PARTE UM
O TREINAMENTO
Minhas garras negras arranharam de leve o vidro da televisão enquanto meus olhos continuavam vidrados no vídeo em que mostrava o Príncipe de Gelo. Embora não passasse de um albino com olhos azuis bem claros, gélidos, era ele quem comandava os homens — Cavaleiros — que viviam do outro lado da fronteira.
É isso mesmo, homens e mulheres foram separados há centenas de anos. O motivo? Não faço ideia. Ninguém sabe. O máximo que sabemos é que o príncipe Matthew comanda os homens e a princesa Marilene controla as mulheres — Guerreiras.
E ah, eles são os únicos habitantes imortais de todo nosso país Yanche.
— Acácia — ouvi minha mãe me chamar num tom de repreensão —, quantas vezes já te disse para não ir dormir tarde? Vai piorar sua maldição se continuar desse jeito.
A maldição... Não sabia se ela tinha ligação com a paixão misteriosa que sentia pelo Príncipe de Gelo, mas odiava o fato dela existir — tanto da maldição quanto da paixão.
Todas as noites meu corpo ficava negro como a noite, meus dentes se transformavam em caninos afiados e meus olhos ficavam escuros, perdendo-se na escuridão da minha pele.
Desde os quinze anos estava fadada a ser um monstro.
— Desculpa, mamãe — choraminguei. — É mais forte do que eu...
Carina, minha mãe, pareceu ignorar minhas palavras e apenas desligou a televisão. Entendi que essa era a deixa perfeita para eu me levantar e o fiz, seguindo para o meu quarto em seguida. Deitei na cama e puxei os cobertores sobre o meu corpo.
— Precisa lutar contra isso, Cia — mamãe me advertiu. — Aqui é proibido esse tipo de sentimento por homens e sabe disso.
Assenti, indicando que sabia muito bem disso. Se a princesa Marilene descobrisse o que eu sentia, tinha medo do que faria comigo. Os boatos que corriam no vilarejo sobre suas torturaseram assustadores.
— Amanhã é o grande dia — ela murmurou para mim, parecendo querer amenizar o efeito da sua advertência. — O dia em que você entrará pro treinamento das Guerreiras.
— Você acha que a princesa Marilene vai me escolher? — questionei incerta.
A vela acesa do meu quarto me fez ver um pequeno sorriso no rosto da mamãe.
— Ela irá. Você vai se tornar uma Guerreira e obedecerá a linhagem da nossa família como tem que ser.
Ouvir isso me enchia de ansiedade para o dia seguinte chegar de uma vez. Desde pequena tinha o sonho de servir nas Guerreiras. Eram elas que iam nas fronteiras e lutavam bravamente contra os homens que sempre nos atacavam.
— Agora durma — disse ao acariciar minha cabeça.
Quando ela virou as costas para sair do meu quarto, eu disse:
— Espera! Canta pra mim. Só mais uma vez — implorei. — Senão nunca vou conseguir dormir.
Carina parece achar graça do meu desespero para ouvi-la cantar. Ela se aproximou de mim e iniciou a canção que cantava para mim todas as noites:
— Durma, durma bem. Porque é isso que você faz todos os dias. Fecha os olhos para luz, abre os olhos para noite — a música se iniciava em palavras sussurradas como se fossem um segredo. Logo a melodiosa canção começa de fato: — Chegou a hora de dormir, meu bem. Não é isso que a rainha diz? Feche os olhos, tenha bons sonhos. Não se esqueça quem controla é você.
Na metade da música eu já sentia meus olhos pesando de sono e em pouco tempo, eu já tinha me deixado levar pelo próprio.
☾
A claridade não era muita, mas faziam meus olhos azuis arderem. Pela manhã, assim que eu acordei, sabia que a garota albina já havia voltado ao normal. Eu já havia voltado ao normal.
Continuei observando da janela as garotinhas correndo de um lado pro outro com seus vestidos arrastando no chão de tão longos. Dei um sorrisinho. Elas eram uma graça. Que elas aproveitassem a oportunidade de brincar. Como minha pele era branca fora do normal, não podia nem pensar em ficar debaixo do sol. Para isso, minha mãe me enfiava em vários tecidos pois com facilidade eu conseguia queimaduras horríveis.
As crianças continuaram brincando até um cavalo com a insígnia oficial da princesa Marilene aparecer na nossa rua. Mordi o lábio. A Convocação seria dada hoje pela manhã e pelo jeito estava para chegar.
Continuei observando o cavalo se aproximar, sentindo o coração martelar de emoção no peito quando deu uma paradinha na porta da minha casa. Entretanto, acabou passando direto, como se houvesse errado o lugar.
Saí da janela, sem querer saber para onde o cavalo iria. Pelo jeito não tinha tido sorte o suficiente para ser Convocada...
— Senhorita? — alguém pareceu chamar da janela.
Virei o rosto na direção da mesma, encontrando uma Guerreira montada no cavalo oficial com uma carta em mãos.
— É você que se chama Acácia Astéria?
Assenti, voltando a sentir o coração acelerar pela emoção. Quando a mulher me estendeu a carta, fiquei ainda mais ansiosa. Peguei-a finalmente e a mulher se foi, me deixando sozinha com a Convocação.
De tanta ansiedade, abri a carta rapidamente, quebrando a cera e começando a lê-la mentalmente em seguida:
"Acácia Astéria,
É com prazer que eu, princesa Marilene de Mariah — nascida em Ament, antiga província de Yanche —, a convido para fazer parte do treinamento militar para se tornar uma Guerreira. Como no atual mês completa a idade requisitada — dezesseis anos —, estamos convocando-a para juntas podermos combater os Cavaleiros (homens) e conquistarmos o território que sempre foi um direito de nós, mulheres.
A carruagem chegará no horário após o almoço para buscá-la.
Atenciosamente, princesa Marilene de Mariah."
Soltei um grito de felicidade quando terminei de ler tudo. Corri para minha mãe que fazia comida no fogão a lenha. A abracei por trás e senti seu sobressalto, mas não deixei ela protestar pelo abraço repentino, pois expressei minha felicidade primeiro:
— Fui uma das cem escolhidas! — exclamei pra ela.
Depois de um tempinho, eu a larguei do abraço e tive a oportunidade de ser envolvida por seus braços, dessa vez num abraço genuíno.
— Parabéns, Cia — murmurou.
Como se tudo conspirasse ao meu favor, minha irmã Bianca chegou pouco depois e se juntou ao abraço.
— Foi chamada? — questionou assim que o abraço prolongado se encerrou.
Confirmei com a cabeça, sem conseguir evitar um sorriso de orgulho.
— Então te vejo na Casta 2 em breve — disse, dando dois tapinhas no meu ombro.
Ela também estava orgulhosa de mim. As duas estavam. Isso só fazia minha felicidade crescer a cada segundo. O primeiro passo pra realização do meu sonho já havia sido dado.
— Arruma suas coisas — disse Bia. — Eles vão vir te buscar depois do almoço, não é?
Como Bianca já tinha sido Convocada — e era uma Guerreira! —, decidi ouvir o conselho da minha irmã mais velha. Logo estou dentro do meu quarto, enfiando algumas coisinhas numa sacola bege. Tanto Bianca quanto Caroline disseram que eu só precisava levar coisas importantes. Roupas a princesa nos daria.
A ansiedade não me permitiu comer direito no almoço, mas fiz questão de colocar um vestido novo e um chapéu de igual forma. Tinha que parecer apresentável para a Convocação.
Dito e feito, a carruagem chegou exatamente uma hora após o horário habitual do almoço — os gritos e palmas do lado de fora evidenciaram isso. As mulheres que viviam no nosso vilarejo sempre comemoravam quando garotas da nossa Casta eram escolhidas. Agora eu era uma delas.
Saí de casa com um largo sorriso. O sol estava terrível, entretanto, a carruagem estava em frente casa, então não tive uma grave exposição ao mesmo. Dentro da carruagem, outras três garotas bem arrumadas me encararam. Eu era a única albina entre elas, só que acabei respondendo seus olhares com um sorrisinho. Eram da mesma casta que a minha, embora não fizesse ideia de quem poderiam ser.
A carruagem se moveu e palmas foram ouvidas. As quatro usavam chapéu como eu e acenavam pela janelinha para as pessoas que nos aplaudiam do lado de fora.
— Ei, acho que está na hora da nossa comemoração — disse uma delas, retirando seu chapéu.
Um pequeno sorriso cresceu nos meus lábios e eu fiz o mesmo, acompanhada das outras. Colocamos nossas mãos do lado de fora e com um grito entusiasmado, jogamos nossos chapéus, recebendo uma vibração positiva do público do lado de fora.
Um mês. Apenas um mês de treinamento até eu enfim me tornar uma Guerreira, pensei enquanto a carruagem me levava para a primeira visita no castelo real da princesa Marilene de Mariah.
Saindo de casa como uma garota e em breve estarei voltando como uma mulher.
O castelo da princesa Marilene era simplesmente enorme. Meu olhar se perdia na imensidão belíssima do local. O jardim foi o que primeiramente me tirou o fôlego com a grama bem cuidada e flores colorindo algumas partes. Dentro do castelo não era diferente. A decoração continuava exótica e bela, acima de tudo o que eu já havia visto em toda minha vida.Fomos guiadas pelos corredores por uma moça parecendo ser uma empregada com seu vestido azul-bebê e um lenço branco prendendo os cabelos castanhos. Não demorou muito para chegarmos ao que parecia ser o salão principal. Várias outras garotas já estavam por lá, sentadas em mesas de quatro pessoas, embora algumas mesas ainda se encontrassem vazias.A moça que nos acompanhava nos
Fiquei um tempinho encarando aquela silhueta, sem saber se o certo seria eu deveria ir até ela.— Não tenha medo, Cia — ela me garantiu.Embora não conseguisse ver boca alguma se mexendo para falar comigo, seus olhos continuaram focados em mim, então presumi que a mensagem havia vindo dela.Logo estava caminhando na direção da silhueta que mantinha os olhos brilhantes como estrelas vidrados em mim, observando cada passo que eu dava.Ao chegar na janela, a silhueta estendeu a mão na minha direção, ultrapassando o vidro como se fosse apenas uma sombra. Hesitante, aceitei sua mão e fui puxada na direção do vidro, o atravessando com sua ajuda.
Aqueles símbolos estranhos brilharam em dourado quando toquei na capa. Deixei os outros livros que havia pegado de lado e peguei no livro esquisito. Ele era bem grosso e as páginas estavam levemente amareladas. Porém, quando fui tentar abri-lo, não conseguir mover nada do lugar. As páginas não se mexeram com a força do meus dedos.Tentei usar mais força e suspirei em desistência ao notar que não adiantaria de nada. Devia ser uma espécie de selo mágico. Droga.Decidi deixar o livro no lugar, prometendo a mim mesma que ainda viria investigar sobre o livro misterioso. Agora queria saber o que de tão importante havia ali dentro.Peguei os livros que havia deixado no chão e caminhei na dire&cced
A princesa cruzou os braços, como se esperasse alguma resposta sobre o que eu estava fazendo naquele jardim. Fiquei sem palavras pois meu coração acelerado no peito me atrapalhava a pensar direito. Ela continuou esperando alguma reação da minha parte e eu apenas continuei paralisada.— Sabia que esse jardim é particular? — foram suas primeiras palavras.Engoli em seco, endireitando a minha postura para encará-la.— Não, Alteza — achei voz para responde-la.— Pois bem, esse jardim é inteiramente meu e eu não gosto que ele receba visitas. — Sua expressão estava séria. — Por isso, peço que se retire dele im
Nós quatro chegamos junto com a governanta no jantar de comemoração. Muitas garotas já estavam em seus lugares. A governanta nos guiou em meio às moças e nos fez sentar na mesa de costume. Tudo era numerado para que nenhuma garota ficasse sem seu lugar.As comidas começaram a serem servidas e como todo o almoço e jantar, fui me servindo. Por dentro eu ainda pensava naquela esquisitice da bibliotecária atravessando o livro misterioso.As coisas estranhas já podem parar de acontecer comigo agora, pedi internamente.Me comportei como se nada estivesse de errado comigo. Era a segunda vez naquele dia que eu precisava agir naturalmente contra minha vontade. Logo minha atenção se voltou à elevação que servia de palco para princesa. Ela sorria ternamente.— Boa noite minhas meninas — disse, elevando o tom de voz para poder ser ouvida em meio
A carruagem balançava no caminho esburacado enquanto eu remoía a conversa que tinha tido com a princesa na noite anterior. Depois dela ter admitido que a imortalidade era sua própria maldição, não teve mais nada de interessante. Simplesmente ela me dispensou, dizendo que o melhor era que eu descansasse para o dia de hoje.E bem, aqui estava eu, olhando janela afora para a paisagem que ia perdendo a sua coloração verde a medida que parecíamos ir nos aproximando do acampamento militar das Guerreiras. Estava completamente ansiosa para o que poderia me acontecer por lá, afinal, teria chance de saber como elas eram preparadas para batalha.De bagagem, trouxe apenas o que havia trago para o castelo da princesa anteriormente e tinha arriscado a trazer o livro mágico t
Acordo como sempre fazia todas as manhãs. Bocejo, ainda sonolenta e aos poucos vou abrindo os olhos, me acostumando com a claridade do sol que entra pela janela. Quando vou recuperando a consciência, é que arregalo os olhos de susto.Céus, que horas são?, me fiz a pergunta mentalmente, olhando para as paredes em busca de um relógio. Em seguida me lembro que não havíamos direito a ter um. Porém, tinha medo do que a claridade do sol poderia indicar. Esperava que ainda não tivesse passado das seis da manhã.Para me deixar ainda mais preocupada, meu livro esquisito não estava no local que deveria. Olhei ao redor mais uma vez, procurando o livro que havia roubado da biblioteca e não consigo acha-lo. Meu coração bate forte no peito
O sangue não parava de escorrer do rosto de Karen. Assustada com o que pode ter acontecido a ela, desço da minha cama devagar e assim que meus pés tocam o chão, caminho até ela. Toco seu ombro, querendo chamar sua atenção, mas o sangue continua escorrendo e ela continua inclinada na janela.— Karen, olha pra mim — pedi.— Não posso. Dói muito.— Por favor. Eu preciso ver você.— Não, Cia. Se eu olhar, posso morrer engasgada com meu próprio sangue.— Karen!Em