Cheguei naquela cidade sem conhecer (ou esperar conhecer) ninguém. Alguém bondoso, em algum lugar do universo havia me dado a oportunidade de estudar em uma metrópole de Santa Catarina e por conta disso, estava longe do inferno onde eu morava, que era uma cidade minúscula situada no interior do Rio de Janeiro, da qual não quero nem me recordar o nome. Morava com mais quatro irmãos e dois pais não muito amorosos e desde pequeno sempre tive que lutar para conseguir qualquer coisa, seja pelo último pedaço de pão ou pelo melhor caderno.
Estar sozinho em uma cidade totalmente desconhecida me dava chances de ser quem eu realmente nasci para ser: um artista! Se interessar por arte e morar em uma cidade que discrimina qualquer tipo de forma de expressão é algo difícil e por isso estava tão esperançoso em morar em Blumenau.
- D-desculpa – digo após de esbarrar em um homem alto e loiro que estava parado em frente a meu novo prédio.
- Não foi nada – o homem sorri e pega uma das caixas que estão empilhadas em meus braços como sinal de educação – Me chamo João, você é novo aqui?
João era um homem grande e com alguns músculos a mostra. Seu cabelo loiro estava cedendo para o grisalho da idade, provavelmente. Seus olhos eram azuis e grandes. Ele aparentava ser alguém bom, a pessoa que eu precisava fazer amizade para começar ter uma vida social naquela cidade tão adorável.
- Sim, cheguei a dois dias atrás e só hoje que chegaram essas caixas – digo e finalmente abro a porta de meu apartamento, que a propósito estava uma bagunça pós mudança – E eu me chamo Luis.
- Prazer, Luis. - disse ele com um sorriso de canto, que me pareceu simpático e verdadeiro. -Você quer ajuda? Percebi que tem muitas caixas dentro desse caminhão gigante encostado na rua - João ri e começa a me ajudar após eu concordar. João era um cara legal, durante toda aquela tarde, ele me ajudara a carregar todas as caixas e a organizar tudo dentro de meu novo apartamento.
Uma das melhoras coisas que sonhadores, como eu, podem fazer é criar uma conta no banco aos 14 anos e desde então, guardar todo dinheiro que conseguir. Graças a isso e ao meu humilde trabalho de operador de caixa - no qual fiquei desde meus 15 até 20 anos - eu consegui juntar um valor significável e alugar um bom apartamento. Sonhos são alcançados com perseverança e ousadia, caso contrário eles congelam e estragam dentro de nós. Ter um apartamento e viver uma vida de “adulto” é a coisa mais louca que eu estava prestes a fazer, mas sabe, a vida não se baseia apenas em normalidades e rotinas.
João continuou comigo até a meia noite daquele dia. Me contou muitas coisas sobre a cidade e dicas de como se dar bem em todas as questões que envolvam “sexo com garotas”, confesso que isso me deixou um pouco enojado disso e aquele conceito que tinha pensando antes de conhecê-lo melhor sumiu de minha mente no mesmo momento, mas não estava podendo escolher amigos e pessoas com quem contar, então relevei por ora. A homossexualidade é algo tão normal para mim, mas parece que minha família e metade da cidade não achavam o mesmo. Naquele momento, conversando com João e tendo uma vida adulta normal, optei por não comentar minha sexualidade ou quaisquer características que levassem ele a crer algo parecido. Fui egoísta e totalmente preconceituoso comigo mesmo, mas estava com tanto medo de perder a única futura amizade que eu tinha, que escolhi me encolher, pelo menos no começo.
Eu sempre aparentei ser o que as pessoas diziam de mim, no ensino médio. O garoto magro, baixinho e com jeito de menina por não gostar de jogar futebol ou qualquer outro esporte na educação física. Os estereótipos que colocaram sobre mim me ajudaram a me entender quem sou de verdade, mas quando me vi frente a frente deles novamente, recuei e tive medo de sofrer tanto quanto na época do colégio.
No dia seguinte, João propôs que encontrássemos novamente para que ele me ajudasse com algumas caixas no apartamento. Eram 20:00 da noite quando ele toca minha campainha.
- Parece que terminamos tudo, Luis - João disse esfregando as mãos uma na outra depois de desempacotar a última caixa.
- Sim, graças a Deus, terminamos! - concordo e sento-me no sofá, ao lado de João.
- Então, você quer ir para minha casa, tomar um vinho, quem sabe? - João diz colocando a mão em uma de minhas coxas, sorrindo.
- Acho melhor não, está tarde. Amanhã tenho algumas coisas para resolver, quem saber outra hora? - digo recuando e me levantando. Me senti um pouco incomodado com a atitude de João, e mesmo achando que estou criando paranoias resolvo recuar. João me encara, desmanchando o sorriso aos poucos. E sai do apartamento sem se despedir ou falar qualquer outra coisa.
(...)
Duas semanas depois de minha mudança, João e eu nos aproximamos muito e ele me contara que também é gay, o que me deixa feliz, pois finalmente posso me sentir livre em dizer e fazer várias coisas. Ele pedira desculpas pelo seu comportamento estranho do primeiro dia e desde então, viramos bons amigos. Ainda sentia um clima tenso no ar, parecia que ele queria algo a mais do que amizade. Mas ao mesmo que eu sentia isso, tentava ignorar tais pensamentos, afinal eu sequer tinha beijado alguém na vida, como saberia que alguém tem interesses sexuais em mim? Mas, a cerca de três dias, os olhares e sorrisos (com segundas intenções) migraram para passadas de mãos e brincadeiras sem graça, como encostar a mão em meus órgãos genitais... o que me fazia sentir vergonha e medo, ao mesmo tempo.
(...)
- Luis, Luis, Luis - acordo de um sono desregulado às 16:00 da tarde, com João batendo na porta enquanto ria e conversava com outra pessoa. Engraçado, pois fazia cerca de uma semana que não via João, entre nós, estava até aliviado com isso, mas naquele momento sua voz ecoa todo o espaço de meu pequeno apartamento.
Levanto-me rápido e corro até a porta, sem camisa. Ao abrir, vejo João e um homem alto e ruivo ao seu lado, ambos sorriem para mim e entram repentinamente.
- Como está, Luis? - João, que veste uma regata branca e uma bermuda de moletom cinza, me pergunta enquanto se senta no sofá acompanhado do homem, que por sinal, era um pouco estranho.
- Estou bem, João. E você? Deu uma sumida, né? - digo tentando ser o mais caloroso possível enquanto sirvo um pouco de água para os dois.
- Esse é Carlos, somos amigos desde a infância - João apresenta o suposto homem estranho e nos cumprimentamos com um sorriso amistoso. O homem se levanta e mesmo após nos cumprimentarmos com o sorriso, ele me abraça forte, pressionando sua virilha em mim. Estranho, muito estranho.
Há uma coisa que nunca admiti para mim mesmo sobre, João. Ele era muito estranho, me olhava com um olhar profundo e de desejo, o que me fazia corar e me sentir desconfortável em minha própria casa. Minhas impressões de quando nos conhecemos estavam voltando e se solidificando cada vez mais, eu estava tendo certeza de que João queria algo muito além de amizade comigo.
- Pensei que poderíamos tomar algumas cervejas na sua casa - João me disse sorrindo e naquele momento eu percebo que ele tem em uma das mãos, um engradado de cerveja.
- Assim eu e você nos conhecemos melhor, o que acha? - Carlos, já sentado ao lado de João, diz rindo.
Não respondo nada, apenas concordo com a cabeça e busco copos para a cerveja. Mas antes que eu me virasse sinto alguém me puxando para trás e um par de lábios quentes e nojentos beijar minha nuca.
- O que está fazendo? - grito para o amigo estranho de João, Carlos. Que ri e continua tentando me beijar, até que eu o empurre e faça-o cair sentado no sofá, bravo.
- Pensei que você gostaria de conhecer pessoas nessa cidade, garotinho - disse Carlos bravo enquanto arrumava-se no sofá, ao lado de João, que me encarava confuso desde o início.
- É, Luis. Vamos lá, você vai gostar de uma diversão a três - João disse tentando se aproximar de mim, enquanto eu continuo observando aqueles dois homens grotescos e nojentos dentro de minha casa.
- Vão embora da minha casa, por favor - digo tremendo e com medo de um deles tentar algo a força. Eu não tinha nenhuma chance com dois homens grandes e intimidadores como eles.
João, que estava com um seu membro estourando a bermuda, se levanta rindo e caminha até minha direção, junto com Carlos, que também tem seu membro estourando sua calça jeans azul surrada.
- Nós viemos brincar um pouquinho, Luis. Qual é? Entra no clima - João disse se aproximando cada vez mais.
- Eu disse para vocês saírem de minha casa, por favor - entro em pânico e não consigo sair do lugar. Meus sentidos começam a se perder por conta do medo e mesmo que eu esteja dando o meu máximo para que Carlos e João não percebam, sinto que os dois entendem e veem meu medo e se aproveitam dele.
Gostaria de ser um garoto corajoso e pegar a faca que está atrás de mim, em cima da pia, e pelo menos tentar machucar João, que ri e fala baboseiras em minha frente. Mas por algum motivo esperado, não consigo me mexer e muito menos reagir a qualquer pergunta feita por um dos dois. Em minha mente, apenas me questiono como deixei aquilo chegar naquele ponto, quero dizer, eu tinha uma intuição bem formada de que aquilo aconteceria uma hora ou outra, afinal João nunca foi um amigo normal. Ele sempre deu a entender que queria algo a mais, algo sexual e sujo, como ele sempre falava sobre suas aventuras sexuais em lugares públicos da cidade.
- Luis, eu sei bem que você quer isso, deu todos aqueles sinais - João diz pressionando seu pênis, duro e nojento, em mim.
- Quer dizer que ele deu sinais, João? - Carlos se levanta e vem ao meu lado, assim como João - Esse garotinho safado quer algo, tenho certeza.
Sinais? Garotinho safado?
- Sinais? Eu nunca te dei sinal nenhum, estava apenas tentando ser legal - me defendo e saio do meio dos dois, pegando meu celular para discar o número da polícia. - Se vocês não saírem da minha casa agora e me deixarem em paz para sempre, eu ligo para polícia agora!
Carlos ri e depois de alguns segundos, João o acompanha nas risadas. Mas ao verem que realmente estou ligando para polícia, os dois saem do meu apartamento às pressas. Porém antes de sair, João sussurra em meu ouvido que ainda irá me “pegar” e aquilo me faz sentir-me com mais medo ainda.
- Nós ainda vamos comer você, garotinho - Carlos ri e antes de realmente sair, bate em minha bunda, o me faz empurrá-lo com ainda mais força da última vez - E você vai se arrepender desses empurrões.
- Vou me arrepender de não ter te mandando a merda, seu desgraçado. Suma da minha casa! - digo e me surpreendo com a atitude.
Nas próximas horas não consigo olhar pelas janelas, com medo de que algum dos dois ainda esteja pelas redondezas. João morava algumas ruas abaixo da minha, o que me fazia temer ainda mais. Penso em denunciá-los, mas desisto ao lembrar que tudo isso me dará mais dores de cabeça... E naquele momento, eu apenas gostaria de afastar todos aqueles pensamentos ruins e começar a viver minha vida, a partir daquele momento.
[continuação] Agora tudo fazia sentido! João tinha sido o responsável por aquela experiência grotesca e assustadora! Antes que Miguel voltasse, eu me esforçara para lembrar um pouco mais sobre aquele dia, com João e Carlos, e sobre alguns detalhes sobre aquela noite. Tudo que lembrava era que dois pares de mãos me puxaram... E tudo que sofri teve efeito dobrado por conta desses dois pares de mãos. Mas como eu provaria tudo isso? Eu não tinha ideias nem lembranças concretas de tudo que aconteceu e por isso não acreditava que essa busca implacável que os policiais, e Miguel, queriam fazer teria realmente um final feliz. Talvez, se tudo aquilo fosse esquecido ou, ao menos, deixado de lado... assim eu não seria obrigado a recordar cada passo que dei naquele dia, como se - Luis, liguei para os policiais... Eles estavam pelo bairro e vieram correndo para cá, estão ali fora... Posso chamá-los? - Miguel entra desesperado pelo quarto, junto com o médico e ant
- Luis – Miguel chama e levo meus olhos, que até então estavam grudados no céu azul do lado de fora daquele hospital, para Miguel, que sorri e quer dizer algo.- Fala, Miguel – digo prestando atenção.- Eu preciso ir para casa, avisar minha mãe onde eu estou e onde passarei os próximos dois dias – Miguel diz com seu tom de voz bem baixo, para não atrapalhar o sono do garoto da maca ao lado.- Próximos dois dias? Miguel, você não vai passar dois dias aqui comigo, sério, não precisa! – digo tentando não aumentar o tom de voz para parecer sério e confiante. Gostava da companhia de Miguel, mas era loucura alguém passar dois dia
No dia seguinte, pela manhã, Bernardo tinha passado em nosso quarto: Raphael estava reagindo a medicação de forma “promissora”, porém iria precisar ficar no hospital por mais alguns dias, e eu poderia sair naquele mesmo dia, sob condição de que ficaria em repouso durante mais três dias em casa.- Estamos entendidos? – Bernardo disse me olhando.- Sim, Bernardo. Estamos entendidos – digo sorrindo enquanto assino os documentos. Bernardo dá de ombros e sai da sala nos deixando apenas com Agatha que ri e pede desculpa.- E quem cuidará de você nesses dias, Luis – ela pergunta depois que eu entreguei os papéis.&nbs
- Vou ao banheiro, tomar um banho – digo e sigo meu caminho torcendo para que ele não me siga. Mas meus pensamentos são em vão, pois Miguel me segue até meu quarto e fica parado na porta, esperando. – Miguel, pode deixar que eu consigo – digo, mesmo sabendo que não conseguia levantar o braço direito.- Eu sei que você não consegue. Você não ouviu o doutor? Tem que evitar esforço para não piorar – diz preocupado batendo o pé.- Mas eu não farei esforço nenhum, apenas vou tomar banho – digo tentando fugir de algum sermão ou discurso feito por ele, baseado nos discursos e sermões de Bernardo.- Luis, você está com
Havia se passado um dia desde o terrível pesadelo que me assombrava. Miguel decidiu dormir na mesma cama que eu, para me assegurar que estaria tudo bem, caso eu surtasse novamente com o pesadelo. Eu decidi não contar nada para ele sobre minhas lembranças, afinal eu não tinha nenhuma prova daquilo, estava na minha cabeça e de alguma forma, talvez poderia ser apenas um fruto de minha imaginação fragilizada com tudo o que estava acontecendo. O medo que eu sentia em andar pelas ruas sozinho, a preocupação com Raphael e a falta de diálogo que eu tinha com ele, o sentimento forte e estranho que crescia dentro de mim por Miguel e o modo fofo como ele me tratava... Tudo isso se juntou em uma bola de neve emocional e acabou me sobrecarregando, talvez seja tudo obra da minha criativa e sombria mente. Talvez, as buscas por João e Carlos nunca terminariam porque talvez, eles não fossem os culpados. A mente human
- Vamos deixá-los limpar a própria bagunça. – digo para Luis, que assim como eu, estava totalmente desconfortável e esperando alguma desculpa para que pudéssemos sair daquele quarto, onde provavelmente Jude e Raphael iriam resolver muita coisa. Coisas que não interessavam nada para nós dois.- Nunca me passou pela cabeça que Jude e Raphael tinham um relacionamento, como o mundo é pequeno né, Miguel? – Luis me diz enquanto caminhamos para a cantina, até então em silêncio. Mesmo tendo passado por muitas coisas, Luis ainda era confiante ao andar, e sorria lindamente para todos que passavam por nós. Eu estava me apaixonando pelo garoto que esbarrou em mim todo ensanguentado algumas semanas atrás, e não estava fazendo força contrária nenhuma. Luis Hander era o tipo de garoto que va
Três dias haviam se passado desde que Miguel disse que me amava, aquilo era muito estranho, mas acho que é normal toda essa estranheza no início do relacionamento. De alguma forma, João e toda aquela situação horrível estavam fora de minha mente por causa de Miguel. Eu estava completamente apaixonado por ele, mas tinha medo de que minha falta de experiências e medo de me arriscar em literalmente qualquer coisa, estragasse o pouco de relacionamento que conquistamos nos últimos dias.- LUIS! – ouço um grito, vou até a janela e vejo Miguel sorrindo para mim. Ele estava de óculos escuro, camisa preta e uma calça jeans rasgada acima dos joelhos. Seu cabelo estava molhado e como sempre caía em seus ombros, lindamente. Desço rapidamente. Estou usando uma roupa simples, uma camisa jeans de botões cobre, u
- Então, Luis! Onde você trabalha? – Carlos me pergunta sorrindo. Eu não estava mais aguentando ter que fingir que tudo estava bem para que nenhum deles percebesse o quão desconfortável eu estava, mas eu não podia estragar a noite dos meus novos amigos.- Em uma ONG que acolhe crianças em situação de rua. – respondo.- Isso deve ser demais, né? Eu trabalho com caridade também... Na verdade todo mês visito o hospital infantil de câncer aqui da cidade! – Carlos sorri. Jorge sorria e concordava com tudo que o irmão dizia, e me lançava alguns olhares sérios também, aos poucos fui percebendo que ele sabia a verdade, desde o início.-