Meu coração batia desesperadamente de uma forma muito rápida e dolorosa, nunca sentida por mim. Talvez fosse pelo fato de eu não ter vivido mais do que 22 anos ou pela falta de interesse constante em novas aventuras. Nunca, em toda minha medíocre vida, eu sentiria algo assim; minhas entranhas se contorcem em um ritmo nada sincronizado, enquanto meus sentidos faziam meu cérebro se perder em meio a todo o controle que dominava sobre mim. Todo esforço físico feito por meu corpo naquele momento era em vão, não conseguia correr, nem muito menos gritar por socorro, porque (a) minha boca e corpo estavam sendo bloqueados por dois pares de mãos masculinas, nas quais eu não tinha nenhuma chance em deter, (b) mesmo que por um milagre divino – na qual eu não fazia de acreditar – eu conseguisse gritar, ninguém naquela rua me ajudaria pois (c) gays não merecem ajuda. Mesmo desesperado por ajuda, depois de um longo período de tentativas em vão, meu corpo desfalece e meu cérebro – antes dominando, ou tentando dominar, arduamente o controle – desiste de lutar e eu paro com o esforço desmaiando ao sentir pela centésima vez algo duro entrar e sair de dentro de meu corpo.
Quando tudo acaba – sim, o pior momento da minha vida, até aquele maldito momento, teve um fim – não percebo de imediato, pois meu corpo e mente estão vagando aleatoriamente pelo limbo dos vivos inconscientes; e é depois de alguns minutos desmaiado que meus olhos se abrem, com um certo esforço. Tento levantar-me do chão duro e cimentado recentemente, mas meu corpo cede. Minha barriga começa a queimar e latejar, como se tivesse sido atingida por uma barra de metal repetidas vezes e tenho quase certeza de que alguma de minhas costelas tinha se quebrado; levo minha mão esquerda até meu rosto que, assim como minha barriga, queima e lateja de tanta dor; percebo que meus olhos estão inchados e meu lábio sangra muito – muito além de um soco –. Finalmente quando meus sentidos vão se reorganizando, sinto uma queimação em meu ânus.
Mesmo sem saber o que tinha acontecido ao certo e o que estava acontecendo naquele exato momento, percebo que depois de abrir os olhos e ser notificado da dor existente em cada parte do corpo, cerca de uma hora e meia se passou. Ignoro os lembretes de dor enviados pelo meu cérebro e me levanto grunhindo de dor. Checo meus bolsos e, percebo que por alguma bondade do Universo, meu celular ainda está comigo, e com bateria. Mas mesmo com o celular carregado nos bolsos, me sinto confuso ao pensar se há alguém para ligar. Para quem você ligaria se estivesse sozinho em uma cidade totalmente nova para você? Não conhecia ninguém naquela cidade e para falar a verdade, naquele momento, eu estava começando a cogitar que não conheceria ninguém de forma tão fácil.
Começo andar cambaleando pelo beco que fui deixado e luto contra a dor que permanece alojada em meu peito. Tento desbloquear meu celular, mas meus olhos, dedos e palmas ardem como se chamas estivessem perfurando cada átomo meu. Mesmo não acreditando em nada nomeado divinamente pelo homem, rezo para que alguém venha me ajudar sem que eu grite por socorro e caia, mais uma vez, em mãos odiosas e erradas. Ainda cambaleando até o fim do beco que fui deixado por seja quem for, vejo uma multidão de pessoas indo e vindo de todas as direções da rua - que naquele momento percebi ser uma das avenidas mais movimentadas daquela cidade -. Mesmo mancando, machucado e possivelmente com uma aparência terrível, as pessoas passam por mim e não notam minha existência, mesmo que uma poça de sangue esteja se formando em meus pés. Se antes minha visão estava intacta, agora tento olhar para o celular, e finalmente discar o número da polícia, e percebo que aos poucos minha vista se embaça e mais uma vez, algum hemisfério de meu cérebro começa a superaquecer e perder o controle que cerca de meia hora tinha recuperado.
De novo tento andar e sem nem perceber o que estou fazendo direito, caio em cima de um rapaz coberto pela touca de seu moletom escuro - que não consigo distinguir a cor com exatidão pois minha visão continua comprometida e falha -. Ouço algum murmuro do rapaz antes de desmaiar em seus pés e fazer com que todas as pessoas desconhecidas, que até então me ignoravam, se assustam e de algum modo começassem a ajudar o rapaz misterioso.
Dentro da ambulância, alguns minutos depois, abro meus olhos e antes de perceber que meu corpo e vias respiratórias estão conectados a respiradores e aparelhos médicos portáteis, vejo o mesmo rapaz de antes. Seus olhos verdes, profundos e fortes, parecem aliviados ao se encontrarem com os meus, agora abertos. Antes que eu me mexa ou faça algum movimento brusco, o rapaz dos olhos verdes profundos e o paramédico que checa meus batimentos cardíacos me pedem para não me mexer, enquanto me seguram. Como se eu fosse ir a algum lugar daquela forma, totalmente destruído e machucado.
Chegando no hospital, o rapaz desconhecido, no qual apelidei de olhos verdes, segue os médicos - com minha nova maca - até a recepção e a partir daquele momento entendo que talvez, será a última vez que verei o par de olhos verdes responsáveis por meu salvamento.
Os médicos gritam palavras muito difíceis que uma pessoa leiga - como eu - entender, mas de algo eu capto o entendimento: eles estavam preocupados com várias partes de meu corpo; uma jovem médica começa a fazer várias perguntas para mim e de repente, sinto uma tristeza e raiva profunda na qual me dão a capacidade de me dar conta do que tinha acabado de passar.
- Eu fui estuprado! - digo retirando o respirador que me impede de falar nas duas tentativas anteriores. A jovem médica me encara preocupada e continua fazendo as mesmas perguntas, mas não tem sucesso algum com as respostas.
Antes de entrar em uma sala, a mesma médica me pergunta, finalmente, meu nome. Pela minha breve experiência em séries médicas americanas, ela estava tentando descobrir se eu conseguia falar e me lembrar de algo, em outras palavras, estava tentando saber se meu cérebro não estava fodido.
- Luis, me chamo Luis. - digo rouco e ainda gemendo da mesma dor que não havia passado em nenhum momento.
- Não consigo encontrar nenhum documento em seus bolsos. - uma nova médica grita para qualquer outra pessoa que organiza meu corpo naquela nova sala.
- Está no meu celular - digo enquanto sinto meus sentidos adormecerem graças ao novo respirador que a mesma médica coloca em meu rosto.
Aos poucos vou sentindo tudo girar e a conversa de todas aquelas pessoas vai se tornando cada vez mais distante de mim, até que tudo se torna preto e eu adormeço por completo nos meus pensamentos.
(...)
- Nossa! Nunca pensei que ficaria tão feliz em ver um estranho acordar! - o mesmo rapaz com o par de olhos verdes profundos que me ajudou, a sei lá quanto tempo atrás, disse com um sorriso sem graça ao me ver abrir os olhos lentamente. - Entreguei seu celular para a moça da recepção, você deu sorte em ter seu rg e cpf dentro do celular. – sorte? é, pode se dizer que sim, excluindo o fato de dois homens me espancarem e me abusarem antes desse vívido momento de flerte.
- Não acho que tenha sido muita sorte, não é? Olha como estou saudável! – digo com a voz fraca enquanto o desconhecido continua sorrindo para mim, desmanchando o sorriso aos poucos.
- É, tem razão. Como você se sente, dói muito? – ele tenta mudar o foco da conversa, após perceber a merda que havia falado. Porém, sinto que ele ainda estava confuso a respeito do que havia acontecido comigo.
- Sim, muito! Parece que dois caminhões fizeram baliza em cima de mim – digo mesmo não conseguindo detectar um lugar certo onde a dor focava, na verdade, tudo doía. - Então, como você chama? Gostaria de agradecer por tudo que fez por mim. – digo sabendo que se eu não tivesse esbarrado nele, possivelmente ele passaria reto por mim, porém, era grato por ter me acompanhado até o hospital e estar ali do meu lado.
- Não é necessário me agradecer, eu fiquei porque você não teria ninguém quando acordasse. – ele diz enquanto coça a parte de trás de seu cabelo ondulado, que era castanho e caia até seus largos ombros – A recepcionista não conseguiu encontrar ninguém aqui na cidade e os números que tinham no celular estão todos ocupados... E aliás, me chamo Miguel... Miguel Rogers.
- Nesse caso, obrigado Miguel. – digo enquanto tento erguer um dos braços para apertar a mão de Miguel, porém não tenho forças suficientes para isso e apenas lanço um sorriso semi cerrado para ele. – E vocês nunca encontrariam ninguém, sou do interior do Rio de Janeiro, e provavelmente a cidade está com problemas na luz ou em qualquer tecnologia... Morava bem no interior – digo rindo ao lembrar de como odiava morar naquele lugar enquanto tento mais uma vez me mexer, porém Miguel me segura, calmamente.
- Acho melhor você continuar deitado, Luis. – Miguel diz enquanto continua segurando meu peito mesmo eu já tendo parado de lutar para tentar levantar. – Vou avisar o médico que você acordou, acho que ele precisa falar contigo. Continue deitado, por favor – Miguel sai do quarto para chamar o médico apenas quando eu prometo que não tentarei fazer “movimentos bruscos”, isso me faz rir.
Miguel sai do quarto deixando a porta aberta, uma chance para que eu possa reparar em todas aquelas pessoas que passam, correndo ou não, pela porta de meu quarto. Hospitais me lembram da morte e de como ela pode arrancar dores infinitas de quem continua vivo, mesmo depois de perder pedaços de sua alma para a morte. Todas aquelas filosofias ditas pelo meu professor de epistemologia começaram a fazer sentido quando meu corpo estava fraco e sem cor, deitado naquela cama dura de hospital. Nessas horas pensamos em que realmente a vida se baseia e se vivemos de uma forma que vale a pena. O quarto, onde tinham posto meu corpo adormecido ainda, era como um quarto qualquer de hospital – não que eu tenha visitado muitos hospitais na vida, mas séries médicas da Netflix nos passam uma boa impressão de como as coisas são, mesmo não tendo visto tais coisas. A única diferença, era que meu quarto não era exclusivamente meu. Junto de minha cama existiam mais três, porém apenas a ao meu lado estava ocupada por um rapaz.
Mesmo sem poder ver o rosto do rapaz, pude ver que assim como Miguel e a maioria dos jovens da minha idade que eu tinha visto dias antes naquela cidade, era muito bonito. O rapaz tinha uma pele negra, cabelos castanhos e alguns músculos. O rapaz desconhecido possuia vários hematomas abertos, mesmo não sendo médico, eu pude perceber que aquele garoto estava muito mal.Meu pensamento voava pelos quatro cantos daquele quarto frio colorido por cores neutras e escuro, quando Miguel entra em silêncio com um homem um pouco gordo, loiro, alto que vestia um jaleco levemente amarelado. O médico segurava uma prancheta com muitas folhas, deduzo que seja minha ficha médica ou algo do gênero.- Bom dia, Luis! Como está? – consigo ler seu nome no crachá que está preso no bolso de seu jaleco amarelo. Bernardo sorri enquanto arruma a mesma cadeira que Miguel estava sentado, para sentar-se perto de mim.
Cheguei naquela cidade sem conhecer (ou esperar conhecer) ninguém. Alguém bondoso, em algum lugar do universo havia me dado a oportunidade de estudar em uma metrópole de Santa Catarina e por conta disso, estava longe do inferno onde eu morava, que era uma cidade minúscula situada no interior do Rio de Janeiro, da qual não quero nem me recordar o nome. Morava com mais quatro irmãos e dois pais não muito amorosos e desde pequeno sempre tive que lutar para conseguir qualquer coisa, seja pelo último pedaço de pão ou pelo melhor caderno. Estar sozinho em uma cidade totalmente desconhecida me dava chances de ser quem eu realmente nasci para ser: um artista! Se interessar por arte e morar em uma cidade que discrimina qualquer tipo de forma de expressão é algo difícil e por isso estava tão esperançoso em morar em Blumenau. -D-desculpa– digo após de esbarrar em um homem alto e loiro que estava parado em frente a meu novo prédio. - Não foi
[continuação] Agora tudo fazia sentido! João tinha sido o responsável por aquela experiência grotesca e assustadora! Antes que Miguel voltasse, eu me esforçara para lembrar um pouco mais sobre aquele dia, com João e Carlos, e sobre alguns detalhes sobre aquela noite. Tudo que lembrava era que dois pares de mãos me puxaram... E tudo que sofri teve efeito dobrado por conta desses dois pares de mãos. Mas como eu provaria tudo isso? Eu não tinha ideias nem lembranças concretas de tudo que aconteceu e por isso não acreditava que essa busca implacável que os policiais, e Miguel, queriam fazer teria realmente um final feliz. Talvez, se tudo aquilo fosse esquecido ou, ao menos, deixado de lado... assim eu não seria obrigado a recordar cada passo que dei naquele dia, como se - Luis, liguei para os policiais... Eles estavam pelo bairro e vieram correndo para cá, estão ali fora... Posso chamá-los? - Miguel entra desesperado pelo quarto, junto com o médico e ant
- Luis – Miguel chama e levo meus olhos, que até então estavam grudados no céu azul do lado de fora daquele hospital, para Miguel, que sorri e quer dizer algo.- Fala, Miguel – digo prestando atenção.- Eu preciso ir para casa, avisar minha mãe onde eu estou e onde passarei os próximos dois dias – Miguel diz com seu tom de voz bem baixo, para não atrapalhar o sono do garoto da maca ao lado.- Próximos dois dias? Miguel, você não vai passar dois dias aqui comigo, sério, não precisa! – digo tentando não aumentar o tom de voz para parecer sério e confiante. Gostava da companhia de Miguel, mas era loucura alguém passar dois dia
No dia seguinte, pela manhã, Bernardo tinha passado em nosso quarto: Raphael estava reagindo a medicação de forma “promissora”, porém iria precisar ficar no hospital por mais alguns dias, e eu poderia sair naquele mesmo dia, sob condição de que ficaria em repouso durante mais três dias em casa.- Estamos entendidos? – Bernardo disse me olhando.- Sim, Bernardo. Estamos entendidos – digo sorrindo enquanto assino os documentos. Bernardo dá de ombros e sai da sala nos deixando apenas com Agatha que ri e pede desculpa.- E quem cuidará de você nesses dias, Luis – ela pergunta depois que eu entreguei os papéis.&nbs
- Vou ao banheiro, tomar um banho – digo e sigo meu caminho torcendo para que ele não me siga. Mas meus pensamentos são em vão, pois Miguel me segue até meu quarto e fica parado na porta, esperando. – Miguel, pode deixar que eu consigo – digo, mesmo sabendo que não conseguia levantar o braço direito.- Eu sei que você não consegue. Você não ouviu o doutor? Tem que evitar esforço para não piorar – diz preocupado batendo o pé.- Mas eu não farei esforço nenhum, apenas vou tomar banho – digo tentando fugir de algum sermão ou discurso feito por ele, baseado nos discursos e sermões de Bernardo.- Luis, você está com
Havia se passado um dia desde o terrível pesadelo que me assombrava. Miguel decidiu dormir na mesma cama que eu, para me assegurar que estaria tudo bem, caso eu surtasse novamente com o pesadelo. Eu decidi não contar nada para ele sobre minhas lembranças, afinal eu não tinha nenhuma prova daquilo, estava na minha cabeça e de alguma forma, talvez poderia ser apenas um fruto de minha imaginação fragilizada com tudo o que estava acontecendo. O medo que eu sentia em andar pelas ruas sozinho, a preocupação com Raphael e a falta de diálogo que eu tinha com ele, o sentimento forte e estranho que crescia dentro de mim por Miguel e o modo fofo como ele me tratava... Tudo isso se juntou em uma bola de neve emocional e acabou me sobrecarregando, talvez seja tudo obra da minha criativa e sombria mente. Talvez, as buscas por João e Carlos nunca terminariam porque talvez, eles não fossem os culpados. A mente human
- Vamos deixá-los limpar a própria bagunça. – digo para Luis, que assim como eu, estava totalmente desconfortável e esperando alguma desculpa para que pudéssemos sair daquele quarto, onde provavelmente Jude e Raphael iriam resolver muita coisa. Coisas que não interessavam nada para nós dois.- Nunca me passou pela cabeça que Jude e Raphael tinham um relacionamento, como o mundo é pequeno né, Miguel? – Luis me diz enquanto caminhamos para a cantina, até então em silêncio. Mesmo tendo passado por muitas coisas, Luis ainda era confiante ao andar, e sorria lindamente para todos que passavam por nós. Eu estava me apaixonando pelo garoto que esbarrou em mim todo ensanguentado algumas semanas atrás, e não estava fazendo força contrária nenhuma. Luis Hander era o tipo de garoto que va