Abri meus olhos e, sobressaltada, tombei meu corpo para frente, gritando.
O ar entrava e saía pelos lábios de uma forma descontrolada. Mas, por algum motivo, meu coração não estava disparado, coloquei a mão no peito e vi que ela estava coberta de ataduras. Olhei ao meu redor agitada e com medo, pela primeira vez em meus 35 anos.
Dessa vez não estava mais na floresta.
Fechei meus olhos e antes que pudesse controlar um soluço subiu pela minha garganta, saltando meu peitoral para frente e chorei. Estava deitada em uma cama velha e simples, agarrei meus joelhos para cima, que estavam cobertos por uma manta fina e me mantive na escuridão de minhas pálpebras, enquanto minha alma se destroçou. Pouco a pouco.
Diante de minha mente vi os monstros saltando sobre Clarice primeiro, logo em seguida me atacando e nos levando para a beira da fogueira… Lá fizeram coisas terríveis e inomináveis. Funguei e me abracei com força. Meu corpo tremia com os resmungos de meu choro devastado. Pior do que fazerem aquilo comigo, eram ter feito toda aquela tortura agonizante diante de meus olhos com a mulher que eu era apaixonada desde a adolescência. E ali, naquele lugar escuro e inóspito, eles haviam comido cada pedacinho da carne dela, partindo quando tiros soaram no ar, mas eu já estava tão ferida e degradada, que apenas continuei parada querendo finalmente morrer. E havia perdido a consciência poucos segundos depois de ouvir passos novamente próximo onde estava deitada.
Me deitei sem querer entender onde estava e apenas continuei chorando.
***
Não entendi o que estava acontecendo, nem como estava viva ou porque apenas ferimentos superficiais cobriam minha pele mais pálida do que o normal. Estava vestida com roupas masculinas, as quais sempre amei vestir em segredo de minha mãe e quando estava sobre a asa de meu pai. Lembrar dele me fez querer chorar mais, no entanto as lágrimas haviam secado faz algum tempo. E levei horas para tentar tirar aquele furacão que se agitava em meu interior. Eu havia acabado de perder meu pai, de ser vendida a um estuprador e quase comida por monstros - seres esses, que qualquer humano sadio desconfiaria e se vivesse a base de lendas, teria corrido - mas eu sabia o que eles eram. Havia lido livros sobre os demônios sugadores de sangue com garras.
Meu pai acreditava que eles existiam e estava pesquisando uma lenda sobre eles, na Itália, na sua última viagem. Uma vez havia descoberto um cadáver estranho e visto presas em sua arcada dentária. Ficou curioso e começou a pesquisar tudo que encontrava sobre o assunto. Estive presente em muitos desses estudos.
Então era ainda pior saber que eram tão reais quanto qualquer pessoa e tão maléficos quanto o próprio Diabo.
Abruptamente, ainda perdida em meu próprio luto, senti uma pontada no meu estômago. Foi algo sutil como uma cólica. Mas, então soou novamente em minha pele como uma fome mais abrangente e minha garganta estava seca. Como se eu estivesse com meu pai no Egito, sob um Sol ardente e cruel. Me arrastei pela cama e me senti meio zonza, minha pele se arrepiou completamente e senti como se não estivesse sozinha.
Reparei no quarto minúsculo de paredes de madeira escura, sem janelas e apenas uma porta. Havia uma mesinha no canto com um jarro d’água e contando com a cama, esses eram os únicos móveis. Uma pressão se arrastava por minha pele, como se alguém me tocasse com as pontas dos dedos. Ouvi passos pelo corredor externo e fiquei surpresa com o silêncio de antes, agora havia sido substituído por ruídos de pessoas se movimentando por outros ambientes. Jurava poder ouvir correntes tilintando, teclados de piano e uma música sendo ecoada pela madeira. Me atentei a dois seres que pareciam se aproximar pela parede, onde estava a porta trancada. Agarrei meus joelhos e alguém girou o trinco da porta.
O quarto tinha uma iluminação por luzes à gás e assim que a figura entrou, um rosnado bestial saiu de meus lábios. Coloquei minha mão sobre a boca e apenas me movi, curvando o corpo para frente, me elevando sobre a cama em dois segundos. Em um momento eu estava deitada, encurralada e com pavor, no outro estava de pé, rosnando como aqueles animais na clareira, me colocando na defensiva, pronta para atacar como um leão enjaulado.
Uma mão pequena se posicionou como se pedisse calma e arreganhei meus dentes, ainda mais feroz. Não me reconheci, não sabia quem era aquele ser que se elevava furioso sendo acuado, mas uma parte racional, um espaço extra sensorial respondeu que eu já sabia o que estava acontecendo.
- Ei, calma. - uma voz feminina doce pediu, tão suave como uma canção de ninar.
Ela não tinha sotaque inglês, mas assim que fixei meus olhos nela, vi a mulher de estatura baixa, provavelmente americana.
Semicerrei os olhos, sentindo como se minha pele se aquecesse e minha gengiva formigava, como se um dente estivesse rasgando minha gengiva quando era criança - gengiva essa, que ainda estava exposta e escancarada com meu rosnado que ainda soava - e ao redor de meus olhos tive a impressão de que algo se agitava, pulsando como veias estourando e em um segundo, olhei para baixo apenas para me certificar e realmente meus olhos estavam saltados, e por baixo as veias tremulavam vivas e faziam sombras abaixo de meus cílios inferiores.
Mas, o que estava acontecendo?!
- Calma. - a mulher pediu mais uma vez. - É muita coisa para que possa processar de uma vez só. Se deixar, posso explicar.
Encarei-a com raiva. O que ela tinha feito comigo?
Rosnei mais uma vez, mais alto e gritei quando meus dentes se alongaram, como se eu tivesse presas. E assim que enfiei um dedo na boca, o sangue o cobriu e meu estômago se apertou, com outra pontada. Caí de joelhos sobre a cama e acariciei o céu da gengiva, achando dois pares - de cima e debaixo, mas que se encaixavam com perfeição - de caninos longos e afiados. A parte interna de meus lábios latejavam doloridos. Mas, nada era comparado com a dor que estava se tornando proeminente, segurei minha barriga lisa, sobre uma camisa escura larga e notei as unhas compridas em forma de garras - exatamente como das criaturas que me atacaram naquela noite.
Gritei e levantei meus olhos para a mulher.
Ela ainda estava parada, me encarando compreensivamente materna e paciente.
- O que fez para que eu me tornasse isso? - minha voz era amarga, machucada, mas ao mesmo tempo era suave, hipnótica quase lírica.
Franzi as sobrancelhas, ainda pressionando a barriga que retumbava de fome, agoniada com a sede e os dentes que machucavam minha boca.
A mulher que tinha cabelos escuros ondulados, jogou algumas mechas para trás dos ombros e suspirou. Ela não parecia que era alguma ameaça, mas não relaxei. Observei seu rosto largo, bochechas cheias e lábios grossos. Os olhos eram profundos, inteligentes e eram comandantes, mesmo que tivesse compaixão estampados neles. As sobrancelhas grossas arqueadas eram marcantes, assim como a cor terrosa e quente de seu olhar. Ela era voluptuosa, com cintura delgada e seios cheios, e coxas grossas. Vestida com calças apertadas de cintura alta, uma camisa marrom e botas longas da mesma cor gastas e velhas, reparei no cinto com uma pequena arma simples e uma adaga negra. A pele dela era de um dourado marrom lindo, como ouro antigo. Em sua postura, estava claro que ela era passiva, mas também treinada pelas marcas de cortes em suas mãos e na forma como posicionava suas pernas.
Eu me posicionava do mesmo jeito.
Seus olhos transpareciam milhões de emoções e mesmo com o turbilhão que se alastrava por cada pedacinho de meu ser, resolvi respirar fundo e aguardar para ver o que ela dizia. Meu instinto interior assentiu em concordância, como se soubesse o que ela precisava dizer, eu sabia.
Ela respirou fundo, mas continuou parada no mesmo lugar.
- Eu sou Aly Cohen. Faço parte da Ordem. Nós somos uma organização de caçadores sobrenaturais. - ela disse, mas foi como um discurso preparado, como se ela já o tivesse repetido milhões e milhões de vezes. - Provavelmente nunca soube do submundo e tudo o que a escuridão pode trazer. Estamos lá para combater o mal e garantir que coisas… Ataques como o que aconteceu com você não se repitam.
Meus olhos se encheram de lágrimas, minhas presas ainda à mostra, as veias tremulando bombeando sangue para minhas pupilas dilatadas. Aly viu que eu não diria nada e apenas assentiu, continuando.
- Eu sei e entendo perfeitamente a descarga de emoções, a dor pela violência ao qual passou, mas não estamos aqui para prejudicá-la de alguma forma. - dessa vez seu tom foi mais baixo, suave como se estivesse falando de si mesma. - Queremos o seu bem estar acima de tudo. E como alguém que foi vítima de um ataque brutal semelhante... Quero ajudá-la. Por favor, só continue me ouvindo. Vou trazer roupas mais femininas e alimento, para que ao menos possa se sentir mais aliviada.
As lágrimas continuaram escorrendo.
- Estou bem vestida assim. - engoli para dentro todo o caos que me definia, para lidar com frieza tudo aquilo. - Como fui salva? O que sou? Havia uma mulher comigo. Onde Clarice está?
Aly balançou a cabeça.
- Vou responder tudo que quiser saber. - ela garantiu. - Você foi achada pelo nosso grupo principal de caçadores, eu faço parte dele e a tirei daquela clareira. Apesar de seus ferimentos, ainda respirava… Mas, por ser mordida por aqueles monstros, assim como fui um dia, acabou se tornando uma vampira. Tudo que já ouviu na sua vida deles, é real, assim como a maioria das lendas de monstros que contavam para nós antes de dormirmos. - Aly tentou parecer pesarosa, ainda compreensiva. - Clarice provavelmente era o corpo destruído que encontramos próxima a você. Eu sinto muito.
Fechei meus olhos e um soluço reverberou por minha garganta.
Meu estômago ainda doía, mas uma parte de minha mente - onde havia um espaço exorbitante para pensar e calcular cada traço de sentimento, de dor, de planejamento, estratégia e passos - desistiu de tentar atacar e minhas presas foram removidas. Coloquei minhas mãos sobre meu rosto e chorei silenciosamente.
Aly tinha falado tudo que eu já perfeitamente sabia no fundo e em cada parte daquele meu novo ser. E eu não tinha ideia de como seria agora. Do que faria com aquilo. Deveria sentir nojo de mim mesma por ter me tornado aquilo que matou e devorou Clarice, mas não conseguia me forçar a sentir essa vergonha. Apenas dor por tê-la perdido.
Mas, se eu era um demônio maldito e Aly disse que era o que tornei, como fazia parte disso? E ainda caçava seres que nem aqueles malditos?
Funguei e passei a costa da mão pelo nariz. Olhei para ela.
- Eu sei. Estou vendo a pergunta nos seus olhos. - ela passou a mão pelos cabelos pesados e ondulados. - Mas, somos fortes. Mais do que qualquer humano. E nossa Ordem sabendo disso nos tornou uma família que protege a todos. Eu não sei seu nome, mas querida, só porque nos tornamos criaturas estranhas e famintas, não quer dizer que precisamos ser, de fato, monstros. Podemos usar isso para o bem. Cuidar de pessoas desprotegidas, para que coisas horríveis assim não aconteçam.
Meu cérebro processou rapidamente o que ela dizia.
- E você quer que eu faça parte disso como uma. - afirmei, concluindo por ela.
Aly negou com a cabeça.
- Eu quero que você queira isso. E apenas quando decidir com toda a certeza o que quer, podemos mostrar o quão incrível a ordem é. - os olhos escuros dela estavam mais alegres. - Veja, você é livre para sair, se quiser. Ou ficar, te daremos abrigo, comida e roupas. Pode participar das aulas de iniciação sem compromisso, apenas para ver o que nós somos e se quer ser como nós. E se ainda sim, quiser ir embora, tudo bem. Isso não é uma prisão. Mas, considere tudo que causaram a você. Não acha que gostaria de evitar para uma outra mulher o que passou? Eu tento todos os dias. Nem sempre consigo, e eu sinto muito que não cheguei a tempo para ajudá-la. Mas, encare toda a dor como algo que pode fortalecê-la. E se tornar algo maior.
Olhei fixamente para ela e não consegui dizer nada.
- Dean vai trazer mais tarde uma garrafa de sangue como alimento, roupas limpas e te instruir para um quarto mais confortável. Fique à vontade. Se quiser conversar, vai ficar um guarda próximo ao seu quarto apenas por precaução. - Aly acenou.
Assim que ela fechou a porta, me senti ainda mais sozinha e perdida do que antes.
Encolhida, com os joelhos sendo apertados por meus braços, observei a garrafa de sangue e senti meu âmago salivar, assim como minhas presas com aquele líquido vermelho. Mas, eu me recusava a ser como aqueles monstros. Eu não queria me entregar aquela fome horrível e me tornar vítima de todos aquele caos, do ser demoníaco em meu interior que necessitava daquilo. Eu queria acreditar que poderia ser melhor do que toda aquela situação.Olhei pela lua que entrava pelos vitrais coloridos. Ironicamente, percebi que estávamos em um forte construído como Igreja de base. Meu quarto agora era mais espaçoso, se estendendo por alguns metros, as paredes de um papel de parede vermelho florido, a cama macia com colchas e almofadas confort&aacu
Em alguma parte do KenyonSob um sol escaldante, um grupo de oito bruxas caminhava, tropeçando sempre em seus próprios pés e o suor escorrendo por suas costas, abaixo das roupas pesadas e grandes bolsas que carregavam nos ombros.Uma delas, Katana caiu de joelhos e gemeu, ela não aguentava mais aquele caminho torturante.Ella viu sua irmã ceder e correu pegá-la pelos braços e exigiu que trouxessem água. Ella entregou para Katana, que chorava.- Não posso mais. - ela sussurrou, os lábios cortados e rachados.Sob o capuz de um manto de cor crua, Ella rosnou.- V
1896Ella Quenyon encarou a vasta entrada de seu forte escondido sob rochas avermelhadas. Ali o calor não chegava, a magia mantinha o ambiente em temperatura natural e ela se orgulhava tanto daquilo que jorrava brilho em seus olhos escuros. Depois de duzentos anos naquele lugar, seu mestre finalmente tinha razão. O clã delas havia se propagado tanto que agora uma cidade inteira habitava aquele lugar. As matriarcas residiam no castelo principal, no alto da ponte de rochedos. Mas, embaixo existia uma pequena vila, uma mata que elas pessoalmente conseguiram criar, cultivando ervas e bem no alto apenas uma linha se enxergava o céu de tão afundadas que estavam dentro do solo.Sua mãe e sua avó teriam orgulho do que ela tinha se tornado e construído. Como um império de bruxas poderosas
Entrei no quarto, tirando meu casaco pesado de couro.A fazenda em que estávamos alojados em Oklahoma era grande, espaçosa e tinha pelo menos dez trabalhadores que eram pagos pela Ordem para cuidar daquela unidade - um dos muitos esconderijos que pertenciam a Igreja - assim quando cheguei, já havia uma banheira quente me esperando e sem aguardar Aly, caminhei para os fundos do quarto, era imenso e espaçoso, com um pequeno box de tela fina feita de bambus esculpidos, guardando a pequena banheira de porcelana. Terminei de tirar todas as minhas roupas e alguns cortes profundos marcavam minhas mãos, teria que me alimentar terminando meu banho para que aqueles ferimentos se curassem rapidamente.Entrei na água quente e gemi de prazer sentindo o vapor subir pelo ar. Estava bem quente e eu adorava banhos quentes, &
O sol descia no horizonte e meu capuz escondia meu rosto. Dean trotava com seu cavalo ao lado do meu e parecia que algo cutucava minha mente sem parar, para que eu perguntasse sobre a bruxa. Tinha praticamente certeza que o vi ao lado do padre Maleck. Havia revisto o mesmo sonho várias e várias vezes até decorá-lo.Mas, mesmo inquieta com tudo e tendo ideia de que chegaria com uma Aly puta da vida comigo, não acelerei o ritmo do nosso andar. A carruagem que continha Rodd e Allen estava vagarosa e do meu outro lado, um pouco mais a frente Christopher estava olhando a floresta que nos cercava na estrada.Se você não perguntar, nunca vai saber quem é ela. Minha mente me cutucou de novo.Respirei fund
O sangue quente e denso inundou minha boca com gosto de paraíso. Gemi de prazer e abracei o corpo da mulher em meus braços, como se fôssemos duas amantes apaixonadas. Minha respiração estava acelerada e ouvi os últimos batimentos do coração dela. Sorri, afundando meus dentes em sua garganta, saboreando cada gota com um êxtase que beirava a frenesi. Passei a mão em seu rosto e tirei minhas presas de seu pescoço. Engoli com força o último gole que estava em minha língua e o coração dela não bateu mais.Ouvi passos apressados e levantei meu rosto. Dean estava na entrada do corredor e arregalou os olhos.- Meu Deus! - ele gritou.Meus lábios estavam completamente sujos e uma linha
Respirei fundo e encarei-a.Não deixei de olhar seu rosto com as veias subindo pelas bochechas, pronunciadas abaixo de seus olhos injetados de sangue e seus lábios grossos, que estavam levantados e mostravam as presas afiadas. Ela estava parada, o corpo tremendo e as mãos fechadas ao lado de sua cintura. As garras afiadas.Levantei as mãos.- Calma. Provavelmente está confusa, com fome e zangada. Tenho o que precisa para que possa se acalmar. - falei baixo, suave.Me movi devagar, dando um passo após o outro, ainda de frente para ela, indo até a minha bolsa que continha cinco garrafas de sangue. Sempre deixava em estoque, pois me alimentava com uma frequência maior do que os outros. Peguei uma
Apertei meus braços ao redor de Emma.Ela virou seu rosto em direção ao meu pescoço e o beijou.Eu entendia perfeitamente que a atração que estava sentindo por ela, era unicamente pelo elo de criação que nos unia naquele momento. Mas, era estranho pensar que na mesma noite que acabei descobrindo que estava sendo traída… Dei por encontrar aquela linda mulher na taverna como se alguma casualidade da vida tivesse nos colocado frente a frente. Ainda mais se dando conta do mundo em que vivia até sua fase adulta, sabendo o que eu era e me pedindo para transformá-la.No fim, talvez não fosse nenhum tipo de coincidência. Vivi tempo demais para acreditar em coisas banais. Ainda mais tendo ideia de todo o mundo s