Capítulo 10

Arrastando minhas patas negras avermelhadas no chão, ofegante, com dores e cansada, me agachei. Senti o peso das minhas costas se esvaindo e, deitada na mata, pude sentir meu corpo virando humano novamente, estava nua, mas exausta, eu só queria dormir um pouco, quando fechei os olhos, mas não conseguia dormir, minha mente estava em alerta, reuni forças e me levantei.

– Karol beba um pouco. – Elena me oferecia a água da garrafa de barro que peguei na cozinha. – Vista-se. – Ela me deu a muda de roupa das escravas, um vestido branco e uma calçola.

Com a floresta quase totalmente escura, eu estava sentada no chão, encostada em uma árvore enorme, já vestida e com a garganta menos seca pude descansar enquanto Elena procurava uma maneira de fazer uma sopa com a comida que tínhamos. Kamilla estava nos meus braços e eu acariciava o cabelinho ruivo dela, mas havia algo de errado com a minha filha e eu podia sentir. Levantei sua cabecinha delicadamente com meus dedos em seu queixo e ela olhou pra mim.

– O que está te afligindo minha filhotinha? Diga para a mamãe. – Assim que parei de falar, ela começou a fungar e uma enxurrada de lágrimas caiu no seu rostinho rechonchudo, deixando aquela pelezinha toda vermelha. Limpei suas lágrimas e continuei fazendo carinho no seu rostinho, esperei pacientemente ela pôr para fora tudo o que estava sentindo, até que se acalmou e conseguiu falar:

– Mamãe, eu fiz algo de errado? – franzi as sobrancelhas com aquela pergunta estranha.

– Não, por que está me perguntando isso?

– Então, por que aqueles homens queliam felir a gente? – O que eu poderia responder? Que eles queriam nos ferir porque se achavam no direito daquilo?

– Não pense muito, filhotinha, eles apenas estavam zangados e são pessoas malvadas, mas você tem a mim para te proteger, tudo bem? – Dei um leve sorriso para ela.

– A titia Lena disse que eu sou filha do Alfa, então por que ele não plotege a gente? – Meu sorriso morreu, fiquei séria e até o carinho genuíno que estava fazendo na menina, parei.

Eu sabia que era por isso que ela estava chorando, eu nunca contei quem era seu pai por motivos óbvios, mas no momento de desespero, Elena falou para aqueles homens que ela era filha do Alfa e a menina não prestou atenção nem no sangue que estava no meu corpo, só o que ela pensou foram nessas palavras. Por que ele não nos protege? Que absurdo! Lúcius nos protegendo? Que piada! Ele só se importava com seu próprio ego, com suas necessidades aliviadas, ele se importaria com uma filha nascida de uma de suas escravas? Tive vontade de rir disso. Dei um longo suspiro e fechei os olhos, afinal ela era apenas uma criança alheia do que estava acontecendo.

– Não é verdade o que ela disse, ela estava apenas tentando te proteger. – Falei com um tom calmo e um sorriso falso no rosto, não quero que ela saiba quem é seu pai, pelo menos não agora, não quero ver minha filha magoada por ter um pai como ele.

– Ele não é meu pai? Mas, ele fazia calinho em mim às vezes.

– O quê? – Perguntei incrédula e já começando a ficar com raiva.

– Eeeeh... do mesmo jeito que a senhola está fazendo agola, ele blincava comigo, conversava, ela legal. – Ela o acha legal?

– Quan-Quando ele fazia isso?

– Pela manhã, quando todo mundo estava dormindo.

– E-e eu, onde eu estava?

– No quarto de vocês. – Olhei em volta e meus olhos foram direto para Maria Elena que já tinha acendido uma fogueira e estava preparando algo com alguma panela improvisada que sabe-se lá de onde tirou aquilo. Eu a encarei. Se o Lúcius visitava Kamilla no nosso quarto para interagir com ela, com certeza Elena sabia e nunca me contou nada. O que mais ela sabia? Ela realmente era alguém confiável?

– Está bom de você começar a treinar sua pronúncia com palavras que têm o “r”. – Mudei de assunto.

– Mas eu não sei. – Disse com preguiça.

– Ninguém nasce sabendo de tudo, agora b**e a língua.

– rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr...

Passamos bastante tempo assim com ela tentando falar as palavras corretamente, tentou até chorar porque estava com preguiça e não queria mais treinar, mas não me convenceu até conseguir falar algumas palavras corretamente, depois ficou bocejando e logo já estava dormindo. Se fosse para comer ou brincar não sentiria tanta preguiça assim.

 – A comida já está pronta. A Kamillinha dormiu. – Elena falou com um sorriso no rosto ao ver a menina nos meus braços dormindo.

– Mais tarde eu dou um pouco pra ela. – Falei em um tom sério, eu iria interrogar a Maria Elena, queria saber sobre o porquê não ter me contado sobre as visitas do Lúcius, eu iria analisar cada expressão no seu rosto, na sua voz para saber se o seu argumento era verdadeiro.

– Você comer agora?

– Daqui a pouco eu como. – Ela fez uma careta com a minha resposta, pois sabia que eu precisava comer para recuperar minhas forças.

– Algum problema? – Mulher esperta, já percebeu.

– Porque você não me contou que o Lúcius visitava a Kamilla para interagir com ela durante o dia? – Perguntei sem rodeios já confirmando que ela sabia, seria mais difícil mentir pra mim se tentasse. Ela baixou a cabeça, sinal de confirmação, estava disposta a falar a verdade, menos mal.

– Ele me pediu para não contar, pois sabia que ficaria com raiva. – Não gaguejou, nem demorou com a resposta, hummm, parecia ser verdade.

– Pediu? – Lúcius era o Alfa, ele poderia ter ordenado, era até o que eu pensava, ele pode ter forçado ela a não contar, ameaçado, mas pedir?

– Sim, Karol, ele me pediu, eu era a única que sabia o afeto dele pela Milla, não pude negar.

– Afeto? – Não pude deixar de sorrir sarcasticamente.

– Karol, eu sei o ódio que você sente por ele, e ele também sabe disso, mas... é difícil de te explicar...

– Tudo bem, ao menos ele não a tratava mal como fazia comigo. – Elena olhou pra mim com um pouco de tristeza e deu um suspiro. Não me importei, já estava acostumada com aquilo, havia outra coisa que estava me deixando inquieta, e talvez ela pudesse responder minhas dúvidas.

– Elena, por que as escravas estavam trabalhando durante o dia e sendo espancadas daquele jeito? O que aconteceu? Eu ouvi aqueles dois soldados que estavam no quarto com vocês dizendo que tinha acontecido alguma coisa com a Luna, é verdade? E a dona Tâmara, por que diabos aquele lobisomen estava descontando nela a raiva que estava de mim mesmo depois de eu ter sido espancada pela Luna e seus soldados? – Joguei para fora todas as dúvidas de uma vez só.

Não tive resposta nos primeiros segundos, ela só ficava me encarando como se estivesse com medo de falar algo de errado, eu esperei pacientemente, calma, para que ela tivesse confiança e falasse a verdade.

– Eeerr... Ka-Karol... bem ... – Ela ficava olhando para mim, o chão, ao redor, estava nervosa.

– Pode falar, não se preocupe... – Tentei tranquilizá-la. Ela respirou fundo.

– Tudo bem, mas não fique zangada, nem... Nem se sinta mal. – Lá vem coisa ruim.

– Depois do que a Luna fez com você, teve uma alvoroço na aldeia, Lúcius discutiu com ela. Fiquei sabendo que você não estava se regenerando, estava morrendo, como se tivesse desistido de viver. – Disso eu me lembro. – O Alfa mandou um médico te examinar e dar algum remédio, mas parece que você rejeitou.

– Sim, eu me engasguei, estava tudo muito confuso.

– Pois é, o médico saiu da cabana dizendo que você não aguentaria mais por causa dos graves ferimentos e desnutrição. Foi quando as coisas pioraram, o Lúcius saiu da cabana com ódio e entrou nos aposentos da Luna... – Ela parou de falar por um momento e logo continuou: - Eu conseguia escutar os gritos dela lá dentro e as coisas se quebrado. – Fiquei pasma, com os olhos arregalados e a boca aberta.

– Tem mais...

– Mais?

– Quando ele saiu da cabana da Luna, a Rosinha sem querer passou por ele e... e... ele a agarrou pelo pescoço e a jogou contra uma árvore há cinco metros de distância, a criança caiu morta no chão.

Fiquei paralisada com isso, eu detestava a pirralha, mas nunca imaginava uma morte dessas.

– Todos da aldeia disseram que era porque ele ainda estava com muita raiva, mas lá no fundo sabemos por que ele matou a Rosinha. – Olhei automaticamente para a Kamilla que ainda dormia nos meus braços. Filhotes não tinham capacidade de cura tão rápida quanto um lobisomen adulto, quando criança somos quase humanos, apenas na nossa primeira transformação que nos tornamos mais fortes, mais difícil de morrer, um lobisomen só morre com a cabeça decepada, o coração arrancado ou com um golpe fatal nele. Outros golpes podem, no máximo, causar sequelas, como o que fiz no Carlos, ele provavelmente ficou cego depois das minhas garras terem atravessado seus olhos.

– Quando as Gamas entraram no quarto da Luna, ela estava desmaiada com ferimentos graves no rosto, cabeça e costelas.

– Do mesmo jeito que eu estava. – Coloquei a Kamilla do meu lado e fui comer, é muita informação pra mim, eu precisava comer para digerir tudo. Não queria pensar no estado da dona Tâmara quando a encontrei no chão, aquele homem estava batendo nela porque assim ele se sentiria um pouco vingado pela morte da filha, mesmo sabendo que a mulher que ele estava matando não tinha culpa de nada.

– E quanto às escravas? Por que estavam trabalhando pela manhã e sendo espancadas daquela forma? – Olhei para Elena enquanto colocava um pedaço de carne na boca.

– Aquilo foi ordem do Alfa para trabalharem durante o dia, por causa dos sumiços que estavam acontecendo à noite, os soldados não gostaram nada daquilo, mas quem era louco de questionar suas ordens? Então eles descontaram nas escravas.

– Sempre o lado mais fraco. – Afirmei com uma carranca e Elena concordou comigo balançando a cabeça enquanto também comia.

– Descobriram o causador dos sumiços? – Perguntei.

– Não, mas o Alfa sabe.

– Quem pode ser?

Assim que terminei de fazer a pergunta, que mais era pra mim do que para Elena, escutei um barulho entre as árvores daquela floresta, tinha alguém ali, eu podia escutar seus passos suaves, me levantei automaticamente com um instinto de defesa, Maria Elena, mesmo sem escutar nada, viu minha reação e sabia que tinha algo de errado, começou a se levantar também e ficamos olhando entre as árvores, até que o vi.

As íris dos seus olhos eram mais negras que o breu da floresta, era um homem lindo, fiquei hipnotizada com aquela beleza, até que percebi algo estranho. Os olhos negros começaram a ficarem azuis, não iguais ao da Deusa da Lua que aparecia nos meus sonhos, cheios de vida e paixão, ao contrário, os olhos dele eram azuis opacos, frios, sem vida, morto. Olhei para Elena que também estava hipnotizada, quando eu disse em voz baixa, mesmo sabendo que ele ia me escutar também.

- Um Vampiro.

Augusta Andrade

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