Dez anos depois
Observo ela olhar para os lados com suspeita, antes de entrar em seu pequeno apartamento.
Demorei a encontrá-la, pois é esperta, cuidadosa, nunca fica muito tempo no mesmo lugar e está sempre se movendo. Sua aparência muda conforme suas novas identidades.
Hoje, ela usa os cabelos loiros, pouco abaixo dos ombros, se veste de maneira recatada e discreta, podendo, assim, passar despercebida com facilidade.
Na foto que me foi entregue, usava os cabelos mais escuros e sustentava um olhar duro e cruel no rosto. A foto foi recortada de uma câmera de segurança, do momento em que quase fora capturada, mas escapara pela quarta vez, matando três agentes e deixando mais dois em estado grave, no hospital.
Então, decidiram que, para capturá-la, a única solução seria enviar seu soldado mais letal. Agora, aqui estou, escondido, como a sombra que sou, observando a luz em seu apartamento se apagar e esperando apenas o momento certo para agir.
Aguardo pelo tempo necessário e, quando chega a hora, deslizo silenciosamente pela entrada do apartamento.
Sou como uma sombra, esgueirando-me pela abertura. Nenhum som, nenhum ruído. Meus olhos se ajustam à escuridão com facilidade e não tenho dificuldade de enxergá-la. A encontro sentada na poltrona, seu corpo preguiçosamente jogado para trás. Pressiona o interruptor ao seu lado, acendendo o abajur e iluminando parcialmente o ambiente.
Seus olhos se estreitam e os lábios se curvam em um sorriso ardiloso.
— Olá, Shadow!
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O rosto duro, frio, predatório. Nenhum músculo treme. Nada. Nenhuma emoção na face adônica.
— Spider! — O som rouco de sua voz soa quase como uma ameaça de morte ao pronunciar meu apelido.
Durante todo esse tempo em que venho fugindo, me perguntei quando o enviariam por mim. Agora, aqui estamos. Frente a frente.
Shadow pode ser furtivo e se esconder como uma sombra, mas não sou idiota. Não preciso perguntar como me encontrou, pois sei a resposta. Deixei que me encontrasse. A cada seis meses, permito que a Organização me encontre, na esperança de que o enviem, mas não tive sorte... até agora.
— Estive esperando por você, Shadow — digo pausadamente.
Novamente não sou recompensada por nenhuma expressão. É por isso que ele é letal. O semblante é frio como gelo. Olhos azuis vazios, sem trespassar quaisquer emoções.
— Não precisava ter me esperado. Era só ter ido me encontrar — diz com frieza, a voz afiada como navalha.
— Não era uma opção, mas sabia que, cedo ou tarde, o mandariam para mim. Só precisei esperar.
Estreita o olhar. Sua primeira reação, desde que cruzou a porta.
— Deixou que eu a encontrasse. — Não é uma pergunta, mas respondo, assim mesmo:
— Assim como deixei que me encontrassem todas as outras vezes.
Ele dá um passo à frente e me levanto. Shadow é uns bons vinte centímetros mais alto que eu, com meus 1,75m. Por isso, preciso erguer a cabeça para olhar dentro dos olhos tão frios quanto uma tempestade glacial.
— Tenho ordens de levá-la de volta, viva ou morta. Você escolhe! — Não tenho dúvidas de que seu plano seja realmente esse. Sei que Shadow fará qualquer coisa para cumprir com seu dever. Se for preciso, até me matar, para eliminar a ameaça. Então é o que fará.
Movemo-nos quase que instantaneamente. Deslizo o corpo pelo piso, fazendo meu pé se chocar com seu joelho e escapando por pouco de um soco que passa raspando pelos meus cabelos. Shadow tropeça para frente, mas é rápido e recupera o equilíbrio prontamente.
Lanço-me em sua direção, mas ele antecipa meus movimentos, segura minha perna e empurra, fazendo-me chocar contra a parede. Sem demora, dobro os braços, golpeando-lhe o pescoço com os cotovelos, ao mesmo tempo em que chuto o estômago, conseguindo, assim, escapar de seu domínio.
Circulamos um ao outro, atacando e esquivando, até que finalmente consigo me mover até o lado oposto da sala. No entanto, meu adversário me empurra contra a estante de madeira com a mão se fechando ao redor de meu pescoço e as pernas bloqueando as minhas.
— Pare de lutar ou vou matá-la — estronda em um rosnado, os dedos apertando minha garganta fortemente e impedindo minha respiração.
Estou exatamente onde queria estar. Minhas mãos se fecham ao redor das duas seringas presas ao lado da estante e, antes que se dê conta, espeto as agulhas nos dois lados do pescoço dele, injetando o potente sedativo.
Shadow me solta e cambaleia, antes de cair de joelhos no chão. Seus olhos estão frios e furiosos, enquanto tenta se levantar, lutando arduamente para cumprir o objetivo que o movia: eliminar-me.
Fecho a mão em punho e o golpeio no rosto, fazendo-o cair desacordado.
Quando cruzou por essa porta, ele não sabia o que estava enfrentando, mas encontrou uma adversária à altura. Estava determinado a cumprir com sua missão, mas eu sou movida por algo muito maior.
Estou determinada a salvá-lo, porque perdê-lo novamente não é uma opção.
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A primeira coisa que percebo ao despertar é que não estou preso em nenhum calabouço e, sim, em um quarto fracamente iluminado pelo pequeno abajur do outro lado do aposento. A segunda é que estou em uma cama confortável e algemado com correntes de titânio cravadas na parede. Qualquer tentativa de me soltar é inútil, então poupo as energias para quando for realmente necessário.
A porta do quarto se abre e ela entra, carregando uma bandeja que coloca sobre a mesinha.
— Boa noite, Shadow. Está com fome? — pergunta docemente, fazendo-me questionar o que, diabos, está tramando. Por que a seção de tortura ainda não começou?
Deixo meu rosto neutro, sem expressão, quando ela se aproxima com um kit de primeiros socorros nas mãos.
Penso que, agora, ela vai começar a tentar arrancar informações, o que é um desperdício tanto do seu tempo, quanto do meu, já que nós dois sabemos que não vou dizer nada.
Sinto a ardência na parte de traz do meu pescoço e vejo-a retirar uma bandagem coberta de sangue.
— Desculpe-me por isso. Precisei fazer uma incisão para remover o rastreador — diz.
Quero perguntar do que, diabos, ela está falando, mas permaneço em silêncio, enquanto ela termina de colocar um novo curativo.
— Cada indivíduo da Organização leva um dispositivo de rastreamento na parte de trás do pescoço. Não se preocupe; retirei o seu em um lugar bem longe daqui e não vão nos encontrar — responde, como se estivesse lendo minha mente.
— Acho que eu saberia, se tivesse algo instalado em meu pescoço — digo com a voz neutra.
Ela não responde, mas volta para a mesa e aperta um botão que faz a parte de cima da cama se mover, deixando-me praticamente sentado.
— Está com fome? — torna a perguntar e dá de ombros ao ter apenas meu silêncio como resposta.
— Quando foi a primeira vez em que me viu, Shadow? Lembra-se de quando nos conhecemos?
Sim, eu lembro. Não sei aonde ela quer chegar com essa pergunta, então permaneço em silêncio.
Seus olhos verdes se fixam em meu rosto.
— Uma menina de cabelos loiros estava escondida e chorando atrás de um galpão. Sabe por que essa menina estava chorando, Shadow?
— Ela havia perdido seu gato — As palavras saltam de minha boca, mas não faço ideia do porquê disse isso.
Ela se levanta, emoção crua por todo seu rosto.
— Você se lembra!
Balanço a cabeça em negação.
— Não sei por que, diabos, eu disse isso — confesso.
Fecho os olhos e tento buscar na memória a imagem que descreveu, mas não consigo.
Spider é ardilosa, esperta. Fui alertado sobre ela. Sabe que não pode quebrar meu corpo. O treinamento ao qual somos submetidos, na Organização, garante isso. Então entendo o que ela está tentando fazer. Spider quer entrar em minha mente, me confundindo.
Ela se aproxima, o rosto tão perto do meu que posso ver as linhas cinzentas ao redor dos olhos verdes.
— Qual era o nome do gato, Shadow?
Travo o maxilar com força, quando o nome apenas surge em minha mente.
— Qual era o nome dele? — grita a pergunta, batendo no colchão com as mãos em punho.
— Spider! O nome do maldito gato era Spider.
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Ele berra o nome. Seu rosto, até então neutro, mostra confusão.
— Como sei disso? — questiona-se com o cenho franzido.
Não consigo mais conter o desejo que queima dentro de mim e coloco minha mão em seu rosto. As emoções estão fora de controle. Lágrimas deslizam de meus olhos, molhando minha face. Quero tanto me aconchegar em seus braços, que chega a ser quase uma dor física. Estar tão perto, mas, ao mesmo tempo, tão longe dele é uma tortura.
Fecha os olhos por alguns segundos e, quando torna a abri-los, vejo apenas o tormento em sua expressão.
— Não me toque, porra! — protesta, fazendo-me saltar para longe com a frieza de seu rosto.
Ele puxa as correntes com força, tentando se soltar, mas é impossível. Os aros são de titânio e resistentes à sua força sobre-humana.
— Apenas se machucará, Shadow. Sabe que não vai conseguir romper as correntes.
Não quero que se machuque, apesar de saber que, se tiver uma chance, não pensará duas vezes antes de me matar.
Volto para meu lugar aos pés da cama e a distância que coloco entre nós o acalma um pouco.
— Sei que não tem motivos para acreditar em mim, Shadow.
— Me alertaram sobre você. É como seu nome: uma aranha que tenta atrair a presa para sua teia de enganação e mentira. Não sei o que, diabos, está tentando fazer com minha mente, mas não importa o que faça: no final, vou me soltar e fazer você pagar, derramando seu sangue por todo esse lindo carpete branco. — Não há emoção em suas palavras; não há nada.
Shadow é o soldado mais letal porque não sente remorso. A Organização conseguiu o que queria, o transformando em uma máquina de matar e, no momento, eu sou o alvo de toda sua ira.
— Lamento, Shadow, mas os únicos sangues a serem derramados serão os dos fundadores da Organização, e eu mesma me certificarei disso.
Não espero ele falar nada e saio do quarto, batendo a porta atrás de mim. Apoio meu corpo contra a parede e deslizo até sentar no chão, cobrindo meu rosto com as mãos e tentando abafar os soluços que me escapam.
Por anos, me preparei para encontrá-lo, mas nem toda a preparação do mundo me deixaria pronta para isso. Ser o alvo de todo seu ódio me corta mais profundo do que imaginei ser possível. Sei que ele não lembra, mas isso não impede a dor cortante em meu coração.
ShadowPassei boa parte da noite pensando em como sei o nome do maldito gato e por que ele tem o mesmo apelido que ela. O que isso significa?Em algum momento, acabo adormecendo e, quando acordo, ela está parada de costas para mim e de frente para a janela, com as cortinas parcialmente abertas. A claridade do amanhecer entra pela pequena abertura e deixa o quarto iluminado pelos primeiros raios de sol.Na noite em que ela invadiu as instalações e fugiu, levando consigo informações valiosasda Organização, todos os agentes presentes foram escalados para pegá-la antes que conseguisse escapar.Aencontrei do outro lado das instalações, de costas, se preparando para escalar o muro.Quando se virou e olhei em seu rosto, congelei. Algo nos seus olhos verdes me deixou paralisado; aprisionado ao chão, sem saber, ao certo, o porquê. Meu coração
ShadowA observo enquanto dirige, as mãos fortemente apertadas ao volante, mandíbula contraída, rosto tenso. Meus olhos se estreitam, enquanto a analiso. Tentando compreender os últimos acontecimentos que me levaram até esse momento.Não sei o que me fez segui-la até aqui. Não consigo explicar o motivo pelo qual entrei no carro e não a matei ou a levei para Organização como era a minha missão. Tinha estado a sua procura com um único propósito; prendê-la ou matá-la. Mas nada disso parece importante, agora.Talvez o fato de meu passado ser apenas um grande vazio escuro e profundo que não consigo alcançar, tenha me deixado reticente em cumprir a minha missão, principalmente pelo fato de que Spider parece saber muito sobre o meu passado. Talvez esteja cometendo um erro, mas essa pode ser a única chance que terei de
Spider— Você pode me colocar no chão, agora? — peço, depois de ter despertado, algum tempo depois ainda sendo carregada por ele.Shadow tem sangue seco nos cabelos e suor escorrendo no rosto pelo esforço que está fazendo para carregar o peso extra.— Você não está bem! — diz, ignorando meu pedido e continuando a caminhar a passos apressados, embrenhando-se cada vez mais na floresta.— Shadow, eu posso caminhar. Fui submetida a um Soro regenerativo, assim como você. A cura já está agindo há algum tempo e, com o descanso em seu colo, já me sinto bem melhor. Está exigindo muito de seu corpo. Coloque-me no chão.Quando descobrimos que Dr. Belikov, o cientista da Organização, criava soldados a partir de um Soro que, não só aumentava sua força física,
Spider— Vocês demoraram — digo, quando King sai cantando pneu com Ramon ao seu lado.Ativei o alerta assim que abri a escotilha para o porão da casa segura, uma medida de segurança muito eficaz, que avisou aos outros dos meus problemas, fazendo-os rastrearem o carro e me encontrarem. Apesar de provocá-los estou grata, por terem chegado bem a tempo.King me olha pelo espelho e bufa.— Porque sempre está catando confusão, Spider? Será que não podemos te deixar um minuto sozinha? — exclama.— Juro que, dessa vez, não fiz nada — respondi erguendo as mãos para o alto.— Como encontraram você na casa segura? Não me diga que se esqueceu de tirar o rastreador dele? — questiona Ramon, me olhando por cima dos ombros.Olho para Shadow desmaiado ao meu lado, depois do tiro com o sedat
Spider Muita coisa mudou por aqui, depois de minha última visita. Ilya pediu para a senhora responsável pela cozinha preparar alguns sanduíches, aos quais devoro avidamente antes de ir para a sala de reuniões. Perco-me algumas vezes por esses corredores, mas finalmente chego à sala de reuniões, onde os outros estão aguardando. Ilya é o líder da resistência, mas, para as coisas funcionarem, elegeu seis comandantes para ajudá-lo. — Esse lugar precisa de um mapa — digo, sentando-me em uma cadeira ao lado de King antes de cumprimentar os outros com um aceno de cabeça. — Sempre vem aqui por pouco tempo. Se ficasse, como sugeri outras vezes, já saberia andar por esses corredores de olhos fechados. — diz Ilya, contemplando-me tão intensamente que, por um momento, volto ao passado e lembro-me de quando decidi sair das proteções que o bunker oferecia para me aventurar no mundo em busca de Shadow. E lá está, em meio às
Shadow— Você não pensa em sair daqui? Descobrir o que tem por trás desses muros? — indaga.Estamos sentados na beira do rio, lado a lado. Cassandra segura seus cabelos longos no alto, como se fosse prendê-los, ergue a cabeça, fecha os olhos e aguarda minha resposta, mas esqueço completamente da pergunta enquanto observo seu pescoço lânguido, que há muito tempo desejo beijar. O que ela faria, se me inclinasse e deslizasse a língua ao longo de sua clavícula, provando da pele delicada. — Ei, Ty... Pisco rapidamente, saindo do transe e afastando o olhar do seu pescoço convidativo. Cas me observa com o cenho franzido.— Por que está olhando para meu pescoço desse jeito? — pergunta. — De que jeito? — disfarço.
ShadowA complexidade da resistência é impressionante. O lugar foi montado e planejado com perfeição. Mas é quando chego ao refeitório que sou surpreendido pelas vozes e risadas, fazendo-me parar na porta abruptamente e absorver a cena nunca antes vista. A expressão em seus rostos me faz ficar aturdido, como se tivesse entrando em algum universo alternativo.— É incrível, não é? — diz Spider, olhando-os com um brilho no olhar. — Isso que é real, Shadow, não aquela falsa felicidade induzida pela colônia.Não consigo falar, estou impressionado demais para conseguir formar uma frase coerente. Meus olhos passeiam de um lado a outro, querendo absorver tudo de uma única vez.— Tia Spider — grita uma menina do outro lado do salão, fazendo um sorriso despontar no r
SpiderA reação de Shadow ao sentir o aroma do macarrão temperado com especiarias me fez sorrir ao lembrar da minha própria reação ao me deparar, pela primeira vez, com o cheiro delicioso de comida de verdade, ao invés daquela porção grudenta de ração que distribuem na colônia.Geralmente, quando estou na resistência, sento-me à mesa dos comandantes com Ilya e Ana, mas não sei se Shadow está preparado para o interrogatório que certamente Ramon, que não tem um pingo de tato, fará. Então o levo para uma mesa vazia, não muito distante de onde eles estão.Comemos em silêncio, enquanto ele saboreia a comida como se fosse o néctar dos Deuses, e lembro da sensação prazerosa que senti quando Ilya me levou um prato de sopa, assim que acordei.Estava muito