Capítulo 3

Do terraço mais alto da minha casa, eu observava as luzes da cidade como quem observa um império que construiu com as próprias mãos. Lá embaixo, as vielas serpenteavam entre casas coladas, crianças brincando com o que restava de inocência, e os olhares atentos dos meus soldados protegendo as bocas. A guerra não para. Só muda de endereço.

O Morro da Rocinha sempre foi meu. Desde o dia que eu coloquei o primeiro vapor armado lá, já era meu por direito. Quem entrava sem permissão, caía sem aviso.

Agora o Alemão queria tomar o que é meu? Ele ia engolir o próprio sangue.

Mas em meio a toda essa guerra eu não podia deixar de pensar nela.

Mariana.

A médica que salva vidas e não teme sequer a própria.

Um dos caras que seguiu ela, o Menor L, me disse que ela saiu do plantão às três e foi direto pra casa. Chegou de táxi. Nem olhou pro lado. Subiu as escadas do prédio com o jaleco pendurado no braço.

Ela mora a uns quinze minutos da base. Perto demais pra estar tão longe da minha mão.

Peguei o celular. O número dela já tava salvo. Eu podia mandar uma mensagem. Ou ligar. Dizer que precisava rever o corte da cirurgia, inventar alguma desculpa idiota só pra escutar a voz dela de novo.

Mas não.

Ainda não.

Não posso parecer fraco. Não posso deixar que ela saiba o efeito que me causa. A última pessoa que me fez sentir algo morreu com um tiro nas costas por confiar demais.

E Mariana... ela me fazia baixar a guarda. Isso era perigoso demais.

[...]

Na manhã seguinte, os vapores chegaram com o mapa final do plano.

— A gente vai abrir espaço falso aqui — disse Kauan, apontando para uma viela ao sul do Morro. — Eles vão pensar que a gente recuou. Quando subirem, a gente fecha o cerco com os homens nos becos paralelos.

— E as famílias que moram ali? — perguntei.

Silêncio.

— Evacuem discretamente. Coloquem aviso de gás, vazamento, o caralho que for. Tirem todo mundo. Se tiver criança ferida, a mídia vem igual urubu. Eu não quero isso.

— Pode deixar, Rei.

Fui claro. Sempre sou. Eu domino pela violência, sim. Mas também pelo controle. Pela estratégia. Eu não sou mais um bandido qualquer com uma Glock na cintura. Eu sou o nome que eles temem.

E mesmo assim… a porra da médica não pareceu nem um pouco assustada.

Isso, sim, me tirava o sono.

[...]

Na mesma noite, voltei a vê-la. De longe.

Ela saiu do hospital, cabelo preso num coque frouxo, a expressão exausta, os ombros caídos. Andava rápido, como se estivesse fugindo de tudo. Mas tinha uma leveza no jeito que mexia os dedos, como se ainda estivesse segurando um bisturi invisível.

Eu estava dentro de um carro estacionado a poucos metros. Vidros escuros. Ela não fazia ideia de que era observada.

— Você não devia estar aqui, chefe — avisou Bruno, no banco do carona. — Muito exposto.

— Ela mexe com o que não devia.

— Vai fazer o quê com ela?

— Nada ainda. Só... quero entender.

— Entender?

— O que me incomoda nela. O que me prende. O que me faz não conseguir parar de pensar desde que ela encostou a mão em mim.

Bruno soltou um suspiro e olhou pela janela. Ele sabia. Eu estava à beira de um erro. Mas não me importava.

No amor ou na guerra, a fraqueza começa nos olhos. E os dela me deixaram vulnerável.

[...]

— Ela pode ser uma ameaça — disse Tico, mais tarde naquela semana, quando as movimentações do Alemão ficaram mais intensas.

— Mariana? — perguntei.

— Não confio em gente de fora. E ela atendeu você. Pode ter visto demais. Pode ter escutado alguma coisa no hospital.

— Ela é só uma médica.

— É civil. E civil, uma hora ou outra, corre pra polícia.

Fiquei em silêncio.

— Quer que a gente dê um susto nela? — ele ofereceu.

— Não.

— Um aviso só. Pra ficar quieta.

— Eu disse não, caralho.

A voz saiu mais alta do que o necessário. Tico recuou, olhos arregalados.

— Tá gamado nela, Rei? — ele soltou com um meio sorriso de deboche.

Levantei devagar. Cruzei a sala em dois passos e, num movimento seco, enfiei a mão no colarinho dele, puxando até encostar na parede.

— Repete.

— Eu... eu tava brincando, chefe.

— Eu não brinco, Tico. Nem sobre mulher. Nem sobre território.

Soltei ele e me afastei.

— Ela não é minha. Ainda. Mas se algum de vocês encostar um dedo nela sem minha ordem... eu corto a mão. E penduro no portão da favela.

O silêncio que caiu depois disso foi absoluto.

[...]

Naquela noite, sonhei com ela.

Mariana deitada sobre mim, os olhos me encarando com raiva e desejo. As mãos dela no meu peito, como da primeira vez, mas dessa vez não pra estancar o sangue... e sim pra me explorar, como se quisesse descobrir onde eu escondia minha fraqueza.

Acordei suado, duro, enraivecido com meu próprio corpo.

Aquilo tava virando obsessão.

E obsessão me torna imprevisível.

Mas não me importava.

Ela já era minha. Só não sabia ainda.

[...]

O plano contra o Alemão foi executado dois dias depois.

Exatamente como previmos: eles entraram confiantes pela viela aberta. Achando que tinham vencido. Achando que eu era só mais um bandido arrogante.

Cercamos. Fuzis engatilhados, emboscada perfeita. Nenhum sobreviveu.

O Morro da Rocinha continua nosso.

Mas não houve comemoração. Não por parte de mim.

Eu voltei pro terraço, peguei o celular e abri a última foto enviada por Menor L.

Mariana, sentada numa escadaria, com uma garrafa d'água na mão, rindo de algo que alguém disse.

Aquela risada…

A primeira vez que eu vi.

E jurei ali que faria qualquer coisa pra ouvir de novo.

Mas dessa vez, só pra mim.

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