Selene puxou o capuz para cobrir os cabelos enquanto andava apressada pelas vielas estreitas da Cidade Baixa. O ar cheirava a fuligem e ao suor das pessoas que trabalhavam sem descanso. Ali, o sol parecia nunca brilhar de verdade, e as sombras dos altos muros da Cidade Alta lançavam um lembrete constante de onde ela e todos os humanos pertenciam: abaixo.
A taberna Luar Pálido era seu destino. Trabalhava lá há meses, limpando mesas e servindo clientes. O dono, um velho rabugento chamado Boris, nunca a tratara bem, mas o pagamento era suficiente para manter o teto sobre sua cabeça e algo para comer.
Assim que entrou, Selene foi recebida pelo burburinho das conversas. Híbridos de lobo dominavam a maioria das mesas. A Cidade Alta ficava logo além dos muros, e muitos dos que passavam pela taberna iam em direção à Academia Lupiére — um lugar reservado apenas para mulheres-lobo de linhagem pura.
— Chegando tarde de novo? — rosnou Boris do balcão.
— Sim, senhor — respondeu Selene, abaixando a cabeça.
Ela pegou uma bandeja e começou a atender as mesas, tentando ignorar os olhares desdenhosos que alguns híbridos lançavam em sua direção. Estar ali, na posição de servidão, só significava uma coisa: era humana, e aquilo era um lembrete constante de sua inferioridade.
Quando o sol começou a se pôr, um grupo de jovens híbridas entrou na taberna. Todas vestiam mantos bordados com o brasão da Academia Lupiére — uma lua crescente entrelaçada com um lobo.
— Elas estão indo para a Academia — sussurrou uma das garçonetes, fascinada.
Selene não conseguia desviar o olhar. As jovens caminhavam com graça e confiança, como se o mundo lhes pertencesse. Elas eram tratadas com respeito, cercadas de luxo e privilégio. Não se preocupavam com a sujeira das ruas, com a fome ou com a humilhação diária. Para Selene, não importava tornar-se uma Luna — esse era um destino inalcançável para uma humana. O que importava era viver como uma, nem que fosse por um tempo.
Boas roupas. Comida farta. O calor de um quarto confortável.
Era um sonho perigoso, e um sussurro de prudência em sua mente dizia que ela deveria esquecê-lo. Mas quando ouviu dois clientes comentando sobre uma híbrida que não compareceria à cerimônia de admissão da Academia por motivos familiares, seu coração disparou.
— Uma pena. Eles só aceitam quem tem a linhagem pura confirmada — disse um deles.
O outro riu. — Mas quem saberia? Basta um bom falsificador para conseguir um documento.
Selene parou de limpar. Um plano maluco tomou forma em sua mente.
Naquela noite, em vez de voltar para casa, ela foi até o bairro mais perigoso da Cidade Baixa, onde sabia que encontraria alguém capaz de ajudá-la.
— Eu preciso de um favor — disse Selene ao entrar em uma sala escura.
O homem atrás da mesa, um falsificador chamado Fausto, ergueu uma sobrancelha.
— Você tem ideia do que está pedindo?
— Sei exatamente o que estou pedindo — respondeu Selene, com a voz firme. — Quero entrar na Academia Lupiére.
Fausto gargalhou. — Uma humana tentando se passar por híbrida? Você está louca.
— Talvez — disse ela. — Mas estou disposta a pagar o preço.
Fausto a encarou por um momento.
— Você sabe que, se for pega, não haverá misericórdia?
— Sim.
Depois de um longo silêncio, Fausto assentiu.
— Então, começamos amanhã.
Enquanto voltava para casa, Selene olhou para o céu. A lua cheia brilhava no alto.
— Não quero ser uma Luna. Só quero saber como é viver como uma — murmurou.
A luz pálida da manhã mal iluminava as ruas da Cidade Baixa quando Selene chegou à pequena oficina de Fausto. O cheiro de tinta e papel envelhecido impregnava o ar, e o som do sino enferrujado acima da porta ecoou pelo ambiente.
Fausto estava inclinado sobre uma mesa desorganizada, onde diversos documentos falsificados estavam espalhados. Ele não levantou o olhar quando Selene entrou.
— Você voltou mesmo — disse ele, sem emoção na voz.
— Não tenho outra escolha — respondeu Selene, firme.
Ele finalmente ergueu os olhos, avaliando-a por alguns instantes.
— E por que acha que pode se passar por uma híbrida?
Selene inspirou fundo.
— Porque ninguém espera que alguém como eu tente algo assim. As pessoas acham que só existem dois tipos de gente neste mundo: humanos que aceitam seu destino e híbridos que dominam tudo. Ninguém espera que uma humana ouse mais.
Fausto riu, um som seco e áspero.
— Você quer mesmo arriscar sua vida só para brincar de elite?
— Quero. Se puder vestir as roupas certas, comer a comida certa e dormir numa cama macia por um tempo, então vale a pena.
Após alguns segundos de silêncio, Fausto gesticulou para que Selene se aproximasse.
— Muito bem. Vamos começar.
Ele pegou uma folha de papel e começou a fazer anotações rápidas.
— Primeiro, precisamos criar sua identidade. Nome, linhagem e uma história sólida o bastante para enganar até o Conselho Lupino.
— Meu nome será Selena Arctos. Minha mãe era uma híbrida solitária que morreu quando eu era criança, e meu pai era humano. Isso explica por que meu cheiro não é tão forte.
Fausto estreitou os olhos.
— Isso pode funcionar. Mas você vai precisar de mais do que documentos.
Ele se levantou e caminhou até uma prateleira, de onde tirou uma pequena caixa de madeira. Quando a abriu, revelou um par de orelhas de lobo, feitas de um material que parecia assustadoramente real.
— Isso vai ajudar — disse Fausto, entregando as orelhas falsas a Selene. — Elas são ajustáveis e presas por um mecanismo interno que reage ao toque. Parece que você está mexendo as orelhas de verdade.
Selene segurou o acessório, impressionada com o realismo.
— E quanto ao cheiro?
— Isso será mais complicado. Mas existe uma solução.
Fausto tirou um frasco pequeno de um líquido âmbar.
— É uma mistura de ervas e feromônios lupinos. Vai mascarar seu cheiro humano por algumas horas. Mas tome cuidado. Se usar demais, pode chamar atenção.
Selene pegou o frasco, tentando conter a empolgação.
— E o mais importante… — Fausto a encarou. — Você precisa agir como uma híbrida. Se parecer hesitante ou submissa, vão desconfiar.
— Vou aprender.
Fausto deu um sorriso enviesado.
— Tem coragem, garota. Isso é raro por aqui.
Quando o sol começou a se pôr, Fausto entregou a Selene um envelope lacrado.
— Aqui estão seus documentos. Não perca isso por nada neste mundo.
— Obrigada, Fausto.
Ele apenas acenou com a cabeça.
— Boa sorte, Selena Arctos.
Enquanto caminhava de volta para casa, Selene sentiu o peso da decisão que havia tomado. Ela não queria ser uma Luna. Queria apenas provar, por um instante, o que era viver como uma.
Quando chegou em seu pequeno quarto, colocou as orelhas falsas e se olhou no espelho.
— Só por um tempo — disse para seu reflexo.
E pela primeira vez, sorriu.
O dia da admissão na Academia Lupiére finalmente chegou. Selene, agora Selene Arctos, estava diante do imponente portão de ferro que separava a Cidade Baixa da Cidade Alta. O brasão da Academia, uma lua crescente envolta por um lobo, brilhava no metal negro, refletindo a luz do sol nascente.Ela vestia um vestido simples, mas elegante, e mantinha o capuz erguido para esconder parcialmente as orelhas falsas. Seu coração batia acelerado, mas ela sabia que não podia vacilar.— Documentos? — pediu o guarda híbrido que vigiava o portão.Selene entregou o envelope lacrado. O guarda abriu, analisou o conteúdo e cheirou o papel, como se esperasse identificar algum cheiro humano. Selene conteve a respiração.— Selene Arctos? — perguntou ele, olhando-a de cima a baixo.— Sim.O guarda assentiu e abriu o portão.— Bem-vinda à Cidade Alta. A cerimônia de admissão começa ao pôr do sol.Selene entrou, sentindo o peso do portão se fechando atrás dela. Era isso. Estava dentro.As ruas da Cidade Alta
O primeiro dia de lições havia começado, e Selene estava determinada a se manter discreta. Cada aula era um teste constante de postura, comportamento e controle. A Academia Lupiére não era um lugar de aprendizado comum — era um campo minado, onde qualquer deslize poderia custar caro.Logo pela manhã, Madame Irina reuniu as jovens no salão principal.— A essência de uma Luna não está apenas em sua beleza ou graciosidade. Está em sua capacidade de observar, adaptar-se e sobreviver. Hoje, iniciaremos o treinamento de estratégia e dissimulação.Selene sentiu os olhares das outras jovens sobre si — algumas curiosas, outras desconfiadas. Mas foi um par de olhos em particular que a fez estremecer.Darius Thornheart estava encostado em uma das colunas do salão, os braços cruzados, observando cada movimento. Ele parecia desinteressado, mas Selene sabia que era apenas fachada.Madame Irina continuou:— Uma Luna deve ser capaz de manipular as percepções ao seu redor, convencer um oponente e se p
Os dias de teste na Academia Lupiére foram intensos. Selene enfrentou provas físicas exaustivas, treinamentos estratégicos e desafios que exigiam controle absoluto sobre seus instintos. Cada etapa parecia projetada para expor fraquezas, mas ela se recusou a falhar. Com determinação e inteligência, passou por todas as avaliações, surpreendendo até os mais céticos.Quando o último teste chegou ao fim, Selene recebeu seu uniforme oficial da academia. Agora, vestida como uma verdadeira aprendiz de Luna, ela se juntava às demais alunas nas aulas rigorosas de liderança, estratégia e combate. O perigo de ser descoberta ainda rondava seus pensamentos, mas, por enquanto, ela estava dentro.Em seu primeiro dia como aluna oficial, a manhã começou como qualquer outra. Selene se esforçava para acompanhar a aula de etiqueta enquanto Madame Megan corrigia a postura das alunas com um olhar afiado.— Coloquem-se como Lunas. Não há espaço para hesitação ou dúvida.Selene ergueu o queixo, ajustando-se
Selene despertou com a cabeça latejando e o corpo pesado, como se tivesse sido atropelada por uma carruagem. Sua pele ardia, especialmente o braço esquerdo, onde sentia uma dor latejante. Quando tentou se mexer, soltou um gemido baixo.— Senhorita Arctos? — chamou uma voz feminina, suave, porém insistente.Selene piscou algumas vezes até focar na mulher de uniforme da Academia, que a observava com uma mistura de impaciência e preocupação.— Levante-se. A senhora Irina e o senhor Thornheart estão esperando. É hora do exame.O coração de Selene acelerou. O exame de sangue.Ela se arrastou para fora da cama, percebendo que ainda usava a mesma roupa da noite anterior. O frasco de feromônio agora vazio estava em sua bolsa. O que eu fiz? Pensou. Sentia o corpo quente, como se estivesse febril, e cada passo parecia pesado.A funcionária a guiou pelos corredores silenciosos até o laboratório da Academia. Selene tentou ignorar o cheiro doce que exalava de si mesma, mas a intensidade do aroma e
Selene permaneceu enclausurada por dias, presa a um quarto simples e abafado, sem janelas ou qualquer forma de ventilação. O ar pesado parecia saturado pelo cheiro que emanava de sua pele, resquícios de um feromônio que ainda se recusava a desaparecer por completo. Mesmo após o fim do cio, o aroma característico dos híbridos lobo não deixou seu corpo, tornando-a ainda mais evidente entre os outros. O tempo passava em uma névoa indistinta enquanto ela tentava recuperar o controle sobre seu próprio corpo, sobre sua própria vontade. Mas o medo continuava ali, rastejando sob sua pele.Os boatos se espalharam rápido. Em pouco tempo, toda a Academia sabia da híbrida que entrara no cio, algo impensável. O espanto deu lugar ao fascínio, depois à especulação. Muitos a viam como uma aberração; outros, como um mistério a ser decifrado. Suas colegas, que antes a ignoravam ou desprezavam, agora a observavam com um misto de inveja e incômodo. Como era possível que Selene, filha de uma loba solitári
O primeiro baile do ano se aproximava, e a tensão na academia crescia a cada dia. As meninas se preparavam com esmero, escolhendo vestidos luxuosos e maquiagens impecáveis, tudo planejado para atrair a atenção dos alfas. Para elas, era uma oportunidade de conquistar aqueles que governavam o mundo e podiam mudar suas vidas com um único olhar. Mas, para Selene, a expectativa da noite era sufocante.Diferente das outras, ela não tinha a intenção de se tornar um prêmio. Era humana, e humanos não podiam se envolver com híbridos de lobo. O simples toque de um alfa selaria seu destino de forma trágica. Casar-se com um deles significaria sua morte inevitável. Essa era a regra implacável de seu mundo.Mesmo assim, não tinha escolha a não ser comparecer ao baile. Para sua sorte, desde que ingerira a essência com feromônios, o cheiro lupino não sumira, a deixando ao menos segura, já que como estava sendo extremamente observada, sair da cidade Alta para comprar mais essência, era impossível. Na
— É claro que não é humana; se fosse, Selene, você acha que estaria aqui? — Darius sorriu, um brilho desdenhoso nos olhos. Ele se aproximou com calma, mas sua presença dominadora tornava o ambiente sufocante. — Engraçado você ter tanto medo de um alfa. Nunca quis estar com um homem? Sentir prazer?As palavras a atingiram como um golpe, deixando um gosto amargo na boca. Um nó se formou em seu estômago, e, por um instante, Selene sentiu as pernas fraquejarem. Mas não podia ceder. Ele queria exatamente isso: ver sua expressão se desfazer em vulnerabilidade.— Eu… — tentou dizer algo, mas sua voz morreu antes de sair completamente. Humilhação queimava sob sua pele. Como ele ousava?— Nunca se sentiu atraída por um homem? Nem mesmo por um alfa? — Darius insistiu, a voz sedosa, carregada de desafio.Selene desviou o olhar, lutando para manter a compostura.— Eu não sou esse tipo de garota… — murmurou, esforçando-se para manter o tom firme.Ele soltou uma risada baixa, cheia de escárnio.— M
Naquela tarde, o alojamento de Selene fervilhava de animação. As garotas riam e tagarelavam enquanto pacotes luxuosos eram entregues, envoltos em fitas de cetim e embalagens sofisticadas. Cada presente parecia ser um troféu silencioso, um reflexo de status e atenção. Os olhos brilhavam de expectativa, os sorrisos eram largos, mas Selene sentia-se alheia àquele frenesi.Ao entrar no quarto, seu coração disparou ao ver a pilha de caixas sobre a cama. Não eram apenas lembranças triviais. Roupas de grife, sapatos impecáveis, joias reluzentes. Tudo parecia exagerado, excessivo. No meio de tantos luxos, algo prendeu sua atenção: um pequeno envelope repousava ao lado de uma rosa negra, tão perfeitamente preservada que exalava um perfume suave e envolvente.Com dedos hesitantes, Selene pegou o bilhete. A caligrafia era elegante, desenhada com precisão e intenção. As palavras eram simples, mas carregadas de significado:"Para a bela Selene, Que me fez esquecer o mundo por uma noite. Que esta r