Capítulo 5

Narrado por Mariana

O hospital estava mais silencioso do que o normal naquela manhã.

O tipo de silêncio que antecede alguma tempestade. Aquele que faz a gente olhar por cima do ombro, mesmo sabendo que não tem ninguém atrás. Que faz o coração apertar sem explicação. Eu já tinha aprendido a não ignorar esses sinais.

Entrei na ala ortopédica com os olhos fixos na prancheta. João já tinha me avisado no começo do plantão que o paciente da fratura — aquele mesmo — ainda estava internado. "Alemão", ele disse, como quem cuspia o nome. "Tá lá ainda, cheio de sorrisinho."

— Vai lá ver como ele tá? — João perguntou, com aquele ar maroto de sempre. — Ou vai evitar ele também?

— Vou fazer o meu trabalho. É diferente.

— Claro, doutora. Só cuidado, dizem que esse cara é mais perigoso do que parece.

Respirei fundo.

Não era novidade. Desde a primeira vez em que tratei daquela fratura no braço esquerdo — dias atrás —, eu já sentia o incômodo. Era mais do que o típico desconforto por tratar alguém envolvido até os ossos com o crime. Era o modo como ele me olhava. Como se tivesse o direito.

Empurrei a porta do quarto com um leve estalo. Ele estava sentado na cama, camiseta branca folgada, o braço ainda enfaixado, mas os olhos atentos como de sempre — claros, frios e… fixos em mim assim que entrei.

— Mariana. — O nome saiu dos lábios dele como se tivesse gosto. — Pensei que tivesse me abandonado.

— Vim saber se está com alguma dor, ou se sentindo algum incômodo. Nada além disso.

— Estou sentindo falta de você. Isso conta?

Revirei os olhos e me aproximei, sem responder. Conferi a tala no braço, a rigidez do osso sob o enfaixado, os batimentos — estáveis. Ele cheirava a sabonete novo e perfume forte. Como se quisesse estar preparado pra me receber. Como se soubesse que eu viria.

— Evolução boa — murmurei, anotando na ficha. — Vai sair daqui em breve, se não causar problema.

— Depende. Se você estiver do lado de fora, talvez eu prefira continuar internado.

— Isso aqui é um hospital, não seu esconderijo.

— Mas você está aqui. E onde você estiver, eu posso querer estar também.

Levantei os olhos e o encarei com firmeza.

— Você tá acostumado a mulheres abaixando a cabeça pra você, né?

— Não todas. As que mais me atraem são as que olham assim… com ódio.

— Então se apaixone à vontade.

Ele riu, mas não desviou o olhar.

— Você tem esse ar de quem despreza tudo que eu sou. Mas ainda assim, veio aqui duas vezes cuidar de mim. Estranho, né?

— É o meu trabalho. Eu cuido de gente ferida. Mesmo os que merecem.

— E você acha que eu mereci?

— Acho que ninguém entra pro tráfico por engano. E que você, como muitos outros, só colhe o que planta.

A resposta fez ele sorrir de lado, como quem gosta de apanhar na conversa. Mas havia um brilho nos olhos dele — algo doentio. Uma fixação silenciosa. Era diferente do Rei. O Rei me olhava com posse, com cálculo. O Alemão me olhava como se quisesse descobrir meus pontos fracos um por um, e arrancar as camadas até chegar na parte em que eu cederia.

Só que eu não ia ceder.

[...]

Voltei pra sala dos médicos me sentindo suja. Camila me notou logo.

— E aí? Sobreviveu ao loiro?

— Ele tá criando uma novela dentro da cabeça.

—Quer dizer que tá interessado?

— Interessado, obcecado, sei lá. Ele tem aquele olhar…

— Igual ao do outro?

Levantei a cabeça rápido.

— Não fala isso.

— Eu tô falando sério, Mari. Desde que você atendeu o Rei, tá andando com essa sombra em volta. Agora tem dois querendo te marcar.

— Eu não sou território.

— Mas eles te veem assim.

E era isso que me apavorava. Não era só sobre homens perigosos com armas e poder. Era sobre o que eles enxergavam em mim: uma chance de controle, um símbolo, talvez um prêmio.

[...]

Terminei o turno exausta. Fui pro vestiário com a cabeça latejando. Tinha mensagens da minha mãe no celular, uma cobrança do aluguel, e uma notificação no I*******m: uma conta nova me seguindo. Foto de perfil preta. Sem seguidores. Zero publicações.

Mas o nome era sugestivo demais: Reiknows.

Engoli seco.

[...]

À noite, em casa, coloquei duas cadeiras encostadas contra a porta. Um ritual inútil, talvez, mas que me fazia sentir no controle.

Deitei, mas o sono não veio. As palavras de Alemão ecoavam. O jeito como ele me olhava. O modo como o Rei apareceu dias atrás, calado, imponente, só pra dizer: "Ele tá aqui, né?"

Sim, estava. E agora me queria também.

A briga entre eles não era só por território. Começava a virar pessoal. Começava a me envolver. E o pior… eu era só médica. Só alguém que tentava viver longe desse inferno. Mas o inferno tinha batido na minha porta. E agora queria entrar.

[...]

No dia seguinte, encontrei João fumando no estacionamento.

— O loiro vai ter alta amanhã. Quer apostar que ele vai arrumar um jeito de voltar?

— Não quero apostar nada.

— Tá com medo?

— Tô cansada. De ser observada, de andar na rua como se alguém estivesse me seguindo.

— Mari… você sabe que o Rei apareceu aqui ontem, né?

— Eu sei.

— Ele ficou horas lá fora. Sem falar com ninguém. Só olhando.

Olhar. Sempre o olhar. O do Rei, gelado e controlador. O do Alemão, quente e obsessivo. Um querendo me dominar. O outro querendo me possuir.

E eu? Eu só queria paz.

Mas a Rocinha era guerra.

E dessa vez… eu era o campo de batalha.

Sigue leyendo este libro gratis
Escanea el código para descargar la APP

Capítulos relacionados

Último capítulo

Explora y lee buenas novelas sin costo
Miles de novelas gratis en BueNovela. ¡Descarga y lee en cualquier momento!
Lee libros gratis en la app
Escanea el código para leer en la APP