Capítulo 4

Narrado por Mariana

Eu costumava amar o silêncio. A calma depois de um plantão pesado. O som abafado das minhas próprias batidas cardíacas enquanto caminhava de volta pra casa. Mas hoje, o silêncio me apavora.

Não sei se é só impressão... ou se tem mesmo alguém me observando.

Desde aquela noite em que costurei um traficante — o tal "Rei" da Rocinha — algo mudou. Não só dentro de mim, mas ao meu redor também. É como se a sombra dele tivesse me seguido pra casa. Como se os olhos dele nunca tivessem saído de cima de mim.

Tentei ignorar. Tentei racionalizar.

Mas até isso está falhando.

[...]

— Mariana, ei! — A voz de Camila, minha colega de plantão, me tirou do transe.

— Oi, desculpa. Tô meio aérea hoje.

— Percebi. Desde que chegou, tá parecendo que viu um fantasma.

Camila era aquela pessoa que, mesmo no meio do caos, encontrava tempo pra rir. Médica também. Dois anos mais nova que eu, mas com uma coragem que eu invejava.

— Só não dormi bem — menti.

— É aquele caso da bala na cintura, né? O cara que te olhou como se fosse dono do mundo?

Suspirei.

— É.

— Acha que ele vai aparecer de novo?

— Não sei. Espero que não.

Mas eu sabia que ele ia. Não que eu quisesse. Mas eu sentia. Algo nele não se limitava a um encontro.

[...]

O Hospital da Rocinha é pequeno, sufocado, mas cheio de gente com coração grande. Tem suas rachaduras, seus corredores estreitos e equipamentos sucateados, mas também tem vida. Resistência.

Ali, entre os estalos do ar-condicionado quebrado e o cheiro ácido de sangue e álcool, a gente tenta fazer o impossível todos os dias.

Eu andava pelos corredores como quem anda por um campo minado. Não pelas urgências clínicas, mas pela dúvida constante de quem pode estar vendo meus passos.

— Mariana! — dessa vez foi o João, enfermeiro, parceiro de guerra desde meu primeiro dia naquele hospital. Ele vinha correndo com prontuários na mão. — Chegou mais um baleado da Estrada da Gávea.

— É grave?

— Fratura exposta. Perna direita. Mas tá consciente.

— Alguma identificação?

— Só disseram que era "do Alemão".

Parei por um segundo.

"Alemão" era nome que corria entre cochichos. O rival. O inimigo do Rei. Não que eu me importasse com lados. Pra mim, eram só nomes diferentes do mesmo pesadelo.

— Leva pra sala 3. Já vou.

[...]

Enquanto costurava os músculos dilacerados do rapaz, meus pensamentos voltavam à noite do Rei. Os olhos dele. A voz baixa, carregada de arrogância. O modo como me desafiava com cada frase.

E, mesmo tentando evitar, me peguei olhando pro corredor. Duas vezes. Três.

— Tá tudo bem, Mariana? — perguntou João.

Assenti.

Mas não estava.

Senti um arrepio subir pela nuca, uma sensação gélida. Como se houvesse alguém me observando da porta entreaberta.

Olhei de novo.

Ninguém.

Mas o vazio parecia pesado.

[...]

Na hora do intervalo, sentei no refeitório com Camila e João. A televisão antiga do canto transmitia um jornal qualquer, com uma matéria sobre violência nas comunidades do Rio. Mais uma.

— Você acha que tem volta? — perguntei, encarando a tela.

— Como assim? — disse Camila.

— Gente como ele. O Rei. Você acha que eles nascem assim ou são criados assim?

— Os dois, talvez — respondeu João. — Mas por que tá perguntando isso agora?

— Porque ele não é só um nome. Ele respira aqui dentro. Ele anda entre a gente. E a gente finge que não vê.

Camila me olhou séria.

— Você tá com medo?

Não respondi. Bebi um gole do café morno.

[...]

Quando saí do hospital, já era noite. O ar estava pesado. A rua, quase deserta.

Apressei o passo, apertando a bolsa contra o corpo. O trajeto até meu pequeno apartamento era curto, mas naquela noite parecia um labirinto.

Vi um vulto.

Atrás de uma moto estacionada. Parado.

Parecia alguém apenas mexendo no celular. Mas eu senti. O corpo dele virou sutilmente quando passei. A cabeça acompanhou meus passos.

Não olhei pra trás. Mas meus batimentos denunciaram o pânico.

Corri os últimos metros e entrei em casa batendo a porta com força.

Apoiei a testa na madeira.

— Isso tá na sua cabeça, Mariana... — sussurrei pra mim mesma. — Isso tá na sua cabeça...

Mas no fundo, eu sabia.

Ele tava me vigiando.

O Rei era como um pesadelo ambulante, daqueles que você se esforça ao máximo para não ter.

[...]

Antes de dormir, abri a janela. A Rocinha se espalhava abaixo de mim, viva mesmo de noite, com as luzes improvisadas e o som de motos ao longe.

Entre as sombras, juro que vi alguém no telhado do prédio da frente.

Sentado.

Imóvel.

Me encarando.

Pisquei. Me afastei. Olhei de novo.

Nada.

Mas o sentimento ficou.

[...]

Deitei e abracei o travesseiro como uma criança que teme o escuro.

A última coisa que pensei antes de dormir foi:

se ele estiver me observando… o que exatamente ele quer de mim?

E o mais assustador?

Parte de mim queria saber.

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