CAPÍTULO QUATRO

Londres era uma das cidades mais famosas de todo o mundo, o ponto principal de todo o Reino Unido e, por consequência disto, o covil da aristocracia britânica. Durante a alta temporada a cidade fervilhava de pessoas da nobreza. Eram ofertados centenas de bailes, jantares e saraus a fim de reunir a famosa nata da sociedade para conversar sobre o clima e assuntos dentro das regras de etiqueta — pelo menos era isso que gostariam que acreditassem. Na realidade, tais eventos eram uma excelente oportunidade para saber grandes fofocas, pequenos boatos e mexericos simples que circulavam por entre a nobreza. Era assim que descobriam e decidiam suas vítimas, quais damas e cavalheiros deveriam ser evitados e até mesmo desprezados e relegados ao ostracismo. As damas desfilavam as obras da última moda de boutiques renomadas, enquanto os cavalheiros gastavam milhares de libras apostando em corrida de cavalos, clubes de jogatina e bordéis. Oh sim, havia mais bordéis por toda Londres do que igrejas. Para uma nação tão devota como proclamavam pelo mundo, sua devoção estava em falta em seu próprio país. 

Aos dezenove anos Ravenna aprendera a se portar diante da sociedade com a mesma imponência e discrição de seu pai — mesmo obtendo um resultado menos ameaçador que o duque pelo fato de se tratar de uma dama. Conseguia calar muitas opiniões vindas de outras damas, que torciam o nariz para ela pelas costas durante o dia, e a noite antes de dormir, faziam preces para ter sua popularidade. Deixara de lado seus trejeitos italianos e passou a usá-los muito raramente em conversas com a família. Convencera a si mesma que precisava ser discreta para que pudesse aproveitar de sua liberdade longe dos olhares curiosos, e misturar dois idiomas enquanto falava chamava mais atenção do que gostaria, já que sua aparência atraia atenção suficiente, não precisava de outros incentivos.

Ravenna adorava fazer com que lordes respeitáveis rastejassem aos seus pés atrás de um compromisso, “um de seus hobbies favoritos” seu irmão diria.  Debutara no ano anterior e fechara a temporada com o total de vinte e uma propostas de casamento de cavalheiros elegíveis — e alguns nem tão elegíveis assim — que se diziam completamente apaixonados pela dama, capazes de mover o Tâmisa para o deleite de sua musa. Alguns possuíam idade para ser bisavôs de Ravenna, esses ela declinava do cortejo com a desculpa de que os tinha como inspiração paterna, utilizando de seus charmes os convencia de que deveriam olhá-la como uma neta a quem precisavam proteger e aconselhar, e lhes mostrava como isso os faria ganhar muitos pontos com seu pai. Mencionar o pai era sempre um incentivo e tanto ao declínio das propostas. Fazia com que os lordes lembrassem de quem ela era filha e o que seu pai era capaz de fazer.

Alguns de seus outros pretendentes mal sabiam escrever os próprios nomes, esses ela conseguia convencer a retirar as ofertas através da boa e velha persuasão disfarçada de conselhos casamenteiros. Em algumas situações se dispunha até mesmo a ajudá-los a encontrar damas que melhor atenderiam aos propósitos dos cavalheiros. Nos dias que não dispunha de grande paciência, ela os atormentava e os jogava uns contra os outros. Divertia-se em fazer com os homens o que eles constantemente faziam com as mulheres.

Suas vítimas favoritas eram lordes afundados em dívidas que tentavam desposá-la a todo custo, usando até mesmo de certos ardis para comprometer a jovem e forçá-la ao matrimônio. Ravenna dava a eles a sensação de estar no controle e se passava por uma dama inocente, até que os cafajestes sentissem que a tinham em suas mãos. Após os homens moverem as peças do jogo a favor de si próprios, os entregava de bandeja a seu pai. Nesses casos em particular, James cuidava para que tais cavalheiros — que desconsideravam a fama dele por estupidez ou ignorância, deixando de lado a prudência e o amor à própria vida— adquirissem certo nível de juízo afastando-os de vez de sua filha da maneira mais discreta e incisiva possível.

Alguns cavalheiros dentre o pelotão de admiradores da Lady Osborne eram, de fato, homens interessantes e dispostos a cortejá-la por mais do que sua beleza e seu enorme dote que, segundo lorde Cleaven, serviria muito bem para comprar um pequeno país se o futuro marido da dama assim o desejasse. Porém, Ravenna estava longe de sequer pensar na possibilidade de casar, então os dispensava rapidamente para que pudessem encontrar a felicidade em um matrimônio por amor. Gostava de sua liberdade e jamais abriria mão de si mesma para tornar-se um adorno para um lorde qualquer. Participar das temporadas era nada mais do que um bom divertimento para sua alma maquiavélica, como Eva costumava dizer.

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Fazia apenas alguns minutos que Ravenna e sua família haviam chegado ao baile anual da marquesa de Riverdale e, enquanto ela observava o esplendor com o qual a marquesa decorara o lugar, Sir Lastings, herdeiro dos anfitriões, pediu a Ravenna que lhe concedesse a honra de dançar a segunda valsa. Ravenna olhou para seu pai fingindo pedir sua permissão, o duque balançou a cabeça suavemente em sinal de aprovação. Sabia que seu pai não se importava com aquilo, mas fazia para mostrar aos outros o respeito que tinha pela autoridade dele. Ela mesma não conseguia dizer exatamente o motivo para todos terem James em tão alta estima, no entanto, agradecia por seu pai exercer tamanha influência e autoridade entre os de sua classe.

Diferente de seu irmão, que não era dado a festas e bailes, Ravenna adorava comparecer aos eventos que a família confirmava presença. Os Osborne eram disputados em todos os bailes e eventos importantes da aristocracia. Todo ano marcavam presença nos eventos dos Lastings, que eram amigos íntimos dos Osborne há décadas. Marissa costumava dizer que as damas decidiam os eventos da temporada de acordo com a agenda de sua família. Ravenna achava aquilo hilário até perceber que sua mãe não estava de todo errada.

Christopher a conduziu até o meio do enorme salão principal, onde outros casais se preparavam para começar a valsar. Ravenna conseguiu observar de soslaio alguns dos lordes que dispensara na tarde anterior, os homens a olhavam como se tivessem perdido a galinha dos ovos de ouro.  Ela bufou em desdém e lançou aos dois mais próximos um olhar sedutor, levantando uma das sobrancelhas em sinal de superioridade. Os cavalheiros mudaram de postura no mesmo instante hipnotizados pelo flerte. Limpando a garganta, James parou próximo aos jovens — que ao notarem a presença de Lorde Osborne ficaram pálidos como papel — e tomou um gole da taça de champanhe que trazia em uma das mãos. Sem dizer nada, os cavalheiros se afastaram da pista de dança e andaram apressadamente para o lado oposto do salão.  

A decoração do lugar estava impecável, Ravenna observou enquanto era guiada. Como sempre, Samantha Lastings possuía um gosto refinado e elegante; todo evento organizado pela Senhora de River House deixava seus convidados boquiabertos pelo luxo que a família exibia.

Ravenna conhecia o jovem Lastings desde muito pequena, já que seu irmão e ele eram grandes amigos. O rapaz era um homem de certa beleza, não o descreveria como um homem de tirar o fôlego, possuía uma beleza simples e gentil. Cabelo e olhos castanhos, um perfil magro e altura mediana, porém, seu bom coração e sua alma gentil — além de um modesto marquesado, é claro — o tornavam um homem honrado e muito disputado pelas jovens casadouras.

Jamais pensara em Christopher Lastings como algo mais do que um amigo, mesmo quando o rapaz confessou nutrir sentimentos por ela. Logo fez questão de mostrar a ele o quão desastroso seria um enlace entre ambos, e o convenceu que aquela inclinação era apenas passageira. Suas palavras surtiram o efeito desejado e agora, meses depois, o jovem a consultava em busca de conselhos para cortejar a dama que pretendia pedir em casamento. Enquanto os convidados ao redor imaginavam que o cavalheiro a cortejava, os dois amigos debatiam, entre rodopios e passos combinados, quais seriam as abordagens usadas por ele para cortejar lady Caroline Bromwell.

 — Milorde, deveria ouvir meus conselhos. Alguma vez o decepcionei neste quesito?  — Ela o olhava com determinação.  — Se obteve êxito em conseguir a permissão do Marquês de Stein para levar a filha dele para um passeio de cabriolé, foi graças aos meus conhecimentos.

 — Nunca me decepcionou, milady. Mas precisa entender que Lady Bromwell não é uma dama como as outras. Ela é doce e inocente de verdade, não posso levá-la para um passeio duvidoso e esperar que assim ela entenda como estou perdidamente apaixonado. Caroline pensará que sou um libertino.

 — Ora, milorde... tenha dó. É mais fácil eu me tornar freira do que você ser um libertino. O senhor é mais sentimental e romântico do que metade das damas que conheço.

 — Lady Ravenna, não posso arriscar a reputação de minha dama. Não há outra forma de fazê-la entender o quanto a amo? 

   

Bufando em sinal de impaciência, Ravenna aproximou seu corpo ao de Christopher e, notando o olhar surpreso de seu parceiro, ela falou:

 — Olhe bem para Caroline neste instante — Olhando para a jovem dama loira e delicada como uma frágil porcelana, ele nota o olhar irritado de Caroline e a forma como seu rosto assumia um tom mais rosado e impaciente.

 — Então? O que me diz? Sua dama não parece tão calma e inocente vendo você ser seduzido por mim — Ela debochou, sorrindo com o canto dos lábios — Caroline espera que milorde tome a iniciativa e demonstre seus sentimentos, para que assim, ela possa demonstrar os dela.

Surpreso por Ravenna notar tantos detalhes escondidos, Christopher a questionou sobre como percebeu tantas coisas em poucos minutos.

 — Precisa se atentar aos detalhes. Nós, mulheres, não temos liberdade para expressar nossas opiniões e sentimentos, precisamos sempre fazer uso de subterfúgios para sermos compreendidas. Olhe como ela balança o leque e toca a luva, está irritada e questionando-o sobre suas intenções comigo.

 — Ainda não consigo compreender totalmente essa linguagem, mas agora eu entendo o porquê me disse para levá-la ao jardim. Ela se sentirá livre para falar sem que outros nos escutem, certo?

Ravenna acenou a cabeça em concordância. Assim que a valsa terminou, o jovem cumprimentou sua parceira de dança e despedindo-se partiu em direção à Lady Bromwell.

Ravenna observava da janela a vista para os jardins enquanto tomava uma taça de champanhe, quando foi surpreendida por sua mãe, que parou ao seu lado para conversar.

 — Sente-se solitária, minha filha? Pensei que as coisas estivessem avançando entre você e o jovem Lastings.  — Ela disse também observando o jardim.

 — Ah não mamma, por favor não me venha com suas técnicas casamenteiras obscuras. Lastings e eu não passamos de bons amigos. Não sei o que a senhora pensou ter visto, mas está errada. Ele me pedia conselhos sobre como cortejar Caroline e eu, como a boa samaritana que sou, prontamente o ajudei.

 Rindo, Marissa passou os dedos enluvados pela bochecha da filha e lhe deu um leve beliscão no queixo.

 — Você é igualzinha a seu pai — Ela sorriu, satisfeita por Ravenna se orgulhar disso. — Teimosa e obstinada feito uma mula. Quando desistirá dessa tolice de nunca se casar? Precisa encontrar um marido, minha filha. A vida será mais interessante se puder compartilhá-la com alguém que você ame.

 — Já compartilho demais com a senhora e papà, até Berlin faz parte da festa. Isso sem contar Eva e tio Dom, tem também Jaden e Mery. São muitas pessoas que amo e compartilho minha vida, não preciso de outra.

Revirando os olhos a duquesa pegou a taça da mão da filha e tomou um gole da bebida.

 — Sabe que não estou falando disso. Um dia entenderá que o amor entre um homem e uma mulher é diferente e importante.

 — Mamma, homens são descartáveis. É muito raro encontrar um que valha a pena gastar meu tempo. A senhora foi sortuda e encontrou meu pai, mas noventa e nove por cento do sexo masculino é tão dispensável quanto tinta barata. Só servem para estragar obras de arte e causar bolor nas telas.

 — Cuidado, minha filha. Isso soa como palavras amarguradas.

 — Não se preocupe comigo, sou feliz da forma que estou e pretendo continuar sendo feliz e solteira.

 — Seja como quiser, minha querida.  — Marissa depositou um leve beijo na bochecha da filha e se afastou indo em direção à algumas matronas conhecidas que avistara próximas à mesa de doces.

Ravenna entendia o que sua mãe queria dizer. Sabia que a solidão bateria em sua porta em algum momento. Depois de anos remoendo seu erro, ela aprendera a desconfiar de qualquer homem que não fosse de seu círculo pessoal. Por um segundo até pensou em aceitar a proposta de Christopher, mas por compaixão pelo pobre rapaz, preferiu recusar. Ela sabia que jamais o faria feliz, pelo contrário, o transformaria em uma pessoa infeliz e desiludida. Ele merecia um casamento por amor, e Ravenna não tinha nenhum para ofertar.

Olhando os casais valsarem sob um enorme lustre de cristais no meio do salão, Ravenna percebeu um olhar em sua direção não muito longe de onde estava. Ao focar no homem que a observava se depara com um cavalheiro loiro, não poderia afirmar se estava com dificuldade para enxergar ou se o homem realmente possuía um nariz tão avantajado como parecia, trajando preto, exceto pela camisa branca, ele mais parecia um pinguim. Era uma visão um tanto estranha, pensou. Ravenna não costumava deixar-se abalar pela aparência física de qualquer pessoa, mas precisava admitir que aquele rosto era uma visão bastante intrigante. O homem possuía lindos olhos verde oliva, e sua beleza terminava aí. Como era alto feito um poste, e com cabelos curtos e ralos dando ainda mais destaque a seu nariz protuberante e sua boca reta e taciturna, Ravenna o imaginou como algum personagem de contos de terror. Um verdadeiro exemplo de como algumas pessoas eram excessivamente abençoadas com beleza, enquanto outras não possuíam uma gota sequer.

Ao notar que Ravenna retribuía o olhar inspecionando-o, o cavalheiro inclinou ligeiramente os lábios em um meio sorriso lateral e levantou uma das sobrancelhas, demostrando estar ciente de sua observadora. Ravenna, ao notar os sinais que o homem lhe enviava, desviou o olhar e andou em direção a Berlin, que se encontrava entediado no canto do salão tentando fugir das damas casadouras e suas mães obstinadas, inclusive Marissa.

Ravenna não estava para flertes naquela noite e não gostaria de aventurar-se sem saber onde pisava.

 — Gostaria de poder ir para casa sem que mamãe nos perseguisse durante a semana, para nos lembrar o quanto fomos mal-educados em sair antes da hora — Ele disse suspirando.

 — Geralmente discordo de você sobre bailes, mas desta vez preciso admitir que preferia estar em casa tomando um copo do conhaque e ouvindo mamma cantar. — Suspirando em sinal de descontentamento, ela prosseguiu — Não há nada de errado com o baile, acredito que o problema seja comigo.

 — Sim, seria mais prazeroso estar em casa. Comecei a escrever um novo romance e precisar abandonar meu momento criativo para estar aqui, é uma tortura. E eu trocaria o conhaque por vinho.

Ravenna riu e ao passar o olhar pelo salão, percebeu o cavalheiro loiro mais uma vez a admirando de longe.

 —Sabe quem é aquele cavalheiro loiro e alto?  — Ela questionou o irmão.

 — Anthony Manner? Ele é o Conde de Rutland. Um homem dado aos prazeres da carne e aos vícios de estimação de todo bom nobre — intrigado com a pergunta da irmã, Berlin a interrogou — Por que deseja saber sobre ele? Possui algum interesse em cortejá-lo, minha querida irmã? Posso fazer a apresentação de vocês se assim desejar. Gostaria de vê-la confrontá-lo em uma batalha de egos. Apostaria vinte libras em você.

 —Não seja tolo. O homem tem me observado durante o baile inteiro. Apenas quis saber quem será o próximo coitado que precisarei dispensar.

—Não seja tão cruel. Talvez sua feiura seja chamativa demais e, por pena, ele não consiga deixar de olhá-la. Se bem que... bem, ele não é exatamente um exemplo de beleza — Ele disse, o ar zombeteiro iluminando sua face.

 — Ora... que fantástico Berlin. Conseguiu usar o único pedaço do seu cérebro que funciona para formar uma chacota completa. Meus parabéns!  — Ela retrucou em tom jocoso.  — Informarei a papà seu progresso, ele ficará feliz em saber que agora você é um pouco mais racional do que um macaco.

 — Touché!  — Ele riu.  — Dessa vez você ganhou.

 — E quando é que não ganho?

Ravenna olhou de soslaio novamente para ter a certeza de que ainda estava sendo observada. E lá estava ele, a admirando de maneira sutil. “O que será que aquele homem queria? Pelos céus... não tinha um dia sequer de paz com esses urubus pairando sobre sua cabeça”.     

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