Narrado por MarianaO dia amanheceu abafado, e como de costume, eu já estava a caminho do Hospital antes mesmo do sol nascer completamente. O calor impregnava as paredes do morro como se o concreto fervesse, e dentro da minha cabeça, a sensação era a mesma. Os últimos plantões estavam me consumindo de uma forma cruel. Não apenas pelo número de casos, que aumentava diariamente, mas pela estrutura do hospital, que estava ruindo.Faltava tudo. Desde luvas descartáveis até antibióticos. As lâmpadas da emergência piscavam, algumas nem acendiam mais. O refeitório funcionava com doações, e o gerador falhava com frequência. A gente já tinha feito vaquinha, campanhas, pedidos desesperados a órgãos públicos, mas ninguém parecia se importar com um hospital enfiado no meio do morro.Era desesperador. Era humilhante.Entrei pela porta dos fundos como sempre, já que a recepção estava com a fechadura quebrada — mais um item na lista interminável de problemas. Cumprimentei alguns colegas com um aceno
Narrado por ReiEu não sou homem de dar satisfações. Mas tem uma coisa que me intriga: Mariana. Desde aquela primeira vez que a vi no hospital, com a mão suja de sangue e o olhar limpo, eu soube que ela seria problema. Só não imaginava que eu ia gostar tanto desse tipo de problema.Hoje, acordei com um pensamento fixo: provocar. Não com bala, com grito ou com ameaça. Provocar de outro jeito. Queria ver ela aqui, na minha casa. Queria ver ela em um ambiente que fosse meu — e só meu.Então mandei um recado."Preciso de atendimento urgente. É sobre o Rei."Simples. Rápido. Sabia que ela viria.Sentei na varanda, camisa aberta no peito, corrente balançando, o corpo esticado na poltrona de couro surrado. Os moleques lá embaixo abriram passagem assim que o carro dela subiu. Me dei o prazer de observar a movimentação do morro da Rocinha com a tranquilidade de quem reina. E naquele momento, eu era o próprio rei esperando sua visitante.A porta da sala se abriu com um estalo firme. Ela entrou.
Era início de plantão quando Mariana encontrou o bilhete. Estava preso discretamente entre os papéis da prancheta de prontuário, em sua sala. Não havia envelope. Apenas uma folha dobrada com pressa. As letras rabiscadas carregavam a ameaça como uma promessa escrita a sangue:"Eu vou voltar pra te buscar. E dessa vez, não vou sair sem você. – Alemão"O estômago dela afundou. O coração acelerou com uma sensação que misturava medo e raiva. Ele tinha sido expulso do hospital dias antes, após a descoberta de que era um rival do Rei, o traficante que dominava aquele território — e com quem Mariana havia selado um acordo perigoso, mas necessário.Com o bilhete apertado na mão, ela saiu da sala. Não tinha outra escolha. Precisava falar com ele.[...]A casa do Rei exalava poder. Mariana foi recebida por um dos vapores, o Nando, que logo a conduziu até o andar de cima. Ele não perguntou nada. Apenas fez um gesto com a cabeça e a deixou em frente à porta do escritório.Ela bateu duas vezes.— E
Narrado pelo ReiO sol nem tinha nascido ainda quando bateram na minha porta com urgência. Acordei com a sensação de que algo não estava certo. Depois da noite com a Mariana, do corpo dela gemendo debaixo do meu, pensei que ia ter um pouco de paz. Ledo engano. A guerra não dorme, muito menos quando se trata de proteger o que é meu.— Rei, tem um vapor que não voltou da entrega. Dizem que tavam esperando ele na viela, e sumiu. — o gerente da boca falava com os olhos arregalados.— Quem? — perguntei, com a voz grave e seca.— O Guto, o novo. Tava indo com o carregamento leve, só um pacote, mas sumiu. Uns disseram que viram um carro preto parado, com os vidros fumê...A informação não me desceu. O Guto não era burro. Não ia vacilar. Isso tinha dedo de gente de fora. E a primeira coisa que veio na minha cabeça foi o bilhete que a Mariana recebeu. O maldito bilhete.— "Eu volto. Mas volto pra te buscar. E não vai demorar."Língua do Alemão. Aquele filho da puta tava me testando. Mexer com
Narrado por MarianaDesde o bilhete, eu não dormia direito. Por mais que o Rei dissesse que eu estava segura, que nada ia me acontecer de novo, alguma coisa no meu peito me apertava de um jeito estranho. Era como se eu sentisse que o pior ainda não tinha acontecido. E eu aprendi, na marra, que pressentimentos não devem ser ignorados.Voltei ao hospital naquela manhã, tentando me focar nos pacientes, nas reformas que já tinham começado e nos equipamentos novos que chegaram. A equipe tá mais animada, e isso me dava uma sensação de dever cumprido. Mas era só olhar pros lados e ver um guarda armado ou um olhar atravessado vindo de um canto da sala pra me lembrar que a paz ali dentro era frágil demais.Luísa veio me encontrar na hora do intervalo. A mesma de sempre: sorriso doce, rápida no café, cheia de piadas pra quebrar o gelo. Mas algo nela... não sei. Talvez fosse minha paranoia, talvez fosse o medo falando mais alto, mas eu comecei a reparar em cada olhar que ela dava pro meu celular
Narrado pelo ReiA chuva caía fina naquela manhã cinzenta, mas minha cabeça estava um caos muito maior do que qualquer tempestade que pudesse desabar sobre esse morro. Mariana tinha sumido desde a noite passada. Não respondia minhas mensagens, não atendia minhas ligações. Nem os vapores posicionados na frente da casa dela conseguiram trocar uma palavra com ela. Mandou dizer que não queria ver ninguém. Nem a mim.Sabia que ia dar merda. Eu senti. Desde o momento em que ela apareceu naquela noite, com os olhos molhados e o rosto duro, segurando aquelas fotos nas mãos como se fossem a arma do seu próprio desencanto.Ela jogou sobre a mesa sem dizer uma palavra. E eu, estatelado, olhei as imagens em preto e branco, tiradas à distância. Eu e o moleque. E mais ao fundo, a mulher. Bruna. O passado que eu nunca quis misturar com o presente. E que agora tava explodindo bem no meio do meu futuro.— Você tem uma família? — ela cuspiu as palavras, como se elas queimassem na boca. — Um filho? Uma
Narrado por Mariana — Eu quero conhecer o seu filho. As palavras saíram antes mesmo de eu pensar. A voz firme, mesmo com o coração acelerado. O Rei me encarou como se não tivesse entendido, mas eu sustentei o olhar. Tanta coisa tinha acontecido. Tanta coisa ainda estava por vir. Eu precisava entender se havia espaço para mim naquela vida dele. Ou se eu era só mais um capítulo de uma história que já tinha começado antes de mim. — Tem certeza? — ele perguntou, com a voz mais grave do que de costume. — Se a gente vai continuar, eu preciso saber quem faz parte da sua vida. E quero conhecer os dois: o seu filho e a mãe dele. O olhar dele mudou. Aquilo o pegou de surpresa. Mas eu estava decidida. Eu precisava encarar de frente. Precisava saber se eu era forte o bastante para lidar com tudo isso. [...] A casa era simples, afastada do centro. Um sobrado com muros altos e um portão cinza. Aquele tipo de lugar que passa despercebido. Mas eu não estava lá para observar a fachada. Quando
Narrado por Rei O moleque mal tinha fechado a porta e eu já tava com a respiração pesada. A minha mente dava voltas indo até horas atrás, quando por pouco eu não perdi o Juízo e acabei com o pingo de felicidade que faz a minha existência melhor. Me virei devagar pra Bruna, que agora fingia estar distraída com o celular. Mas ela sabia. Sabia que tinha ido longe demais. — Só não te destruí aquela hora porque meu filho tava aqui — falei, sem elevar a voz, mas com a firmeza de quem não repete. — E porque a Mariana tava do lado. Mas cê sabe, né? Isso aqui… isso tem limite. E você passou dele. Ela me encarou, meio sem graça, tentando manter a pose, mas não durou nem cinco segundos. — Foi só uma piada, Rei… relaxa. — Não, Bruna. Não foi piada. Foi desrespeito. Foi provocação. Foi veneno. E eu engoli. Pela última vez. Dei um passo à frente, encurtando o espaço entre a gente. Ela deu um passo pra trás, quase tropeçou no tapete. — Escuta bem: daqui pra frente, quando eu quiser ver meu fi