Saiu de casa às duas horas da madrugada do sábado, dia três.
Vestia uma camisa de algodão, de mangas curtas, calça de brim, meias e um par de sapatos de couro. Todos pretos! Quem o visse, naquele instante, poderia pensar tratar-se de um emo ou gótico, aqueles sujeitos malucos e afeminados que costumavam sair na noite, à procura de prazeres bizarros e proibidos. Que assim pensassem! Não se importava com isso. Despertaria os olhares curiosos, obviamente, porém não olhares desconfiados, o que era essencial para o êxito de sua missão. Decidido, abriu a porta da garagem e depositou a mochila preta no banco do lado do Uno vermelho-sangue, de duas portas, seu “amigo” de longas datas. Era um carro usado, velho até, sem som e ar-condicionado, mas que possuía um ótimo motor e a potência suficiente para não falhar. Apenas a lataria evidenciava alguns pontos de ferrugem; nada que pudesse atrapalhar sua eficiência.
A noite estava agradável, com a temperatura (segundo sua ótica) oscilando entre 25 e 26 graus. O ventinho que soprava amenizava o diminuto calor. As estrelas podiam ser vistas, fulgurantes, sob o céu sem nuvens. Esperava que não chovesse, enquanto estivesse fora. Segundo os meteorologistas, não estava previsto chover, naquela madrugada. Torceu para que eles estivessem certos. Manobrou o Uno para a rua e trancou a casa, bem como a porta da garagem e o portão grande. Entrou no carro, segurou o volante e respirou fundo, preparando-se para a empreitada. Tinha dado certo em várias ocasiões; tinha que dar certo nessa.
Avançou com o Uno pela rua deserta, exceto por alguns cães e gatos, que dormitavam perto das latas de lixo. Dobrou algumas ruas. Logo saiu do bairro e estava, naquele minuto, na larga e bem iluminada avenida Kálido Quent, que ligava várias zonas. Seguindo na direção da zona noroeste, manteve o carro com a velocidade regulamentar, fins evitar chamar a atenção ou despertar suspeitas. Havia deixado o celular (desligado), na casa, pois sabia que não iria precisar dele; havia esvaziado a bexiga; havia checado mais uma vez a mochila; e, acima de tudo, havia guardado o sono e a fadiga nos confins de seu subconsciente. Viu-se pronto para o combate! Tudo estava dentro do planejado.
Quarenta minutos depois, entrou no bairro “FT-7.38”, quase no final da zona noroeste, com suas ruas sujas e esburacadas. Virou à direita e à esquerda, entrando no coração do local. Estava tenso, porém não nervoso. Nada poderia dar errado, naquela noite agradável. Nada iria dar errado, melhor dizendo. Confiante, parou o carro na rua Lino Moreira, na frente de um armazém fechado. Havia feito um reconhecimento, duas vezes, à noite, no final-de-semana anterior, e achava que conhecia toda aquela área. Deixou o carro com a frente voltada para o sul, pois sabia que estaria com pressa, quando tivesse que retornar.
Saiu do carro exatamente às três horas. Optou por deixar a carteira porta-cédulas no porta-luvas. O momento supremo havia chegado! O vento era brando; a temperatura, agradável. Colocou a mochila nas costas e, controlando a ansiedade, começou a andar, rumo ao norte. Manteve-se na rua, evitando as calçadas. A rua estava deserta, com as casas fechadas e às escuras. Havia muitas casas de madeira, por ali, e somente três carros estacionados ao longo da rua, além do seu. As lâmpadas de mercúrio davam um aspecto fantasmagórico ao lugar. Nada que pudesse assustá-lo. Contou uns quatro terrenos baldios, bem como seis casas com as placas de “aluga-se” ou “vende-se” na frente. Casas que dificilmente seriam vendidas ou alugadas, dado o alto índice de violência da região. Dos cinco cachorros que viu, apenas um latiu, ao vê-lo. Os outros, subjugados pelo sono, não quiseram imitá-lo. Ignorou o cachorro (que logo parou de latir) e continuou a andar, em passos cadenciados.
Passou por uma rua transversal. Se ali entrasse, desembocaria nos fundos do outro terreno, que poderia vir a ser seu destino secundário, caso as coisas não dessem certo. Como tinha convicção de que tudo daria certo, ignorou a rua. Cem metros mais à frente, virou à direita, entrando na rua que lhe interessava. Era uma rua larga, paralela à rua transversal, com tanto buracos como a que acabara de deixar. Seguiu na direção leste, já ouvindo o som do forró, a cerca de 300 metros. As casas (a maioria de madeira) também estavam às escuras, exceto duas. Avistou uma igreja, do lado direito, onde um casal namorava, de pé, “colado” à parede. Passou por eles que, ávidos por se beijarem, sequer viraram a cabeça para encará-lo. Cruzou com outro casal. Provavelmente tinham acabado de sair do “Murinte”, o clube de forró localizado lá na frente. Fingiu coçar as sombrancelhas, fins dificultar qualquer investigação futura. A guria o encarou, meio que temerosa, com certeza por causa das roupas pretas. Disse-lhes “boa noite”, com a voz disfarçada; somente o rapaz respondeu, preguiçosamente.
Um bêbado se aproximou. Moreno, baixo e magro, de aspecto cadavérico e doentio, aparentava ter mais de 50 anos. O bêbado, ao passar por ele, parou (ou tentou parar; o corpo oscilava) e pediu um cigarro. Meneou a cabeça e informou ao bebum (sem parar de caminhar) que não fumava.
— Fez bem, meu rapaz — resmungou o bêbado, com sua voz engrolada. — Vai viver muito… muito…
Deixou o bêbado para trás e seguiu em frente. Viu dois cachorros, que dormitavam, perto de alguns latões de lixo. Teria visto uma feiosa ratazana, a correr por ali? Ajustou a mochila nos ombros. Cuspiu. Passou a mão direita nos cabelos pretos, lisos e curtos. Como era alto (1,78m) suas pernas longas mantinham as passadas mais largas que o normal, apesar de não estar andando com rapidez. Um carro passou por ele. Quatro jovens, dentro do veículo, riam à beça, como se a vida fosse um mar de rosas. Deviam ter bebido todas, refletiu. Evitou encará-los. Mais uma vez coçou as sombrancelhas. Eles seguiram em frente, em média velocidade.
Não encontrou mais nenhum contratempo. Caminhava com firmeza, as passadas normais e resolutas, os pensamentos anulados, os olhos atentos aos menores detalhes. Teria visto alguém abrir, sub-repticiamente, uma das janelas? Talvez. Dane-se.
Chegou, enfim, ao seu destino.
Parou de andar. Do seu lado direito, entre uma loja (pintada de vermelho-escuro) que vendia produtos de limpeza e uma casa verde, abandonada (com a placa de “vende-se” na frente), avistou o terreno baldio, que distava 150 metros do clube de forró “Murinte”. Distância ideal para o que tinha em mente. Controlando a adrenalina, para não perder a concentração, deu uma olhada ao redor. Rua deserta, casas fechadas, a calmaria quebrada somente pelo som do forró. No clube, percebeu uma razoável movimentação. Sabia que os jovens que não estavam dentro do clube se aglomeravam diante de dois bares, estes localizados na frente do referido clube. Ninguém circulava pelas imediações; ninguém sequer olhava para as imediações. O forró corria solto. A alegria era total, naquele pedaço de chão. Vários carros estavam parados, nas imediações do clube, com certeza porque o estacionamento do referido estaria lotado.
Sem perder tempo, entrou no terreno.
Atravessou uma área descampada, de seis metros, e entrou no matagal. Percorreu dois metros de mato e postou-se ao lado de um pé de goiaba. Como a área onde estava era escura, não poderia ser visto por quem passasse na rua. Havia entrado ali duas vezes e sabia que o terreno era dividido em dois: tinha seis metros de área descampada (que acabara de atravessar) e 45 metros de matagal, que terminava num muro de tijolos, nos fundos. Depois do muro, havia outro terreno baldio, justamente o que desembocava na rua transversal, aquela que tinha ignorado. Foi uma grande sorte, encontrar dois terrenos abandonados, separados um do outro pelo muro de tijolos. Torceu para que não precisasse utilizá-lo. Com relação ao terreno, aventou duas hipóteses para não haver mato nos seis metros iniciais: talvez devido à intensa movimentação dos toxicômanos, que ali entravam para consumir drogas. Pisavam o mato, matando-o. Ou então o dono optou por capinar o mato só naquela área, sabe-se lá o motivo. Preguiça, talvez.
Por falar nos drogados, esperava que esses malditos não escolhessem justamente aquela madrugada para ali entrarem e fazerem suas festas destrutivas. Se isso acontecesse, estragaria seus planos. Teria, em última instância, que eliminá-los e fugir.
Elucubrações à parte, começou suas atividades. Protegido pela escuridão, tirou a mochila das costas e se preparou para o combate. Depositou a mochila no chão. Do mato, viu o capim alto (bastante capim, por sinal), algumas ervas, os pés de murtas, dois pés de goiaba e outras árvores frondosas que não conhecia.
Um pequeno problema era o mau cheiro. O mau cheiro ali era gritante e quase insuportável, principalmente por causa da carne podre (restos de comida), da urina e até das fezes, humanas, inclusive. Horrível! Um troço nojento. Teve que se acostumar com aquilo. Não tinha outro jeito. Para piorar, alguns mosquitos começaram a circular, despertados pelo barulho causado pelo visitante. Afastou alguns, com safanões. Não lembrava de tê-los vistos, quando do reconhecimento. Devia ter trazido um repelente. Viu várias bitucas de cigarros, envólucros de marmitas, copos descartáveis, frutas podres, restos de comida, brinquedos quebrados e outros lixos produzidos pelo homem. Torceu para que cobras ou outros animais peçonhentos não surgissem para incomodá-lo.
Retirou, da mochila, um vidro de clorofórmio e um lenço, deixando ambos no chão. Calçou as luvas de látex, que se ajustaram perfeitamente às suas mãos. Retirou a pistola, baixou a trava e deu o golpe de segurança, inserindo o projétil na câmara. Tirou o silenciador e o acoplou ao cano da arma. Colocou a pistola no cós da calça. Retirou a máscara e a inseriu na cabeça. Ainda bem que não estava tão quente. Afinal, nunca se acostumara com aquele incômodo (porém necessário) acessório. Olhou o visor do relógio: 3h20min. Dentro do prazo. Respirou fundo, controlou a excitação (procurou não pensar em nada) e pôs-se em movimento. Começou a se erguer, para dar uma olhada na rua, quando… ouviu risos, bem próximos do terreno!
Escondeu-se atrás da goiabeira. Tirou (com a mão direita) a pistola do cós da calça, deixando-a com o cano voltado para o chão. Tenso, de pé, quase prendeu a respiração. Estremeceu, arrepiou-se… ao perceber que… alguém entrava no terreno!
— Tô estourando, compadre. Rá, rá, rá! — Tu é foda, meu! Eh, eh, eh! Avistou dois garotos, ambos na faixa dos 17 aos 20 anos. Um era alto, loiro e magro; o outro, moreno, baixo e também magro. O mais alto segurava uma lata de cerveja. Os dois se posicionaram, cambaleantes, de frente para a parede da loja, a dois metros da calçada, e começaram a mexer nos zíperes de suas calças. Ao mesmo tempo, conversavam, soltando piadas sem graça e dando risadas esganiçadas, enquanto passavam a lata de um para o outro. De repente, o mais alto, sem deixar de urinar, parou de falar e olhou para os fundos do terreno. Teria ouvido algum ruído? Naquele instante, seu pescoço fino girava a cabeça cabeluda e seus olhos asquerosos v
Escondeu-se atrás da árvore mais ao fundo e esperou, tenso, refletindo que não estava tendo sorte, naquela noite. Aquilo não estava previsto nos seus planos minuciosos. Fazer o quê? Suspirou e ficou alerta, de olho nelas. A guria mais alta, entre risos, entrou no mato. Postou-se de costas para ele (a míseros três metros! — não o viu, claro) e baixou a bermuda e a calcinha. Agachou-se, então, para urinar. Uma cena erótica, que alimentou sua imaginação libidinosa. A branquinha ficou a um metro da mais alta, postando-se de pé, na entrada do matagal, de braços cruzados. A pele alva se destacava, na semi-escuridão. Vendo-as, não demorou a sentir o doce (e forte) aroma de seus perfumes. Perfumes baratos, com certeza, mas que provocaram, em sua libido, um efeito devastador! Vendo aquele par de seios enormes,
Foi um retorno tortuoso, angustiante, sufocante! Queria correr, para sair dali o mais rápido possível. Sair antes que as garotas despertassem; sair antes que dessem pela falta do casal; sair antes que algum morador insone (que poderia ter ouvido os gritos) viesse verificar o que tinha acontecido. Mas não correu. Apenas andou, apressadamente, atento aos menores ruídos. Teria ouvido uma janela bater? Teria visto uma pessoa observando suas ações, de dentro de uma daquelas casas? Alguém teria visto tudo? Estaria sendo seguido? Olhou para trás, apavorado! Nada viu. Os jovens estavam distantes, nos bares. Um cachorro latiu, ao longe. Um carro buzinou. Alguém tossiu. E se aparecesse uma viatura policial, naquele instante? — Acalme-se, seu babaca — murmurou, para voltar à calma. — Acalme-se, seu imb
Blém, blém! Acordou assustado, os olhos arregalados, sem saber onde se encontrava. Estaria num buraco, repleto de sombras sinistras por todos os lados? Preso por correntes? Que barulho era aquele? Seria o chamado do demônio? Ou o som da perdição? Sua desorientação durou alguns segundos. Depois, reconheceu os contornos do quarto (seu aconchegante quarto!) e se acalmou. Não havia buraco nem sombras sinistras. Não havia demônios! Sentou-se na cama de casal e esticou os braços, espreguiçando-se. Bocejou. Olhou o visor do relógio: 7h55min. Blém, blém! Novamente a campainha. Seria a polícia? Estariam os malditos policiais ali, prontos para levá-lo? Impossível,
O trânsito estava tranquilo, naquela manhã de sol. Era um sábado realmente agradável. Mesmo assim, levou quase uma hora para chegar a seu destino. Manteve velocidade moderada, de modo a facilitar as coisas para o sujeito de bigode, que o seguia, lá atrás, no comando do caminhão-baú. Percorreu várias ruas, rotatórias e avenidas, até alcançar a ponte Tex Wint, de 120 metros de extensão, sobre o rio Buril. Deixou a ponte para trás, percorreu 200 metros da larga avenida Dézio Khisp e virou à direita, entrando na rua Alípio Tunner. Rua esta que possuía um aclive inicial de 20 metros, para depois ficar plana. Seguiu em frente e virou à direita, entrando na segunda rua, a rua Péricles Avron. A sua rua! Seu novo e maravilhoso lar! Era uma rua alta, estreita e sem saída,
Atônito, não soube o que dizer. Pegou o papel e olhou para o setor que o garçom apontava. Alimentou o sonho e a esperança de ser a loira, a autora da ousadia. A loira, a deusa do amor eterno, havia entrado em contato? Tomara a iniciativa, oferecendo sua paixão incontida? Será? Infelizmente não era a loira e, sim, uma morena, que estava sentada do outro lado do restaurante, também a 20 metros dele. Empolgado com a loira, só tinha olhado uma vez, naquela direção, quando de seu reconhecimento visual e superficial do ambiente. A morena, que se encontrava sentada de frente para ele, estava acompanhada de uma mulata baixinha. Quando fixou os olhos nela, percebeu que ela sorriu, confiante, além de erguer seu copo de cerveja, como se fosse um convite. Incrível! Teve que sorrir, ante o inu
Dizia o texto: RELATÓRIO “A LOIRA DA FAÍSCA” O QUE É A FAÍSCA?De modo resumido, para não me alongar no assunto, “faísca” é a palavra que encontrei para denominar “paixão”. Sentir a “faísca” é estar apaixonado, é desejar inte
Continuação do relatório. Macto estava concentrado, apesar de já ter lido tudo aquilo mil vezes.5.4. OBSERVAÇÃO:Caso um dia alguém leia o conteúdo desse relatório, após a minha morte, poderá achar o perfil acima descrito como esdrúxulo e profundamente incoerente. Tudo bem. Talvez seja. No entanto, tenho esperanças de encontrar uma garota que se encaixe em pelo menos 80% dos itens por mim idealizados. De resto, é apenas uma questão de diálogo e adequação. Além do mais, na medida em que vou envelhecendo, vou ficando mais maleável, mais tolerante. Sei que o mundo também está mudando, principalmente nas ideologias e no comportamento social dos seres humanos. Por isso, não