— Você pode me colocar no chão, agora? — peço, depois de ter despertado, algum tempo depois ainda sendo carregada por ele.
Shadow tem sangue seco nos cabelos e suor escorrendo no rosto pelo esforço que está fazendo para carregar o peso extra.
— Você não está bem! — diz, ignorando meu pedido e continuando a caminhar a passos apressados, embrenhando-se cada vez mais na floresta.
— Shadow, eu posso caminhar. Fui submetida a um Soro regenerativo, assim como você. A cura já está agindo há algum tempo e, com o descanso em seu colo, já me sinto bem melhor. Está exigindo muito de seu corpo. Coloque-me no chão.
Quando descobrimos que Dr. Belikov, o cientista da Organização, criava soldados a partir de um Soro que, não só aumentava sua força física, como também regenerava as células do corpo, alguns voluntários, incluindo eu, aceitamos fazer parte de um experimento criado pelo médico da resistência, semelhante ao Soro. Com as amostras coletadas de um dos soldados capturados, Dr. Benjamin conseguiu criar um soro similar, aumentando a nossa força, aguçando nossos sentidos e nos proporcionando uma regeneração celular muito mais rápida, assim como os soldados da organização.
Vejo a dúvida no rosto de Shadow, mas finalmente ele assente.
Segura meus ombros por alguns instantes, como se temesse me soltar. Posso sentir o calor irradiando da minha pele; essa atração magnética que sempre nos atraiu em direção ao outro, antes mesmo de termos idade suficiente para compreender o que estávamos sentindo.
Posso ver no brilho dos seus olhos que, apesar de sua memória ter sido apagada, ainda está ali, escondido nas profundezas de seu coração. Suas ações provam isso, assim como seus olhos. Shadow me salvou, apesar de tudo. Mesmo tendo jogado o carro para fora da estrada, seu instinto protetor fez com que me carregasse em seus braços, embora estivesse ferido, para me salvar dos homens que me caçam.
Caminhamos a passos apressados, até encontrarmos um pequeno córrego; minha garganta está seca e com um gosto amargo. Debruço-me sobre a água, capturando-a com as mãos em concha e bebendo-a com sofreguidão.
Lavo também o rosto, retirando o sangue seco em minha face e observo Shadow fazer o mesmo.
— Não podemos ficar parados por muito tempo. Precisamos encontrar um lugar seguro — pondero.
— Não queria puxar o volante e tirar o carro da estrada — diz.
— Então por que o fez? — pergunto.
Ele me olha por alguns instantes e vejo os olhos azuis tempestuosos.
— Tem alguma coisa errada comigo. Mesmo contra a minha vontade, acabei fazendo isso.
— Merda! — praguejo e me aproximo de Shadow.
— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — interpelo, observando-o atentamente.
— A primeira vez foi quando quase te matei, depois de me soltar, e agora com o carro. — Ele fecha os olhos por alguns instantes. — Tenho consciência, mas minhas ações são contrárias aos meus desejos. Quando fui designado para capturar ou matar você, Dr. Belikov me submeteu a um novo experimento. Ele chama de...
— Projeto Fênix — interrompo, sentindo os pelos de minha nuca se arrepiarem. Isso explica como nos encontraram em minha casa segura e na estrada. Provavelmente o chip tem um rastreador.
Seu olhar se estreita.
— Como sabe disso?
— Não temos tempo para isso. Vai ter que confiar em mim. Precisamos tirar a Fênix de você.
— Como? — pergunta com olhar determinado.
Antes que possa responder, ambos viramos para trás ao ouvirmos sons de galhos se quebrando. Entreolhamo-nos, levantamos rapidamente e corremos em direção ao outro lado do córrego.
Observo Shadow mancar levemente enquanto corre e olho para seu pé, surpreendendo-me ao vê-lo sem um dos sapatos, tão inchado que me admira ainda caminhar e, pior, correr, mas o fez por um tempo, comigo em seu colo. Sei que a cura deve estar agindo dentro dele, tentando remendar o osso machucado, mas, se não parar de forçar o pé, vai levar muito mais tempo que o normal para as células se regenerarem.
Ele para abruptamente, fazendo-me chocar contra seu corpo. Vira-se e algo em seus olhos me faz dar um passo para trás.
— Shadow? — chamo.
— Corre! — brada, o rosto duro.
— Shadow! — chamo novamente, recuando mais um passo.
— Por favor! Corre, Spider! — ordena, a mandíbula contraída, a voz gutural pelo esforço em conter-se, mas é o olhar de desalento que me faz girar sobre os calcanhares e correr para longe.
Shadow não está fazendo nenhum esforço para ser silencioso. Posso ouvir seus passos apressados atrás de mim, como se quisesse me avisar que está chegando perto.
Posso correr mais rápido que ele e sei que consigo despistá-lo, já que está com o pé machucado, mas não faço isso. Mantenho um ritmo constante, sempre deixando uma distância segura entre nós, mas não o suficiente para que nos percamos um do outro.
Quando chego à estrada principal, paro de súbito ao ver dois soldados com armas em punhos, apontadas diretamente para minha cabeça.
— Acabou, Spider! — diz Shadow, a voz retumbando logo atrás de mim.
Ignorando os homens à minha frente, viro de lado, mantendo ele e os soldados à vista. Aproxima-se até deixar uns dois metros de distância entre nós.
Reconheço uma situação fodida, e estou justamente em uma.
Movo o pescoço de um lado ao outro, os músculos tensos e doloridos.
— Sim, acabou. Qual de vocês vai dar o tiro? — indago, olhando de um para os outros.
— Ninguém vai atirar em você. Vai voltar conosco para a instalação — diz Shadow, para o qual não posso evitar sorrir.
— Fantoche Shadow, prefiro morrer a me tornar uma marionete controlada como vocês.
— Não faça isso, Spider — alerta Shadow ao detectar a determinação contida em minhas palavras.
Provavelmente vou morrer, mas será lutando, não sendo uma cobaia de laboratório. Pisco-lhe um olho e giro o corpo, sacando a arma em minha cintura e atirando no homem mais próximo a mim.
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Vejo que está decidida a tornar suas palavras reais. Spider move seu corpo rapidamente, quando atira no primeiro homem e então se joga para o lado, quando o segundo soldado dispara, errando o tiro ao ter meu corpo, chocando-se contra o dele. Minha mente e corpo lutam internamente.
Por um lado quero ajudá-la, mas por outro quero pegar a arma e matá-la.
Mais soldados se aproximam pela mata e o som das botas quebrando os galhos zune em meus ouvidos.
Spider não tem nenhuma chance contra os homens que se aproximam. Ela aproveita que distraio o soldado por tempo suficiente e o acerta um tiro na cabeça.
O som de um motor de carro aproximando-se em alta velocidade me faz girar a cabeça rapidamente. Mal tenho tempo de ver a metralhadora, antes de Spider se jogar contra meu corpo, as pernas empurrando as minhas e derrubando-me no chão de relva alta.
— Fique abaixado — ordena, seu corpo sobre o meu, a mão apoiada em minha cabeça.
O som dos disparos é ensurdecedor.
— Por favor, não levante — pede em um sussurro, seu rosto próximo ao meu, quando a empurro em uma tentativa de tirá-la de cima de mim e da linha de fogo.
A vontade de me erguer e colocá-la sobre a proteção do meu corpo é grande, mas o medo de me mexer e tirar sua pouca camuflagem é maior ainda, então permaneço parado, mal ousando respirar.
Os segundos em que ficamos no chão parecem não ter fim, até que o som cessa por tempo suficiente para ela erguer a cabeça.
— Vamos! — diz, levantando-se.
O veículo preto está parado a alguns metros de nós e dois homens que não reconheço estão divididos um em cada lado dele. Sigo Spider até o carro, não antes de olhar ao redor e ver os corpos caídos dos soldados que vinham pela mata.
— Não vou com vocês — aviso quando ela me empurra para entrar na parte de trás.
— Você precisa vir com a gente, Shadow. Precisamos tirar a Fênix de você — refuta.
Dou um passo para trás, meus olhos passando rapidamente pelos homens que nos observam, ambos com metralhadoras apontadas para mim.
— Não temos tempo para isso, Spider. Logo chegarão mais soldados. Precisamos ir, agora! — diz o que está na porta do motorista, que está aberta.
— Se eles vão atirar em mim, que façam agora. Não vou entrar nesse carro — afirmo, não gostando da forma como os dois homens me encaram, como se estivessem se esforçando para não apertar o gatilho.
— Sabe que tem alguma coisa errada, mas tudo bem! Não vou obrigá-lo a ir conosco. — Movimenta a cabeça em direção aos homens, que abaixam as armas em desagrado e entram no veículo.
Ela se aproxima e acalenta meu rosto. O toque suave de sua mão e o olhar triste em seu rosto fazem meu coração apertar e desejo entrar no veículo e ir embora com ela, mas tudo o que houve é uma prova de que não estará segura comigo por perto. E se sacar a arma e matá-la, sem conseguir me conter? Não posso arriscar. Preciso voltar para a instalação e descobrir o que está acontecendo.
Fico parado, observando enquanto ela entra no carro. Somente depois que ela fecha a porta é que me viro para ir embora.
— Shadow! — chama, antes mesmo que eu tenha dado dez passos.
Olho para trás e a vejo de pé, do lado de fora do veículo, uma pequena arma apontada para mim. Estava distraído com meus pensamentos e, mesmo com os sentidos apurados, não ouvi o barulho da porta se abrindo.
— Sinto muito — diz, antes de apertar o gatilho.
Spider— Vocês demoraram — digo, quando King sai cantando pneu com Ramon ao seu lado.Ativei o alerta assim que abri a escotilha para o porão da casa segura, uma medida de segurança muito eficaz, que avisou aos outros dos meus problemas, fazendo-os rastrearem o carro e me encontrarem. Apesar de provocá-los estou grata, por terem chegado bem a tempo.King me olha pelo espelho e bufa.— Porque sempre está catando confusão, Spider? Será que não podemos te deixar um minuto sozinha? — exclama.— Juro que, dessa vez, não fiz nada — respondi erguendo as mãos para o alto.— Como encontraram você na casa segura? Não me diga que se esqueceu de tirar o rastreador dele? — questiona Ramon, me olhando por cima dos ombros.Olho para Shadow desmaiado ao meu lado, depois do tiro com o sedat
Spider Muita coisa mudou por aqui, depois de minha última visita. Ilya pediu para a senhora responsável pela cozinha preparar alguns sanduíches, aos quais devoro avidamente antes de ir para a sala de reuniões. Perco-me algumas vezes por esses corredores, mas finalmente chego à sala de reuniões, onde os outros estão aguardando. Ilya é o líder da resistência, mas, para as coisas funcionarem, elegeu seis comandantes para ajudá-lo. — Esse lugar precisa de um mapa — digo, sentando-me em uma cadeira ao lado de King antes de cumprimentar os outros com um aceno de cabeça. — Sempre vem aqui por pouco tempo. Se ficasse, como sugeri outras vezes, já saberia andar por esses corredores de olhos fechados. — diz Ilya, contemplando-me tão intensamente que, por um momento, volto ao passado e lembro-me de quando decidi sair das proteções que o bunker oferecia para me aventurar no mundo em busca de Shadow. E lá está, em meio às
Shadow— Você não pensa em sair daqui? Descobrir o que tem por trás desses muros? — indaga.Estamos sentados na beira do rio, lado a lado. Cassandra segura seus cabelos longos no alto, como se fosse prendê-los, ergue a cabeça, fecha os olhos e aguarda minha resposta, mas esqueço completamente da pergunta enquanto observo seu pescoço lânguido, que há muito tempo desejo beijar. O que ela faria, se me inclinasse e deslizasse a língua ao longo de sua clavícula, provando da pele delicada. — Ei, Ty... Pisco rapidamente, saindo do transe e afastando o olhar do seu pescoço convidativo. Cas me observa com o cenho franzido.— Por que está olhando para meu pescoço desse jeito? — pergunta. — De que jeito? — disfarço.
ShadowA complexidade da resistência é impressionante. O lugar foi montado e planejado com perfeição. Mas é quando chego ao refeitório que sou surpreendido pelas vozes e risadas, fazendo-me parar na porta abruptamente e absorver a cena nunca antes vista. A expressão em seus rostos me faz ficar aturdido, como se tivesse entrando em algum universo alternativo.— É incrível, não é? — diz Spider, olhando-os com um brilho no olhar. — Isso que é real, Shadow, não aquela falsa felicidade induzida pela colônia.Não consigo falar, estou impressionado demais para conseguir formar uma frase coerente. Meus olhos passeiam de um lado a outro, querendo absorver tudo de uma única vez.— Tia Spider — grita uma menina do outro lado do salão, fazendo um sorriso despontar no r
SpiderA reação de Shadow ao sentir o aroma do macarrão temperado com especiarias me fez sorrir ao lembrar da minha própria reação ao me deparar, pela primeira vez, com o cheiro delicioso de comida de verdade, ao invés daquela porção grudenta de ração que distribuem na colônia.Geralmente, quando estou na resistência, sento-me à mesa dos comandantes com Ilya e Ana, mas não sei se Shadow está preparado para o interrogatório que certamente Ramon, que não tem um pingo de tato, fará. Então o levo para uma mesa vazia, não muito distante de onde eles estão.Comemos em silêncio, enquanto ele saboreia a comida como se fosse o néctar dos Deuses, e lembro da sensação prazerosa que senti quando Ilya me levou um prato de sopa, assim que acordei.Estava muito
SpiderNa parte de trás da casa, fora montada uma pequena pracinha para as crianças poderem brincar um pouco ao ar livre e sentirem o sol na pele.A propriedade afastada dá certa segurança, principalmente porque a casa cobre toda a frente, bloqueando a visão dos fundos para quem passa pela estrada de terra.Fico observando Ana correr atrás de uma borboleta, depois de cansar de se balançar, encantada com aquela pequena criatura de asas coloridas.Ao nascer, ela era tão pequena e frágil. Apesar de todos os cuidados do Dr. Benjamin, todos pensavam que não sobreviveria. Quando sua mãe fora resgatada, estava com 3 meses de gestação. Belikov a tinha submetido a altas doses da droga e de outra “vacina” que, segundo ele, fortaleceria a imunidade do bebê.No quarto mês, a pequena Ana nasceu, mas sua mãe não sobrevi
ShadowQuando entrei no grande salão atrás de Spider, a última coisa que poderia esperar era encontrá-la nos braços de outro homem.Fiquei parado na porta por alguns segundos, observando-os com as mãos apertadas em punho. Fui arrebatado por uma onda de fúria nunca antes experimentada, para logo sentir meu peito apertar em dor, com um sentimento, até então, desconhecido.— Você está bem? — pergunta, fitando-me com o cenho franzido e, só então, me dou conta de que estou olhando fixamente para a porta por onde Abramov acabou de sair.Posso não entender muito sobre emoções, mas já tinha notado a forma com que seus olhos a seguem sem que ela perceba ou o brilho lúbrico de seu olhar, e suas palavras apenas confirmaram o que já suspeitava: Abramov a ama.— Estou bem — afirmo, v
Spider— Esse plano é ridículo — manifesto minha indignação.Shadow parece finalmente ter notado minha presença na sala, depois de fingir não tê-la notado por todo o tempo.— É a única solução — assegura, olhando-me brevemente, antes de voltar-se para Ilya. — A decisão é sua.— Odeio admitir, mas pode dar certo — considera o líder.— Está se ouvindo? Tem alguma maldita ideia do que vão fazer com você? — questiono enfurecida.— Se for para acabar com a Organização, estou disposto a correr esse risco — afirma com convicção.— Isso não é um risco, é suicídio. No momento em que Shadow te entregar para eles, vão te matar. — Olho para os outros que ainda não ex