Passei boa parte da noite pensando em como sei o nome do maldito gato e por que ele tem o mesmo apelido que ela. O que isso significa?
Em algum momento, acabo adormecendo e, quando acordo, ela está parada de costas para mim e de frente para a janela, com as cortinas parcialmente abertas. A claridade do amanhecer entra pela pequena abertura e deixa o quarto iluminado pelos primeiros raios de sol.
Na noite em que ela invadiu as instalações e fugiu, levando consigo informações valiosas da Organização, todos os agentes presentes foram escalados para pegá-la antes que conseguisse escapar.
A encontrei do outro lado das instalações, de costas, se preparando para escalar o muro.
Quando se virou e olhei em seu rosto, congelei. Algo nos seus olhos verdes me deixou paralisado; aprisionado ao chão, sem saber, ao certo, o porquê. Meu coração bateu tão rápido que, por um instante, pensei que fosse saltar para fora do peito, mas, antes de ter alguma chance de entender o que estava acontecendo comigo, ela pulou, impulsionando o corpo para cima com as pequenas hastes de metal, que foram estrategicamente colocadas por todo o comprimento da grande parede de tijolos.
— Estarei te esperando, Shadow — disse antes de saltar, desaparecendo do outro lado do muro.
Durante esses dois anos tenho me perguntado o que aconteceu comigo naquela noite. Sou conhecido pela minha frieza imperturbável; sou implacável, porque não me permito sentir. As emoções e os sentimentos são o que nos tornam mais fracos. Sou considerado o melhor soldado, a arma mais letal, pois não sinto nada. Ou não sentia, até conhecê-la, naquela noite.
— Durante muito tempo, sonhei com esse momento — diz, virando-se para mim.
A aura de tristeza ao redor de seu rosto faz com que sinta uma dor incômoda em meu peito.
Ela balança a cabeça e suspira.
— Você não sente nada, quando olha para mim? — indaga.
Não gosto do que estou sentindo. É confuso e estranho, e faz com que me sinta fraco. Novamente o aviso soa em minha mente. Spider é manipuladora e, de alguma maneira, está conseguindo me confundir, mas não vou permitir que entre em minha cabeça e saiba o efeito que surte em mim.
— Sinto vontade de apertar minhas mãos ao redor de seu pescoço até ver a luz desaparecer de seus olhos — minto com a voz enganosamente fria.
Lágrimas vertem de seus olhos e sou arrastado por uma avalanche de sentimentos que não consigo compreender. Quero envolvê-la em meus braços até fazer a dor desaparecer de seu rosto.
Ela se aproxima da cama, lentamente solta meus pés e, logo depois, minhas mãos.
Suas ações me confundem e fico apenas parado, observando-a.
— Mate-me, Shadow. Se for isso o que realmente quer, faça.
Envolvo a mão em torno de sua garganta e a empurro, derrubando-a na cama. Meus dedos pressionam firme. Apenas uma torção e quebrarei seu pescoço frágil com extrema facilidade, pois ela não luta contra.
— Sempre vou amar você, Tyler — força as palavras a saírem, através de meu aperto, soando baixas e roucas, mas as ouço perfeitamente e salto para longe.
Ajoelho-me no chão com as mãos na cabeça, quando a dor trespassa pelo meu crânio, tão forte e intensa que um grito de pura agonia rasga pela minha garganta.
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Me ajoelho no chão ao seu lado e embalo seu corpo, enquanto bramidos de aflição o atravessam, suas mãos pressionando forte a cabeça.
Trazer uma recordação de volta abruptamente pode ser extremamente perigoso. Não sei, ao certo, qual o processo do experimento e como fazem para deletar as memórias, mas já vi como o corpo reage ao ser subitamente lembrado de algo que fora obrigado a esquecer. Isso pode até matar ou deixar a pessoa em coma, pelo colapso que o cérebro sofre. Deixar escapar o nome de Tyler foi um erro que não posso, nunca mais, cometer. Ele precisa se lembrar aos poucos, assim como lembrou o nome do gato. A mente é complexa demais para forçar algo dessa magnitude.
Quando seu lamurio de dor finalmente cessa, seguro seu rosto e vejo o profundo tormento por trás de seus olhos azuis pálidos.
— Quem eu sou? — pergunta, seu semblante tenso, confuso.
— Não devia ter dito aquilo. As memórias precisavam voltar gradativamente. Não force ou isso pode lhe causar ainda mais dor — aviso, passando meus dedos suavemente pela sua têmpora, massageando.
Ele pousa a mão sobre a minha e seu toque é reconfortante, acolhedor.
Seus lábios se separam, como se para dizer algo, mas, seja lá o que diria, é interrompido pelo som alto e atordoante de uma explosão.
Shadow se move rápido e instintivamente cobre meu corpo com o seu, recebendo o maior impacto dos tijolos que se desprendem da parede e voam em nossa direção. Quando nossos olhos se encontram e vejo a surpresa em seu rosto, minha suspeita se confirma: protegeu-me por puro instinto.
Ergo-me rapidamente e vejo que o lado direito do quarto foi destruído. Mais uma explosão soa no andar de baixo, fazendo o alicerce da casa balançar.
Não temos muito tempo.
— Precisamos sair daqui! Venha comigo, Shadow — peço, oferecendo minha mão, que ele observa por alguns segundos antes de pegar.
— Mostre-me o caminho.
Apesar das circunstâncias, não consigo evitar um sorriso.
No corredor, somos recebidos por mais uma explosão, o fogo se alastrando rapidamente pelas escadas, a fumaça enchendo o ar e tornando difícil respirar.
Conduzo-o em direção ao final do corredor, onde o painel de controle é escondido por um quadro na parede.
Cubro o nariz com a mão, evitando inalar a fumaça pungente, digito os números rapidamente e dou dois passos para trás.
A parede de move para o lado, revelando a rampa escondida.
— Você vai primeiro. Preciso fechar o compartimento — aviso.
Shadow escorrega pela rampa e vou logo atrás dele. Sento no topo e aperto o painel ao lado da parede, fechando-a antes de deslizar até o subsolo, onde o encontro de pé, me esperando.
— Belo engenharia — diz, novamente arrancando um sorriso de meus lábios.
O lugar foi criado como saída de emergência. Há um carro equipado com o necessário para uma fuga rápida, incluindo roupas, armas e suprimentos.
Antes de entrarmos no veículo, ele me segura pelo braço.
— Não sei por que estou fugindo com você, ao invés de entregá-la para eles.
— Você pode não lembrar, Shadow, mas ainda sente. — Coloco minha mão no lado esquerdo de seu tórax. — Você sente o vazio, como se um pedaço estivesse faltando e, quando eu toco em você assim... — digo, tocando seu rosto.
— Me sinto inteiro de novo — ele completa, seu olhar tão intenso que custa tudo de mim não me jogar em seus braços. — Como? — pergunta.
— Não posso revelar. Se o fizer, as memórias vão te sobrecarregar, como agora há pouco. Lá no fundo, você sabe que pode confiar em mim. É por isso que está aqui agora e, não tentando me matar, ou me aprisionar.
O som do compartimento explodindo nos sobressalta e sem demora entramos no carro.
Pressiono os botões do painel e, novamente, uma rampa surge à nossa frente. Acelero, descendo pelo túnel.
O lugar é totalmente planejado. O túnel subterrâneo nos levará a uns vinte quilômetros longe da propriedade, a passagem se abrirá em uma fazenda e, assim que acionar o painel, a brecha se fechará e restará apenas um monte de feno e nenhum sinal de que passamos por ali.
— Você fez tudo isso sozinha? — pergunta admirado, após pegarmos a estrada principal, nos afastando da fazenda.
— Não — respondo sem dar maiores informações.
Seu olhar se estreita, analisando-me.
— Falaram que você trabalha sozinha — diz com desconfiança.
Dou de ombros.
— Eles sabem somente aquilo que permito — respondo sucinta.
Como se uma luz se acendesse, me esquadrinha por baixo de seus extensos cílios com suspeita.
— Trabalha para a resistência — diz com asco e soa como se eu estivesse trabalhando para um grupo de canibais que devora criancinhas. — Como ninguém da Organização suspeitou disso?! — refletiu em voz alta, fazendo-me revirar os olhos.
— Já disse. Eles só sabem o que permito e pare de me olhar desse jeito, como se eu tivesse cometido algum crime hediondo — peço ao ser alvo do olhar julgador. — A resistência não é o vilão aqui, Shadow.
Ele bufa.
— E quem seria o vilão? A organização? — Lancei um rapido olhar em sua direção.
— O que você acha, Shadow? Eles acabaram de explodir a minha casa e antes que diga que era para resgatá-lo, eles nem se preocuparam de você ser atingido ou não.
— Eles não estavam lá para me resgatar. Estavam lá para pegar você.
Isso fazia todo o sentido. Depois de todos esses anos tentando me prender, não era de se estranhar que explodissem tudo só para conseguir me deter.
— Que seja. Ainda assim, eles são os vilões e não a resistência. Precisa abrir os olhos, Shadow.
Ele me analisa por alguns instantes, antes de pronunciar.
— Então, me explique. Acabei de virar as costas para minha Organização. Acredito que eu mereça algumas respostas menos evasivas — exige.
Se quero que ele acredite, preciso fazer o que me pede. Solto um longo suspiro, preparando-me para contar a minah história.
— Eu cresci... merda! — praguejo interrompendo-me, ao visualizar dois carros pretos se aproximando em alta velocidade.
— Segure-se! — ordeno e piso fundo no acelerador.
ShadowA observo enquanto dirige, as mãos fortemente apertadas ao volante, mandíbula contraída, rosto tenso. Meus olhos se estreitam, enquanto a analiso. Tentando compreender os últimos acontecimentos que me levaram até esse momento.Não sei o que me fez segui-la até aqui. Não consigo explicar o motivo pelo qual entrei no carro e não a matei ou a levei para Organização como era a minha missão. Tinha estado a sua procura com um único propósito; prendê-la ou matá-la. Mas nada disso parece importante, agora.Talvez o fato de meu passado ser apenas um grande vazio escuro e profundo que não consigo alcançar, tenha me deixado reticente em cumprir a minha missão, principalmente pelo fato de que Spider parece saber muito sobre o meu passado. Talvez esteja cometendo um erro, mas essa pode ser a única chance que terei de
Spider— Você pode me colocar no chão, agora? — peço, depois de ter despertado, algum tempo depois ainda sendo carregada por ele.Shadow tem sangue seco nos cabelos e suor escorrendo no rosto pelo esforço que está fazendo para carregar o peso extra.— Você não está bem! — diz, ignorando meu pedido e continuando a caminhar a passos apressados, embrenhando-se cada vez mais na floresta.— Shadow, eu posso caminhar. Fui submetida a um Soro regenerativo, assim como você. A cura já está agindo há algum tempo e, com o descanso em seu colo, já me sinto bem melhor. Está exigindo muito de seu corpo. Coloque-me no chão.Quando descobrimos que Dr. Belikov, o cientista da Organização, criava soldados a partir de um Soro que, não só aumentava sua força física,
Spider— Vocês demoraram — digo, quando King sai cantando pneu com Ramon ao seu lado.Ativei o alerta assim que abri a escotilha para o porão da casa segura, uma medida de segurança muito eficaz, que avisou aos outros dos meus problemas, fazendo-os rastrearem o carro e me encontrarem. Apesar de provocá-los estou grata, por terem chegado bem a tempo.King me olha pelo espelho e bufa.— Porque sempre está catando confusão, Spider? Será que não podemos te deixar um minuto sozinha? — exclama.— Juro que, dessa vez, não fiz nada — respondi erguendo as mãos para o alto.— Como encontraram você na casa segura? Não me diga que se esqueceu de tirar o rastreador dele? — questiona Ramon, me olhando por cima dos ombros.Olho para Shadow desmaiado ao meu lado, depois do tiro com o sedat
Spider Muita coisa mudou por aqui, depois de minha última visita. Ilya pediu para a senhora responsável pela cozinha preparar alguns sanduíches, aos quais devoro avidamente antes de ir para a sala de reuniões. Perco-me algumas vezes por esses corredores, mas finalmente chego à sala de reuniões, onde os outros estão aguardando. Ilya é o líder da resistência, mas, para as coisas funcionarem, elegeu seis comandantes para ajudá-lo. — Esse lugar precisa de um mapa — digo, sentando-me em uma cadeira ao lado de King antes de cumprimentar os outros com um aceno de cabeça. — Sempre vem aqui por pouco tempo. Se ficasse, como sugeri outras vezes, já saberia andar por esses corredores de olhos fechados. — diz Ilya, contemplando-me tão intensamente que, por um momento, volto ao passado e lembro-me de quando decidi sair das proteções que o bunker oferecia para me aventurar no mundo em busca de Shadow. E lá está, em meio às
Shadow— Você não pensa em sair daqui? Descobrir o que tem por trás desses muros? — indaga.Estamos sentados na beira do rio, lado a lado. Cassandra segura seus cabelos longos no alto, como se fosse prendê-los, ergue a cabeça, fecha os olhos e aguarda minha resposta, mas esqueço completamente da pergunta enquanto observo seu pescoço lânguido, que há muito tempo desejo beijar. O que ela faria, se me inclinasse e deslizasse a língua ao longo de sua clavícula, provando da pele delicada. — Ei, Ty... Pisco rapidamente, saindo do transe e afastando o olhar do seu pescoço convidativo. Cas me observa com o cenho franzido.— Por que está olhando para meu pescoço desse jeito? — pergunta. — De que jeito? — disfarço.
ShadowA complexidade da resistência é impressionante. O lugar foi montado e planejado com perfeição. Mas é quando chego ao refeitório que sou surpreendido pelas vozes e risadas, fazendo-me parar na porta abruptamente e absorver a cena nunca antes vista. A expressão em seus rostos me faz ficar aturdido, como se tivesse entrando em algum universo alternativo.— É incrível, não é? — diz Spider, olhando-os com um brilho no olhar. — Isso que é real, Shadow, não aquela falsa felicidade induzida pela colônia.Não consigo falar, estou impressionado demais para conseguir formar uma frase coerente. Meus olhos passeiam de um lado a outro, querendo absorver tudo de uma única vez.— Tia Spider — grita uma menina do outro lado do salão, fazendo um sorriso despontar no r
SpiderA reação de Shadow ao sentir o aroma do macarrão temperado com especiarias me fez sorrir ao lembrar da minha própria reação ao me deparar, pela primeira vez, com o cheiro delicioso de comida de verdade, ao invés daquela porção grudenta de ração que distribuem na colônia.Geralmente, quando estou na resistência, sento-me à mesa dos comandantes com Ilya e Ana, mas não sei se Shadow está preparado para o interrogatório que certamente Ramon, que não tem um pingo de tato, fará. Então o levo para uma mesa vazia, não muito distante de onde eles estão.Comemos em silêncio, enquanto ele saboreia a comida como se fosse o néctar dos Deuses, e lembro da sensação prazerosa que senti quando Ilya me levou um prato de sopa, assim que acordei.Estava muito
SpiderNa parte de trás da casa, fora montada uma pequena pracinha para as crianças poderem brincar um pouco ao ar livre e sentirem o sol na pele.A propriedade afastada dá certa segurança, principalmente porque a casa cobre toda a frente, bloqueando a visão dos fundos para quem passa pela estrada de terra.Fico observando Ana correr atrás de uma borboleta, depois de cansar de se balançar, encantada com aquela pequena criatura de asas coloridas.Ao nascer, ela era tão pequena e frágil. Apesar de todos os cuidados do Dr. Benjamin, todos pensavam que não sobreviveria. Quando sua mãe fora resgatada, estava com 3 meses de gestação. Belikov a tinha submetido a altas doses da droga e de outra “vacina” que, segundo ele, fortaleceria a imunidade do bebê.No quarto mês, a pequena Ana nasceu, mas sua mãe não sobrevi