Narrado por Mariana
Eu costumava amar o silêncio. A calma depois de um plantão pesado. O som abafado das minhas próprias batidas cardíacas enquanto caminhava de volta pra casa. Mas hoje, o silêncio me apavora. Não sei se é só impressão... ou se tem mesmo alguém me observando. Desde aquela noite em que costurei um traficante — o tal "Rei" da Rocinha — algo mudou. Não só dentro de mim, mas ao meu redor também. É como se a sombra dele tivesse me seguido pra casa. Como se os olhos dele nunca tivessem saído de cima de mim. Tentei ignorar. Tentei racionalizar. Mas até isso está falhando. [...] — Mariana, ei! — A voz de Camila, minha colega de plantão, me tirou do transe. — Oi, desculpa. Tô meio aérea hoje. — Percebi. Desde que chegou, tá parecendo que viu um fantasma. Camila era aquela pessoa que, mesmo no meio do caos, encontrava tempo pra rir. Médica também. Dois anos mais nova que eu, mas com uma coragem que eu invejava. — Só não dormi bem — menti. — É aquele caso da bala na cintura, né? O cara que te olhou como se fosse dono do mundo? Suspirei. — É. — Acha que ele vai aparecer de novo? — Não sei. Espero que não. Mas eu sabia que ele ia. Não que eu quisesse. Mas eu sentia. Algo nele não se limitava a um encontro. [...] O Hospital da Rocinha é pequeno, sufocado, mas cheio de gente com coração grande. Tem suas rachaduras, seus corredores estreitos e equipamentos sucateados, mas também tem vida. Resistência. Ali, entre os estalos do ar-condicionado quebrado e o cheiro ácido de sangue e álcool, a gente tenta fazer o impossível todos os dias. Eu andava pelos corredores como quem anda por um campo minado. Não pelas urgências clínicas, mas pela dúvida constante de quem pode estar vendo meus passos. — Mariana! — dessa vez foi o João, enfermeiro, parceiro de guerra desde meu primeiro dia naquele hospital. Ele vinha correndo com prontuários na mão. — Chegou mais um baleado da Estrada da Gávea. — É grave? — Fratura exposta. Perna direita. Mas tá consciente. — Alguma identificação? — Só disseram que era "do Alemão". Parei por um segundo. "Alemão" era nome que corria entre cochichos. O rival. O inimigo do Rei. Não que eu me importasse com lados. Pra mim, eram só nomes diferentes do mesmo pesadelo. — Leva pra sala 3. Já vou. [...] Enquanto costurava os músculos dilacerados do rapaz, meus pensamentos voltavam à noite do Rei. Os olhos dele. A voz baixa, carregada de arrogância. O modo como me desafiava com cada frase. E, mesmo tentando evitar, me peguei olhando pro corredor. Duas vezes. Três. — Tá tudo bem, Mariana? — perguntou João. Assenti. Mas não estava. Senti um arrepio subir pela nuca, uma sensação gélida. Como se houvesse alguém me observando da porta entreaberta. Olhei de novo. Ninguém. Mas o vazio parecia pesado. [...] Na hora do intervalo, sentei no refeitório com Camila e João. A televisão antiga do canto transmitia um jornal qualquer, com uma matéria sobre violência nas comunidades do Rio. Mais uma. — Você acha que tem volta? — perguntei, encarando a tela. — Como assim? — disse Camila. — Gente como ele. O Rei. Você acha que eles nascem assim ou são criados assim? — Os dois, talvez — respondeu João. — Mas por que tá perguntando isso agora? — Porque ele não é só um nome. Ele respira aqui dentro. Ele anda entre a gente. E a gente finge que não vê. Camila me olhou séria. — Você tá com medo? Não respondi. Bebi um gole do café morno. [...] Quando saí do hospital, já era noite. O ar estava pesado. A rua, quase deserta. Apressei o passo, apertando a bolsa contra o corpo. O trajeto até meu pequeno apartamento era curto, mas naquela noite parecia um labirinto. Vi um vulto. Atrás de uma moto estacionada. Parado. Parecia alguém apenas mexendo no celular. Mas eu senti. O corpo dele virou sutilmente quando passei. A cabeça acompanhou meus passos. Não olhei pra trás. Mas meus batimentos denunciaram o pânico. Corri os últimos metros e entrei em casa batendo a porta com força. Apoiei a testa na madeira. — Isso tá na sua cabeça, Mariana... — sussurrei pra mim mesma. — Isso tá na sua cabeça... Mas no fundo, eu sabia. Ele tava me vigiando. O Rei era como um pesadelo ambulante, daqueles que você se esforça ao máximo para não ter. [...] Antes de dormir, abri a janela. A Rocinha se espalhava abaixo de mim, viva mesmo de noite, com as luzes improvisadas e o som de motos ao longe. Entre as sombras, juro que vi alguém no telhado do prédio da frente. Sentado. Imóvel. Me encarando. Pisquei. Me afastei. Olhei de novo. Nada. Mas o sentimento ficou. [...] Deitei e abracei o travesseiro como uma criança que teme o escuro. A última coisa que pensei antes de dormir foi: se ele estiver me observando… o que exatamente ele quer de mim? E o mais assustador? Parte de mim queria saber.Narrado por MarianaO hospital estava mais silencioso do que o normal naquela manhã.O tipo de silêncio que antecede alguma tempestade. Aquele que faz a gente olhar por cima do ombro, mesmo sabendo que não tem ninguém atrás. Que faz o coração apertar sem explicação. Eu já tinha aprendido a não ignorar esses sinais.Entrei na ala ortopédica com os olhos fixos na prancheta. João já tinha me avisado no começo do plantão que o paciente da fratura — aquele mesmo — ainda estava internado. "Alemão", ele disse, como quem cuspia o nome. "Tá lá ainda, cheio de sorrisinho."— Vai lá ver como ele tá? — João perguntou, com aquele ar maroto de sempre. — Ou vai evitar ele também?— Vou fazer o meu trabalho. É diferente.— Claro, doutora. Só cuidado, dizem que esse cara é mais perigoso do que parece.Respirei fundo.Não era novidade. Desde a primeira vez em que tratei daquela fratura no braço esquerdo — dias atrás —, eu já sentia o incômodo. Era mais do que o típico desconforto por tratar alguém envo
Narrado por ReiO rádio chiava no canto da sala enquanto eu terminava de enrolar mais um baseado. O vento da manhã ainda tava úmido, carregando aquela fumaça suja que sobe do asfalto molhado lá de baixo. A Rocinha respirava em silêncio, mas o que vinha dentro de mim era puro trovão. Desde a última noite eu não dormia direito. Aquela cena da Mariana mexendo nos curativos, os olhos dela cravados nos meus, ainda dançava na minha mente. Só que hoje... hoje o bagulho mudou de figura.— Chefe — Cebola entrou devagar, sem levantar a voz — a informação chegou.Levantei o olhar.— Fala logo.— A médica cuidou do Alemão. Ele deu entrada no Hospital da Rocinha, ficou sob os cuidados dela. E... teve caô.Fechei a mão devagar, o sangue fervendo até a ponta dos dedos.— Que tipo de caô?— Dizem que ele deu em cima dela. Pegou no braço dela, chamou de bonita. Uma enfermeira contou que ele tentou segurar a mão dela depois do curativo. Mariana deu uma cortada, saiu da sala, mas ele ficou falando merda
Narrado por MarianaO dia amanheceu abafado, e como de costume, eu já estava a caminho do Hospital antes mesmo do sol nascer completamente. O calor impregnava as paredes do morro como se o concreto fervesse, e dentro da minha cabeça, a sensação era a mesma. Os últimos plantões estavam me consumindo de uma forma cruel. Não apenas pelo número de casos, que aumentava diariamente, mas pela estrutura do hospital, que estava ruindo.Faltava tudo. Desde luvas descartáveis até antibióticos. As lâmpadas da emergência piscavam, algumas nem acendiam mais. O refeitório funcionava com doações, e o gerador falhava com frequência. A gente já tinha feito vaquinha, campanhas, pedidos desesperados a órgãos públicos, mas ninguém parecia se importar com um hospital enfiado no meio do morro.Era desesperador. Era humilhante.Entrei pela porta dos fundos como sempre, já que a recepção estava com a fechadura quebrada — mais um item na lista interminável de problemas. Cumprimentei alguns colegas com um aceno
Narrado por ReiEu não sou homem de dar satisfações. Mas tem uma coisa que me intriga: Mariana. Desde aquela primeira vez que a vi no hospital, com a mão suja de sangue e o olhar limpo, eu soube que ela seria problema. Só não imaginava que eu ia gostar tanto desse tipo de problema.Hoje, acordei com um pensamento fixo: provocar. Não com bala, com grito ou com ameaça. Provocar de outro jeito. Queria ver ela aqui, na minha casa. Queria ver ela em um ambiente que fosse meu — e só meu.Então mandei um recado."Preciso de atendimento urgente. É sobre o Rei."Simples. Rápido. Sabia que ela viria.Sentei na varanda, camisa aberta no peito, corrente balançando, o corpo esticado na poltrona de couro surrado. Os moleques lá embaixo abriram passagem assim que o carro dela subiu. Me dei o prazer de observar a movimentação do morro da Rocinha com a tranquilidade de quem reina. E naquele momento, eu era o próprio rei esperando sua visitante.A porta da sala se abriu com um estalo firme. Ela entrou.
Era início de plantão quando Mariana encontrou o bilhete. Estava preso discretamente entre os papéis da prancheta de prontuário, em sua sala. Não havia envelope. Apenas uma folha dobrada com pressa. As letras rabiscadas carregavam a ameaça como uma promessa escrita a sangue:"Eu vou voltar pra te buscar. E dessa vez, não vou sair sem você. – Alemão"O estômago dela afundou. O coração acelerou com uma sensação que misturava medo e raiva. Ele tinha sido expulso do hospital dias antes, após a descoberta de que era um rival do Rei, o traficante que dominava aquele território — e com quem Mariana havia selado um acordo perigoso, mas necessário.Com o bilhete apertado na mão, ela saiu da sala. Não tinha outra escolha. Precisava falar com ele.[...]A casa do Rei exalava poder. Mariana foi recebida por um dos vapores, o Nando, que logo a conduziu até o andar de cima. Ele não perguntou nada. Apenas fez um gesto com a cabeça e a deixou em frente à porta do escritório.Ela bateu duas vezes.— E
Narrado pelo ReiO sol nem tinha nascido ainda quando bateram na minha porta com urgência. Acordei com a sensação de que algo não estava certo. Depois da noite com a Mariana, do corpo dela gemendo debaixo do meu, pensei que ia ter um pouco de paz. Ledo engano. A guerra não dorme, muito menos quando se trata de proteger o que é meu.— Rei, tem um vapor que não voltou da entrega. Dizem que tavam esperando ele na viela, e sumiu. — o gerente da boca falava com os olhos arregalados.— Quem? — perguntei, com a voz grave e seca.— O Guto, o novo. Tava indo com o carregamento leve, só um pacote, mas sumiu. Uns disseram que viram um carro preto parado, com os vidros fumê...A informação não me desceu. O Guto não era burro. Não ia vacilar. Isso tinha dedo de gente de fora. E a primeira coisa que veio na minha cabeça foi o bilhete que a Mariana recebeu. O maldito bilhete.— "Eu volto. Mas volto pra te buscar. E não vai demorar."Língua do Alemão. Aquele filho da puta tava me testando. Mexer com
Narrado por MarianaDesde o bilhete, eu não dormia direito. Por mais que o Rei dissesse que eu estava segura, que nada ia me acontecer de novo, alguma coisa no meu peito me apertava de um jeito estranho. Era como se eu sentisse que o pior ainda não tinha acontecido. E eu aprendi, na marra, que pressentimentos não devem ser ignorados.Voltei ao hospital naquela manhã, tentando me focar nos pacientes, nas reformas que já tinham começado e nos equipamentos novos que chegaram. A equipe tá mais animada, e isso me dava uma sensação de dever cumprido. Mas era só olhar pros lados e ver um guarda armado ou um olhar atravessado vindo de um canto da sala pra me lembrar que a paz ali dentro era frágil demais.Luísa veio me encontrar na hora do intervalo. A mesma de sempre: sorriso doce, rápida no café, cheia de piadas pra quebrar o gelo. Mas algo nela... não sei. Talvez fosse minha paranoia, talvez fosse o medo falando mais alto, mas eu comecei a reparar em cada olhar que ela dava pro meu celular
Narrado pelo ReiA chuva caía fina naquela manhã cinzenta, mas minha cabeça estava um caos muito maior do que qualquer tempestade que pudesse desabar sobre esse morro. Mariana tinha sumido desde a noite passada. Não respondia minhas mensagens, não atendia minhas ligações. Nem os vapores posicionados na frente da casa dela conseguiram trocar uma palavra com ela. Mandou dizer que não queria ver ninguém. Nem a mim.Sabia que ia dar merda. Eu senti. Desde o momento em que ela apareceu naquela noite, com os olhos molhados e o rosto duro, segurando aquelas fotos nas mãos como se fossem a arma do seu próprio desencanto.Ela jogou sobre a mesa sem dizer uma palavra. E eu, estatelado, olhei as imagens em preto e branco, tiradas à distância. Eu e o moleque. E mais ao fundo, a mulher. Bruna. O passado que eu nunca quis misturar com o presente. E que agora tava explodindo bem no meio do meu futuro.— Você tem uma família? — ela cuspiu as palavras, como se elas queimassem na boca. — Um filho? Uma