. — Pensei que médicos eram mais rápidos. — Pensei que traficantes sabiam desviar de balas — rebati, ajoelhando ao lado dele com a maleta de emergência que me enfiaram às pressas nas mãos. Houve um murmúrio entre os capangas. Ele sorriu de canto, cínico. — Tem língua afiada, doutora. Isso vai te trazer problemas. — E você tá sangrando, então acho que seus problemas são maiores que os meus. Ele não respondeu de imediato. Me observou enquanto eu cortava a camisa ensanguentada dele, analisava o ferimento, limpava o excesso de sangue e verificava se o projétil ainda estava alojado. Estava. — Vai conseguir tirar? — perguntou, como quem desafia. — Vou tentar. A menos que prefira morrer devagar. — Você é sempre assim? Irritante e convencida? — Só quando sou arrancada do hospital no meio da noite pra atender um criminoso. O silêncio se instalou por alguns segundos. Senti o olhar dele cravado em mim enquanto eu enfiava a pinça no ferimento com a precisão de quem já fez isso dezenas de vezes — mas nunca nessas condições. Ele não gritou. Nem gemeu. Só contraiu o maxilar. — Dói, né? — murmurei, sem olhar pra ele. — Pena que não trouxe anestesia. — Eu gosto da dor. Arrogante. Frio. E perigoso. Era assim que ele era descrito, e nada na sua expressão contrariava isso. Mas havia algo ali, um brilho nos olhos, um mínimo de curiosidade... como se ele tentasse entender por que eu não tremia diante dele. Talvez porque eu já estivesse quebrada demais por dentro pra ter medo de mais alguma coisa. [...] Depois de remover a bala, estancar o sangramento e fazer um curativo improvisado, me levantei. Minhas luvas estavam sujas de sangue, o jaleco manchado, a alma cansada. — Já terminou? — ele perguntou, ainda deitado. — Já. Vai viver. Pra continuar fazendo as merdas que faz, imagino. — Você fala como se soubesse da minha vida. — Eu sei o suficiente pra querer distância. Ele soltou um riso baixo. — É... talvez você seja interessante, doutora. Dei meia-volta. Não queria ouvir mais nada. — Alguém me leva de volta — falei, sem olhar pra trás. Um dos homens assentiu. Mas antes de sair, ouvi a voz do Rei novamente, baixa, rouca: — Mariana, né? Parei por um segundo, surpresa por ele lembrar meu nome. — Espero não precisar de você de novo. Mas se precisar... eu vou chamar. Virei o rosto só o suficiente pra encará-lo. — E eu espero que da próxima vez, a bala seja na cabeça. Ele sorriu. Um sorriso perigoso. Quase divertido. — Gosto de você. [...] Naquela noite, de volta ao hospital, lavei as mãos mais vezes do que o necessário. Mas o sangue dele ainda parecia estar ali. Nas minhas mãos. Na minha memória. No meu corpo inteiro. E eu sabia. Aquilo não era o fim. Era o começo.Narrado por ReiEu nasci no meio da merda.E fui me tornando ela.Não tive escolha. Quando se cresce cercado de morte, você aprende a lidar com ela cedo. Meu pai era apenas mais um nome riscado em uma lista de acertos. Minha mãe virou estatística antes de eu completar sete anos. Depois disso, o mundo me ensinou tudo que eu precisava saber: se você não impõe respeito, você vira alvo.Aos quinze, já tinham me dado apelido. "Reizinho", diziam. Achavam graça. Eu achava útil.Aos vinte e três, já mandava em quatro morros e dois bairros nobres, com sangue na camisa e grana no colchão.Agora... aos trinta, sou o nome sussurrado com medo, o homem que a polícia não encosta e que até os chefes das outras bocas observam com cuidado.O Rei.Mas naquela noite, enquanto o sangue escorria da minha cintura, enquanto sentia o peso da morte quase encostar no meu ombro, eu só conseguia pensar nela.Na médica de boca suja que me encarou como se eu fosse qualquer um.Mariana.Ela me tirou a bala. E levou
Do terraço mais alto da minha casa, eu observava as luzes da cidade como quem observa um império que construiu com as próprias mãos. Lá embaixo, as vielas serpenteavam entre casas coladas, crianças brincando com o que restava de inocência, e os olhares atentos dos meus soldados protegendo as bocas. A guerra não para. Só muda de endereço. O Morro da Rocinha sempre foi meu. Desde o dia que eu coloquei o primeiro vapor armado lá, já era meu por direito. Quem entrava sem permissão, caía sem aviso. Agora o Alemão queria tomar o que é meu? Ele ia engolir o próprio sangue. Mas em meio a toda essa guerra eu não podia deixar de pensar nela. Mariana. A médica que salva vidas e não teme sequer a própria. Um dos caras que seguiu ela, o Menor L, me disse que ela saiu do plantão às três e foi direto pra casa. Chegou de táxi. Nem olhou pro lado. Subiu as escadas do prédio com o jaleco pendurado no braço. Ela mora a uns quinze minutos da base. Perto demais pra estar tão longe da minha mão.
Narrado por MarianaEu costumava amar o silêncio. A calma depois de um plantão pesado. O som abafado das minhas próprias batidas cardíacas enquanto caminhava de volta pra casa. Mas hoje, o silêncio me apavora.Não sei se é só impressão... ou se tem mesmo alguém me observando.Desde aquela noite em que costurei um traficante — o tal "Rei" da Rocinha — algo mudou. Não só dentro de mim, mas ao meu redor também. É como se a sombra dele tivesse me seguido pra casa. Como se os olhos dele nunca tivessem saído de cima de mim.Tentei ignorar. Tentei racionalizar.Mas até isso está falhando.[...]— Mariana, ei! — A voz de Camila, minha colega de plantão, me tirou do transe.— Oi, desculpa. Tô meio aérea hoje.— Percebi. Desde que chegou, tá parecendo que viu um fantasma.Camila era aquela pessoa que, mesmo no meio do caos, encontrava tempo pra rir. Médica também. Dois anos mais nova que eu, mas com uma coragem que eu invejava.— Só não dormi bem — menti.— É aquele caso da bala na cintura, né
Narrado por MarianaO hospital estava mais silencioso do que o normal naquela manhã.O tipo de silêncio que antecede alguma tempestade. Aquele que faz a gente olhar por cima do ombro, mesmo sabendo que não tem ninguém atrás. Que faz o coração apertar sem explicação. Eu já tinha aprendido a não ignorar esses sinais.Entrei na ala ortopédica com os olhos fixos na prancheta. João já tinha me avisado no começo do plantão que o paciente da fratura — aquele mesmo — ainda estava internado. "Alemão", ele disse, como quem cuspia o nome. "Tá lá ainda, cheio de sorrisinho."— Vai lá ver como ele tá? — João perguntou, com aquele ar maroto de sempre. — Ou vai evitar ele também?— Vou fazer o meu trabalho. É diferente.— Claro, doutora. Só cuidado, dizem que esse cara é mais perigoso do que parece.Respirei fundo.Não era novidade. Desde a primeira vez em que tratei daquela fratura no braço esquerdo — dias atrás —, eu já sentia o incômodo. Era mais do que o típico desconforto por tratar alguém envo
Narrado por ReiO rádio chiava no canto da sala enquanto eu terminava de enrolar mais um baseado. O vento da manhã ainda tava úmido, carregando aquela fumaça suja que sobe do asfalto molhado lá de baixo. A Rocinha respirava em silêncio, mas o que vinha dentro de mim era puro trovão. Desde a última noite eu não dormia direito. Aquela cena da Mariana mexendo nos curativos, os olhos dela cravados nos meus, ainda dançava na minha mente. Só que hoje... hoje o bagulho mudou de figura.— Chefe — Cebola entrou devagar, sem levantar a voz — a informação chegou.Levantei o olhar.— Fala logo.— A médica cuidou do Alemão. Ele deu entrada no Hospital da Rocinha, ficou sob os cuidados dela. E... teve caô.Fechei a mão devagar, o sangue fervendo até a ponta dos dedos.— Que tipo de caô?— Dizem que ele deu em cima dela. Pegou no braço dela, chamou de bonita. Uma enfermeira contou que ele tentou segurar a mão dela depois do curativo. Mariana deu uma cortada, saiu da sala, mas ele ficou falando merda
Narrado por MarianaO dia amanheceu abafado, e como de costume, eu já estava a caminho do Hospital antes mesmo do sol nascer completamente. O calor impregnava as paredes do morro como se o concreto fervesse, e dentro da minha cabeça, a sensação era a mesma. Os últimos plantões estavam me consumindo de uma forma cruel. Não apenas pelo número de casos, que aumentava diariamente, mas pela estrutura do hospital, que estava ruindo.Faltava tudo. Desde luvas descartáveis até antibióticos. As lâmpadas da emergência piscavam, algumas nem acendiam mais. O refeitório funcionava com doações, e o gerador falhava com frequência. A gente já tinha feito vaquinha, campanhas, pedidos desesperados a órgãos públicos, mas ninguém parecia se importar com um hospital enfiado no meio do morro.Era desesperador. Era humilhante.Entrei pela porta dos fundos como sempre, já que a recepção estava com a fechadura quebrada — mais um item na lista interminável de problemas. Cumprimentei alguns colegas com um aceno
Narrado por ReiEu não sou homem de dar satisfações. Mas tem uma coisa que me intriga: Mariana. Desde aquela primeira vez que a vi no hospital, com a mão suja de sangue e o olhar limpo, eu soube que ela seria problema. Só não imaginava que eu ia gostar tanto desse tipo de problema.Hoje, acordei com um pensamento fixo: provocar. Não com bala, com grito ou com ameaça. Provocar de outro jeito. Queria ver ela aqui, na minha casa. Queria ver ela em um ambiente que fosse meu — e só meu.Então mandei um recado."Preciso de atendimento urgente. É sobre o Rei."Simples. Rápido. Sabia que ela viria.Sentei na varanda, camisa aberta no peito, corrente balançando, o corpo esticado na poltrona de couro surrado. Os moleques lá embaixo abriram passagem assim que o carro dela subiu. Me dei o prazer de observar a movimentação do morro da Rocinha com a tranquilidade de quem reina. E naquele momento, eu era o próprio rei esperando sua visitante.A porta da sala se abriu com um estalo firme. Ela entrou.
Era início de plantão quando Mariana encontrou o bilhete. Estava preso discretamente entre os papéis da prancheta de prontuário, em sua sala. Não havia envelope. Apenas uma folha dobrada com pressa. As letras rabiscadas carregavam a ameaça como uma promessa escrita a sangue:"Eu vou voltar pra te buscar. E dessa vez, não vou sair sem você. – Alemão"O estômago dela afundou. O coração acelerou com uma sensação que misturava medo e raiva. Ele tinha sido expulso do hospital dias antes, após a descoberta de que era um rival do Rei, o traficante que dominava aquele território — e com quem Mariana havia selado um acordo perigoso, mas necessário.Com o bilhete apertado na mão, ela saiu da sala. Não tinha outra escolha. Precisava falar com ele.[...]A casa do Rei exalava poder. Mariana foi recebida por um dos vapores, o Nando, que logo a conduziu até o andar de cima. Ele não perguntou nada. Apenas fez um gesto com a cabeça e a deixou em frente à porta do escritório.Ela bateu duas vezes.— E