Capítulo 2

Mesmo sem poder ver o rosto do rapaz, pude ver que assim como Miguel e a maioria dos jovens da minha idade que eu tinha visto dias antes naquela cidade, era muito bonito. O rapaz tinha uma pele negra, cabelos castanhos e alguns músculos. O rapaz desconhecido possuia vários hematomas abertos, mesmo não sendo médico, eu pude perceber que aquele garoto estava muito mal.

Meu pensamento voava pelos quatro cantos daquele quarto frio colorido por cores neutras e escuro, quando Miguel entra em silêncio com um homem um pouco gordo, loiro, alto que vestia um jaleco levemente amarelado. O médico segurava uma prancheta com muitas folhas, deduzo que seja minha ficha médica ou algo do gênero.

- Bom dia, Luis! Como está? – consigo ler seu nome no crachá que está preso no bolso de seu jaleco amarelo. Bernardo sorri enquanto arruma a mesma cadeira que Miguel estava sentado, para sentar-se perto de mim.

 - Estou com muita dor, mas bem. – digo não acreditando muito em minhas palavras. Miguel me encara confuso e quieto enquanto o médico respira fundo algumas vezes antes de falar alguma coisa.

- Então, Luis. Eu sou o mesmo médico que te atendeu quando você deu entrada no hospital, com o Miguel. Acho que você deve se lembrar de mim, certo?

- Sim, acho que sim. Minha cabeça dói um pouco, pode me contar se posso sair daqui hoje? – começo a ficar impaciente, pois ficar preso na cama de um hospital mais de dois dias me dava arrepios.

Antes que Bernardo responda qualquer coisa, ele pede para que Miguel saia do quarto para buscar meu celular na recepção.

- Luis... – Bernardo checa os batimentos e como o outro rapaz está antes de terminar qualquer frase. – Você chegou aqui com vários hematomas, eles estavam por todo seu corpo... Também apresentou algumas lesões no rosto, inchaços nos dois olhos e na mandíbula, porém tudo isso foi, digamos que, hum. – Bernardo gagueja e continua respirando fundo várias e várias vezes durante sua explicação – resolvido por nós. Você também apresentou uma costela rachada e uma quebrada, ambas do lado esquerdo... – respiro junto com o médico antes que ele continue a falar. Naquele momento, uma nuvem de tensão e terror cobre minha cabeça e eu começo a me preocupar ainda mais – Tenho certeza de que você se lembra quando nos contou que foi abusado sexualmente... E como foi comprovado, antes de iniciarmos a cirurgia, seguimos o protocolo e coletamos provas. E como parte dois desse mesmo protocolo, acionamos a polícia para que você possa depor a favor de si mesmo, ok?

Não consigo responder tão rápido quanto Bernardo esperava. De repente a ficha tinha caído e eu, agora, sabia que tinha sido abusado sexualmente por dois homens.

Depois que concordo em ser “interrogado” pelos policiais, o médico sai do quarto e dá espaço para dois homens fardados entrarem no quarto.

- Olá, Luis! Me chamo Jude e esse é meu colega Jorge – disse um alto e encorpado homem de cabelo preto feito em topete. Jude aparentava ter menos de trinta anos e tinha uma cara gentil e intimidadora ao mesmo tempo, assim como seu colega Jorge, que era um pouco mais baixo que ele, mais gordo e tinha o cabelo loiro bagunçado (de um jeito feio).

- Precisamos que você nos conte tudo que se lembra da noite anterior, rapaz. – Jorge diz sério enquanto pega uma espécie de agenda.

- Lembrando que pode levar o tempo que precisar, Luis – Jude diz enquanto olha de maneira rude para Jorge que parece estremecer na cadeira que ocupa.

Apenas assento com a cabeça.

- Tudo que me lembro é que estava dando uma volta na avenida dos Andes, e de repente dois homens apareceram atrás de mim e me seguiram por dois quarteirões. Virei para trás, algumas vezes, para confirmar se estava realmente sendo seguido por eles... E sim, eu estava. – de repente meu corpo fica quente e minha cabeça parece querer expulsar todas as lembranças que tinha daqueles dois homens me batendo e enfiando seus membros nojentos em mim.

- Quer saber, pense um pouco durante alguns dias. Não queremos te forçar a nada, se recupere um pouco e nos ligue quando se lembrar de algo. – Jude me entrega um cartão e ele e Jorge saem do quarto. Durante a conversa toda, eu percebi um certo desconforto do jovem policial moreno, pois a cada minuto ele olhava para a cama do rapaz ao meu lado.

Sei que parece estranho, mas naquele momento, tudo o que eu queria fazer era conversar com Miguel e conhecê-lo melhor, não por interesse (mesmo ele sendo lindo, com seus olhos azuis e sorriso encantador), mas porque gostaria de ter pessoas como ele por perto. Miguel tinha me salvado e mesmo depois de ter feito seu papel “humano”, ainda ficou no hospital me esperando acordar.

- Olá de novo - Miguel entra no quarto cinco minutos depois que os dois polícias intimidadores saíram.

- O-oi - digo meio envergonhado.

- Então, o médico te deu certeza de quando você vai sair desse hospital? - Miguel diz enquanto senta-se ao meu lado, no mesmo lugar que estava sentado quanto eu acordei do coma induzido da cirurgia.

- Ele não disse nada, espero que seja logo, não sei se consigo aguentar mais alguns dias dentro desse hospital - digo encarando a janela e tentando esquecer o pedido de Jude e Jorge, alguns minutos antes dessa conversa agradável.

- Também espero, assim podemos sair, não é? - Miguel diz nervoso enquanto tenta esconder um certo tremor em suas mãos. Me sinto confuso ao ouvir aquilo, tenho medo de pensar demais, como na situação de João.

- Sair? - digo enquanto sinto que algo cutuca minha cabeça, como se fosse uma lembrança ou uma intuição desesperadora sobre o pedido dos policiais.

- É... - Miguel engole a seco e se afoga em sua própria saliva, o que me faz rir e esquecer um pouco os demônios que mexo enquanto penso sem parar - Sabe, como amigos. Podemos ser amigos né? - ele diz com os olhos fechados, como se esperasse um não como resposta. Sinto que sua confiança se esgota aos poucos e isso me faz rir ainda mais daquela situação. Acho que podemos ser bons amigos, afinal, as melhores amizades surgem dos momentos mais inesperados.

- Claro que podemos, Miguel. Não precisa ficar nervoso - digo rindo, o que faz Miguel ficar ainda mais nervoso.

- Eu não estou nervoso, Luis. Só quero que sejamos amigos, você não pode ficar andando sozinho por essa cidade, não mais! - nessa hora meu sorriso desaparece - Quero dizer... É... Perigoso para todos nós, né? - ele termina sua frase tapando sua boca ao perceber que eu me sinto mais envergonhado que o normal.

- Você sabe? - digo baixo.

- Sei o quê, Luis?

- O porquê eu vim parar aqui? Os médicos contaram? - digo um pouco mais alto, para que ele entenda claramente o que digo. Não estava com vergonha do fato de eu ter sigo abusado sexualmente, mas de como isso estava me afetando. As pessoas, sejam médicos, enfermeiros e até parentes de outros pacientes, passavam pelo meu quarto e me olhavam com um olhar de pena, como se eu estivesse morrendo de algo nunca visto.

- Luis, claro que não... Eu não sei de nada, não pense coisas... - antes que ele termine qualquer raciocínio eu o interrompo.

- Amigos não mentem um para o outro, não é Miguel? Que tal começarmos nossa amizade com isso? - digo. Eu não queria brigar ou esfregar o motivo de meu sofrimento na cara de ninguém, mas gostaria de ter o privilégio de contar ou não para as pessoas, no meu próprio tempo.

- Tudo bem... Eu ouvi você e o doutor comentando, mais cedo. - O rosto de Miguel fica vermelho, indicando sua vergonha e receio em falar qualquer outra coisa, com medo talvez. - Eu não fiz por mal, mas estava muito curioso em saber quem te deixou daquele jeito... E porque... Me desculpe se fui invasivo... Só quero ajudar.

- Miguel, calma! - pego em sua mão para que ele sinta o quão feliz estou em saber que ele se preocupa comigo - Está tudo bem, eu iria te contar de qualquer forma. Você me trouxe até aqui e ficou me esperando, mesmo sem me conhecer... Então mesmo se não virássemos amigos, eu iria te contar - digo com a maior sinceridade do mundo, Miguel era uma pessoa boa, e eu estava feliz em me tornar amigo dele.

- Muito bem, Luis. Como você está? - nossa breve conversa é atrapalhada por Bernardo, que entra no quarto com uma expressão menos assustada e mais acolhedora do que a última vez.

- Ah, oi senhor Bernardo. Estou bem, não sinto mais tanta dor - mesmo aquilo sendo a verdade, digo com medo de Bernardo não acreditar e me deixar mais algum tempo preso naquele hospital.

- Isso é um ótimo sinal, Luis. A ausência da dor representa uma melhora do trauma que seu corpo sofreu - Bernardo diz enquanto anota algo na minha ficha médica.

- Mas ele não está medicado, doutor? - Miguel diz confuso.

- Nós retiramos o medicamento dele faz algumas horas, para ver como o corpo reagia sozinho... E parece que temos uma melhora muito promissora, Luis. Parabéns! - Bernardo diz virando as costas para sair do quarto.

- Quando poderei sair daqui Bernardo? - pergunto rapidamente antes que Bernardo saia da sala e eu perca a oportunidade de me livrar daquela cama.

- Você vai precisar ficar em observação mais alguns dias... Três, estimo... Depois vai precisar ficar uma semana em casa, sem fazer esforços ou coisas do tipo. Mais tarde a enfermeira vai te trazer alguns documentos sobre isso, ok? - concordo com a cabeça e o médico sai friamente da sala.

Miguel e eu nos entreolhamos, pensando a mesma coisa sobre a profissão médica: simpática não é o forte desses profissionais.

- Ele é tão simpático, né? - Miguel diz e aquilo nos arranca uma gargalhada alta de alguns minutos.

- Vocês podem rir um pouco mais baixo, por favor? - murmura o menino que estava dormindo até então.

- Desculpe, pode voltar a dormir, cara. - Miguel diz com os olhos arregalados para o menino, que tentava se levantar com muita dificuldade.

- Não consigo mais, porque vocês dois falam muito alto! - ele diz alto e nos faz tremer e ficar em silêncio por algum tempo. Até que a enfermeira perceba que ele acordou e o leve para tomar banho, com sorte nosso quarto não tinha banheiro.

Nos próximos dez minutos conversamos sobre muitas coisas. Eu estava um pouco confuso e me sentindo mal por prender Miguel à aquele lugar terrivelmente mórbido, mas segundo ele, ele não sairia dali tão cedo, o que me deixava feliz por ter companhia, mas triste por ter não poder fazer nada para tirar ele daquele ambiente frio e triste.

- E como foi, quando você chegou aqui? - Miguel diz ainda sorrindo, depois de uma piada contada por mim a alguns minutos.

- Foi bem normal, para falar a verdade... Quando eu cheguei, no mesmo dia, conheci um homem meio estranho que me ajudou na mudança. João era o nome dele - digo tentando esquecer aquele episódio.

- Estranho? Como assim? - Miguel pergunta intrigado e eu percebo que terei que contar.

- A princípio eu não o achava estranho, até viramos amigos... Mas depois de algumas semanas ele começou a fazer comentários e brincadeiras meio pessoais... E no fim, aconteceu que ele e o amigo tentaram transar comigo, contra minha vontade - digo ignorando a maior parte do detalhes pois não ligava mais para aquilo. Olho para Miguel e percebo que ele está assustado e pensando muito - O que foi, Miguel?

- Você disse que ele tentou fazer sexo com você? - Miguel pergunta rapidamente enquanto chega mais perto de mim, com sua cadeira.

- Sim, isso. Mas já passou, tenho problemas maiores para pensar, não acha? - digo me referindo a tudo que aconteceu comigo. Infelizmente não dava para esquecer por completo aquilo também.

- Luis...Você não acha que esse homem tem algo a ver com o que aconteceu com você, ontem? - Miguel diz olhando sério fixamente para mim, como se tivesse certeza do que disse.

- Eu nunca pensei nesse detalhe. Ele queria sexo, mas acho que nunca me estupraria...

- Miguel, como você tem tanta certeza? Ele e esse amigo, disseram alguma coisa depois que você os expulsou?

- Não lembro muito bem, mas acho que disseram que um dia iriam fazer sexo comigo, algo assim... Você acha que tem algo a ver?

- Luis, é claro que sim! - Miguel levanta da cadeira e começa a andar pelo quarto, enquanto fala - Temos que ligar para aqueles policiais que estavam aqui! Tente se lembrar de mais alguma coisa enquanto eu ligo, está bem? - Miguel pega o cartão que está ao meu lado e sai do quarto antes que eu responda qualquer coisa.

[continua]

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