A carruagem balançava no caminho esburacado enquanto eu remoía a conversa que tinha tido com a princesa na noite anterior. Depois dela ter admitido que a imortalidade era sua própria maldição, não teve mais nada de interessante. Simplesmente ela me dispensou, dizendo que o melhor era que eu descansasse para o dia de hoje.
E bem, aqui estava eu, olhando janela afora para a paisagem que ia perdendo a sua coloração verde a medida que parecíamos ir nos aproximando do acampamento militar das Guerreiras. Estava completamente ansiosa para o que poderia me acontecer por lá, afinal, teria chance de saber como elas eram preparadas para batalha.
De bagagem, trouxe apenas o que havia trago para o castelo da princesa anteriormente e tinha arriscado a trazer o livro mágico também porque precisava das um jeito de decifrar aquelas palavras. Fora que devia ter alguém além de mim que conseguisse enxerga-lo. Acharia esse alguém. Daria um jeito de descobrir do que se tratava aquele livro.
Até o momento suspeitava que era um livro de magia.
Mordi o lábio, prestando atenção na paisagem hostil que minha janela possibilitava ver. As coisas - plantas e animais - não pareciam gostar muito de viver por aqui. Apesar disso, a carruagem foi parando e eu entendi que aquele seria o lugar onde ficaríamos. As portas foram abertas e uma Guerreira me recebeu.
Dei um sorriso agradecido e com meu campo de visão mais amplo, observei de fato o lugar. À primeira vista tínhamos uma grade extensa e alta com arames nas pontas. Após a grade, haviam diversas barracas esverdeadas e mais ao fundo, construções semelhantes a casas. No centro delas uma construção maior, mesmo que tivesse praticamente o mesmo estilo das casas ao redor.
Devia ser o que elas chamavam de "acampamento militar".
Em algumas partes ainda mais lá no fundo parecia haver um matagal, semelhante a uma floresta. Pelo jeito tinha mais coisas que meu olhar já não conseguia mais avistar.
- Me acompanhem - disse a Guerreira que me ajudou a descer assim que as outras três saíram da carruagem.
Assentimos e quando ela começou a caminhar, seguimos atrás. Para o dia havia escolhido um vestido amarelo com alguns detalhes verdes no corpete. A saia era lisa apenas. Arrumei minha mochila levemente pesada por causa do livro grosso esquisito.
Nós fomos levadas para construção central, a maior de todo o acampamento. Enquanto andávamos, fiz questão de ver várias Guerreiras treinando de várias formas. Algumas corriam, outras lutavam entre si corporalmente, mais algumas andavam a cavalo. O lugar era realmente enorme.
Ao entrarmos no prédio central, demos de cara com uma gigante pintura da princesa Marilene. Ela estava séria e vestia preto, também ostentando uma coroa dourada com pedras ônix. Seu olhar cor gelo estava imponente. Devia ser para incentivar as Guerreiras à bravura e à coragem.
Nossa guia nos levou para um corredor com diversas portas, me lembrando o local dos dormitórios no castelo da princesa. E bem, acertei exatamente o que era assim que a Guerreira disse para uma das garotas do meu quarto que uma daquelas portas era o seu próprio quarto.
A mulher foi nos guiando, informando o quarto de cada uma e um alívio ia indo tomando conta do meu peito. Era gratificante saber que teríamos um quarto só nosso.
Bem, eu estava feliz até a Guerreira indicar meu quarto e ao abrir a porta, dar de cara com uma garota sentada numa cama.
- Acho que esse quarto está errado. Já está ocupado.
A Guerreira olha com desdém para a garota dentro do quarto.
- Olhe para as quatro camas lá dentro e saberá que não cometi engano algum - disse, apontando para dentro.
Ao olhar bem, tive de morder o lábio. Mais uma vez dividiria o quarto com três estranhas. Mais uma vez teria que esconder meus segredos estranhos para não acabar assustando as pessoas.
Assenti, indicando que havia entendido que a Guerreira não tinha cometido um engano e entrei no quarto, fechando a porta atrás de mim. Suspirei, caminhando para uma cama vazia. A parte de cima de um beliche. Ao menos se me transformasse por engano, nenhuma delas perceberia.
O quarto era cinzento, com direito apenas a uma janela gradeada que já estava aberta, porém, a coloração escura do quarto inibia parte da luz. Um candelabro estava posto ao lado de cada beliche e um no canto posterior, perto de um armário de madeira.
Aquele quarto claramente não tinha nada a ver com o luxo que era o castelo da princesa.
Como a garota só ficava sentada na sua própria cama, decidi abrir minha sacola de pano e retirar o livro esquisito assim que me sentei na cama escolhida. Abri ele ali mesmo, aproveitando que até o momento eu era a única que conseguia enxerga-lo - o episódio com a bibliotecária ainda me assustava.
Folheei o livro, frustrada por não entender nada. Talvez ali no acampamento militar houvesse uma biblioteca. Se tivesse, poderia pesquisar alguma coisa sobre as línguas dos antepassados.
Na verdade, deveria ter deixado o medo de lado e ter perguntado algo sobre o livro para a princesa. Não é possível que ela não deve saber nada sobre ele. Eu não posso ser a única de Yanche a enxergar o livro esquisito. Alguém deve ter escondido ele e essa pessoa tem de estar em algum lugar.
Ela tem de estar ao menos viva.
Decidi fechar o livro. Tentaria lê-lo com mais calma mais tarde, quando estivesse sozinha.
Porém, ao olhar pra aquela garota esquisita e silenciosa, dei de cara com seu olhar sobre mim. E bem, se não estivesse ficando completamente maluca, podia jurar que ela estava olhando o objeto em minhas mãos. Não seja tola, Cia. Você é a única que pode vê-lo, tentei me acalmar mentalmente. Então logo comecei a me perguntar o que as pessoas viam no lugar do livro.
Será que outro livro?
No caso da bibliotecária, ela nem sequer via alguma coisa.
Devagar, ainda sustentando o olhar da garota, coloquei o livro ao lado. No entanto tive sorte dela apenas olhar pra mim, o que significava que possivelmente ela não devia estar vendo nada de especial ao meu lado.
- O que foi? - decidi questionar.
A garota balançou a própria cabeça levemente antes de dizer:
- Nada. Só estou esperando um momento para me apresentar.
- Então apresente-se.
- Me chamo Karen Rizzon.
- Acácia Astéria.
Ainda me acostumava com o ar mais informal do acampamento militar. A garota não parecia se importar tanto com alguns tratamentos como "senhorita".
Um sorriso mínimo tocou seus lábios antes da porta do quarto ser aberta. Outra garota entrava. Ela nos acenou e nos cumprimentou com um sorriso. Então escolheu a cama do beliche em baixo de mim.
Pelo jeito não conseguiria meu espaço durante o treinamento nunca. Para quem passou grande parte da vida sem muito contato com outras pessoas, agora tinha até demais.
- Desculpe o atraso, meninas. Minha Guia preferiu levar as outras primeiro ao invés de me deixar aqui - desabafou, quebrando o silêncio do quarto. - Já se apresentaram?
- Karen Rizzon - a garota do outro beliche diz mais uma vez.
- Acácia Astéria - informo.
- Milena Bermond - completou as apresentações, num ar orgulhoso. - Animadas para o verdadeiro treinamento...?
- Não - Karen a cortou, séria.
- Puxa, como veio parar aqui então? - debocha, embora usasse um tom descontraído. - Eu mal posso esperar.
- Também estou ansiosa - confesso.
- Que bom que não sou a única.
A observo abrir a própria sacola, mas por estar na cama de cima, ficava difícil de ver o que tirou lá de dentro. Logo passei a me perguntar o motivo da garota do outro beliche não querer que o treinamento começasse. A pergunta da Milena ecoou pela minha cabeça. O que ela está fazendo aqui?
Seus olhos grandes esverdeados pareciam guardar muitos segredos. Não a culpava. Também possuía meus próprios segredos. Ela abriu enfim sua sacola e tirou de lá um pedaço de pão.
Sem oferecer para nós duas como as regras de etiqueta mandam, deu uma mordida no pão. Ela deveria ter vindo de uma casta baixa para não ligar muito para as regras de etiquetas tão comuns na minha casta.
Pelo menos a garota abaixo de mim parecia mais comunicativa e não demonstrava guardar segredo algum. Agora ela cantarolava enquanto vasculhava sua sacola. Até que ela decide se levantar e caminhar até o armário. Milena o abriu e choramingou:
- Poxa, não temos direito a nenhum vestido novo?
Foquei no que havia dentro do armário e franzi o cenho. Três calças jeans escuras estavam penduradas juntas de uma blusa branca. Cada conjunto estava em cabides diferentes. Abaixo de cada cabide tinha um par de sapatos marrons. Eram botinas. Já tinha visto minha irmã com um par dessas após chegar de uma missão.
Mas não vou mentir, também estava decepcionada por não termos ganhados vestidos novos. Apenas Guerreiras usavam calças. Eu por exemplo nunca havia usado uma na minha vida e não sabia se poderia me acostumar com isso.
Milena pegou um dos conjuntos.
- Será que temos mesmo que usar isso? - questionou a ninguém em especial.
- Se está aí, deve ser pra usar - digo.
Karen nem sequer abriu a boca, apenas observou.
- Que seja - balbuciou Milena de forma desgostosa.
Ela desfez os laços nas costas do vestido, abrindo o corpete. A saia pareceu também se alargar antes de deslizar pelo seu corpo. O vestido vermelho atingia o chão. A garota puxou a calça do cabide e franziu o cenho, analisando o tecido. Então supôs que deveria enfiar as pernas e só soube disso quando de fato o fez.
Fazendo uma careta, colocou a calça, tendo algumas dificuldades. Possivelmente nunca usara uma calça assim como eu. Realmente as moças não costumavam usar. Dizia-se que nem era permitido para nós.
Ao terminar a "batalha" com a calça, vestiu a blusa branca e se analisou. Não tínhamos direito nem a um espelho. Ela voltou para sua cama e de sua sacola puxou o que deveria ser o espelho que precisava. Soltou os fios ruivos do penteado pouco a pouco.
- Com certeza eu ficaria muito melhor num vestido - comentou mais para si.
Depois disso, desisti de ser como a Karen e ficar observando as coisas ao meu redor. Me deitei na cama preguiçosamente. Por um momento desejava estar de volta ao castelo com a cama mais macia. Nem pense nisso, Cia. Aquilo são águas passadas. Foi-se a primeira fase do treinamento, me repreendi mentalmente. Você está deixando de ser uma donzela.
- Vocês não vão se trocar? Olha, eu não quero ser a única ridícula do grupo - protestou Milena.
Entretanto, antes que eu pudesse responde-la, alguém bate na porta. Nenhuma de nós três vai atender pois uma carta desliza por debaixo da porta. Estava selada.
Bem, a curiosa da Milena decide pegar o papel em mãos e quebrar o selo. O silêncio reinou por diversos segundos até ela começar a ler o conteúdo em voz alta:
- Caras Iniciandas,...
"sou a oficial Ramona Intringer, responsável por todas vocês. Desejo que se apresentem no dia seguinte às seis da madrugada. Não há relógio no quarto de vocês pois precisam aprender a primeira lição: uma verdadeira Guerreira usa o sol como guia. Por isso, tratem de não errar o horário amanhã para não sofrerem a primeira punição do treinamento.
Esqueçam os vestidos. Seus trajes agora são só uma calça jeans escura, uma blusa branca e uma botina marrom. Só terão este único traje para se vestir até o fim do treinamento. Não seremos responsáveis se houver dano ao material pois é de inteira responsabilidade de vocês. As roupas se encontram no armário e quero que todas estejam uniformizadas. Nada de vestido no acampamento militar, espero que estejamos de acordo.
Aguardo todas vocês no refeitório amanhã. Achem-no sozinhas. Será a segunda lição.
Ramona Intringer."
Acordo como sempre fazia todas as manhãs. Bocejo, ainda sonolenta e aos poucos vou abrindo os olhos, me acostumando com a claridade do sol que entra pela janela. Quando vou recuperando a consciência, é que arregalo os olhos de susto.Céus, que horas são?, me fiz a pergunta mentalmente, olhando para as paredes em busca de um relógio. Em seguida me lembro que não havíamos direito a ter um. Porém, tinha medo do que a claridade do sol poderia indicar. Esperava que ainda não tivesse passado das seis da manhã.Para me deixar ainda mais preocupada, meu livro esquisito não estava no local que deveria. Olhei ao redor mais uma vez, procurando o livro que havia roubado da biblioteca e não consigo acha-lo. Meu coração bate forte no peito
O sangue não parava de escorrer do rosto de Karen. Assustada com o que pode ter acontecido a ela, desço da minha cama devagar e assim que meus pés tocam o chão, caminho até ela. Toco seu ombro, querendo chamar sua atenção, mas o sangue continua escorrendo e ela continua inclinada na janela.— Karen, olha pra mim — pedi.— Não posso. Dói muito.— Por favor. Eu preciso ver você.— Não, Cia. Se eu olhar, posso morrer engasgada com meu próprio sangue.— Karen!Em
Ao ouvir o que a ninfa havia nos dito, Karen não hesitou em seguir na direção que ela tinha apontado. Fiz meu cavalo segui-la. Os galhos impossibilitavam o galope, por isso nos mantivemos apenas o trote. De fato não demorou muito até Karen parar e eu perceber o motivo: chegarmos a Milena.— Cuidado — ouvi ela pedir, embora tivesse sido meio baixo.Por um momento penso em questionar, mas ao olhar na direção da Milena, vejo uma cobra perigosamente próxima. Sua testa tinha um corte que sangrava e a mesma estava desacordada, nem se dando conta do perigo bem ao seu lado. A cobra a cercava como sua presa.Lancei um olhar, perguntando silenciosamente o que poderíamos fazer para ajuda-la. Karen encontrou meu olhar, por&
Sentir os cabelos voando ao vento dava uma grande sensação de liberdade. Respirei fundo, deixando o ar corrido entrar em minhas narinas, aproveitando aquela sensação maravilhosa. O cavalo negro que eu montava parecia estar conectado a mim de uma forma extraordinária. Pelo menos obedecia meus comandos sem hesitar.De repente me ocorreu que eu ter vindo treinar com as Guerreiras foi a melhor coisa da minha vida. A rotina que antes eu estava tão acostumada parecia ter sido deixada para trás e confesso estar gostando desse tipo de mudança radical. Nunca havia experimentado essas coisas e agora... Tudo parecia bom demais para ser verdade.Nossa instrutora de equinos pediu para mostrarmos nossas habilidades através de uma corrida entre nossos cavalos. Eu podia não estar em
Meus olhos se arregalaram em surpresa assim que ela disse com todas as palavras aquilo estava pensando em fazer. Fiquei tão surpresa que não consegui respondê-la de imediato. Diversas perguntas preencheram minha mente pois por causada sua personalidade meio forte, poderiam desconfiar caso estivéssemos fazendo alguma coisa errada.— Karen...— Ah, qual é, Cia. Se fôssemos à noite, tenho certeza que não iriam desconfiar da gente.Estava tão perplexa com sua proposta que só conseguia responder ela com o silêncio. A garota suspirou, parecendo desistir de mim. Karen andou pelo quarto, fazendo círculos. Seus braços foram para trás de seu corpo, cruzando os pulsos enquanto andava. Uma ex
Eu sei que eu sou um monstro, mas a mulher esquisita na nossa frente era muito mais assustadora, tinha certeza. Ela possuía cabelos flamejantes, olhos negros, pele pálida e asas de morcego. Porém, o que mais me chamou a atenção nela era uma perna de égua e outra de bronze. Por um segundo me perguntei se ela conseguia andar com aquilo.— Eu falei para vocês entrarem no quarto — disse o monstro devagar.Suas garras de bronze pendiam ao lado do seu corpo. Dois passos a mulher deu na nossa direção. Eu me afastei dois. Karen fez o mesmo e trocamos olhares.Mal tivemos tempo de pensar no que poderíamos fazer para escapar daquilo, pois aquela coisa esquisita veio rapidamente na nossa direção —
No corredor do meu quarto, fiz questão de colocar o colar de volta no pescoço, com medo da Milena me ver na forma de monstro. Contar para Karen já foi arriscado demais. Até porque agora a oficial que cuidava dos dormitórios, apesar de também ser um monstro, sabia que existiam duas... sobrenaturais no treinamento daquele mês.Ao abrir a porta, agradeci à minha intuição pois a Milena estava de fato no quarto, deitada na própria cama. Entretanto, por causa da luz da lua intensa vindo do lado de fora, consegui perceber a garota se sentando na cama, assustada ao ver um vulto.— Elas pegaram você também? — questionou num tom assustado.Caminhei devagar até Milena e me abaixei perto da
Enquanto desamarrávamos Karen, ela só fazia gemer de dor. Começamos a soltá-la pelos tornozelos. Nos pulsos, Milena a segurou para que a garota não desabasse no chão com as costas feridas. Os machucados eram mesmo horrendos e estavam claramente sensíveis.Quando soltei o último nó, Milena clamou por ajuda e eu logo fui socorrê-la por conta do peso de Karen. Juntas, colocamos a garota devagar na grama, com as costas voltadas para cima. Meu estômago dava voltas só de olhar pro que sua pele tinha se transformado por culpa do chicote.Mais uma vez eu e Milena trocamos olhares, decidindo silenciosamente em levar nossa colega de quarto para a enfermaria. Devagar, segurei seus braços e Milena suas pernas, da mesma forma que tinham feito comigo. Entã