2. Perdi Tudo

No dia seguinte, acordei bem cedo apesar do cansaço e comecei as fazer as malas do David. Queria me livrar de tudo que pudesse me lembrar aquele homem, mas ao separar algumas peças, não consegui segurar as lágrimas, haviam muitas memórias boas, destruídas num único segundo.

Eu acreditava naquele relacionamento, acreditei na promessa de "até que a morte nos separe". David me fez feliz por muito tempo, vivemos boas aventuras juntos e ao invés de ser honesto, ele preferiu me trair. Sequei as lágrimas, separei as fotos dos porta-retratos e os presentes, os coloquei numa caixa e levei ao banheiro, onde eu teria acesso rápido a água caso o fogo saísse do controle.

Assisti a tudo queimar enquanto meu rosto era molhado pelas lágrimas, mas a lembrança da noite passada, que deveria ter sido feliz, me fez mais uma vez secar as lágrimas, erguer a cabeça e afirmar que eu iria superar isso. Apaguei o fogo e juntei tudo que restou numa sacola, olhei as horas e percebi que estava atrasada.

Me olhei no espelho para me arrumar, minha aparência estava péssima, meu cabelo era um emaranhado de ondas sem definição, embaixo dos meus olhos se formaram bolsas fundas e pretas pela péssima noite de sono e minha pele parecia pedir socorro. Eu podia dizer que já fui uma mulher bonita, puxei alguns traços da minha mãe, uma linda mulher preta de pele não muito retinta, com um sorriso espetacular e belos olhos; e outros do meu pai, branco de olhos azuis e nariz fino. Quando mais jovem, diziam que eu poderia ser modelo, mas logo precisei de óculos de grau e mais para frente a rotina me deixou desleixada. Mas isso ia mudar, com certeza ia.

Prendi o cabelo num coque, passei um pouco de corretivo abaixo dos olhos, um batom nude, coloquei os óculos e saí em disparada atrás da minha bolsa. Por sorte encontrei o elevador vazio, mas ele fez inúmeras paradas até chegar ao térreo. Meu carro estava há duas quadras, então precisei correr em cima de um salto alto para diminuir os minutos que eu chegaria atrasada.

O carro não estava lá.

Não dava para esperar até o horário de almoço para dar queixa na polícia, então o trabalho teria que esperar. Liguei para a polícia, me fizeram perguntar para os vizinhos, conferir se não deixei em outro lugar, até que finalmente vieram e pediram para acessar a câmera de um estabelecimento. Levaram meu carro às 3 da manhã, eu sabia que não devia ter deixado para mais tarde, mas a preguiça falou mais alto.

Fui para a delegacia, abri um boletim dando todas as informações do carro, não era nenhum modelo de luxo, mas também não foi barato e eu estava pagando as parcelas finais com muito custo, por isso quando o delegado disse que provavelmente roubaram para tirar peças, meu mundo desabou mais uma vez. Tudo que eu vinha lutando para consquistar, simplesmente estava se esvaindo entre meus dedos.

Saí de lá arrasada, peguei um táxi e fui para a Prime duas horas atrasada. Todos me conheciam e eu não queria ser a fofoca do momento, então coloquei um sorriso no rosto e abri a porta.

— Bom dia Jade, achei que não viria hoje. — disse a recepcionista Cleo.

— Bom dia Cleo. Tive um pequeno imprevisto. — respondi enquanto usava o crachá para liberar minha passagem.

No caminho cumprimentei dois seguranças, três estagiários, duas secretárias e todos que estavam no elevador. Cinco anos na empresa e aumentos de cargo me levaram a conhecer quase todos. Comecei como estagiária, me tornei assistente de marketing, surgiu uma vaga como secretária e me candidatei, foi quando comecei a trabalhar com o senhor Chevalier, há três anos.

— Bom dia Re. — falei atraindo sua atenção dos papéis para mim. Regina era a secretária do dono da empresa, que mesmo aposentado fazia questão de manter as coisas em ordem. Ela era a funcionária mais velha da empresa, trabalhava para o senhor Rutenford há mais de quinze anos.

— Que susto Jade. — disse levando a mão ao coração. — Bom dia, pensei que não viria hoje.

— E eu já faltei algum dia, Re? Minha vida virou de pernas para o ar, literalmente de um dia para o outro e acabei atrasando.

— Está tudo sob controle por aqui, caso precise de mais tempo. — sorri, grata por ter uma amiga que se preocupa comigo.

— Obrigada, mas não há muito o que fazer.

Encerrando o assunto, fui para a minha sala. Liguei meu notebook, arrumei minhas coisas e fui me servir uma boa dose de café para suportar o dia. Olhei a agenda de Filipe, nada marcado, achei estranho e decidi conferir, mas me lembrei que ele desmarcou tudo porque teria um jantar com a noiva. Não entendi bem os motivos de cancelar os compromissos do dia, por causa de um compromisso a noite, mas isso não era problema meu.

Depois de um tempo, imprimi um documento que precisava da assinatura do Filipe e fui até a sala dele. Sem muita conversa, entreguei o papel e ele assinou.

— Jade. — me virei, procurando saber se esqueci alguma coisa. — Como você está? Com toda aquela situação.

Eu e Filipe sempre tivemos uma relação muito profissional, era novidade ele perguntar sobre minha vida pessoal, mas na verdade eu dei essa abertura.

— Vou ficar bem, o errado nessa história é ele e estou em paz. — respondi, pronta para sair da sala dele.

— Se precisar de mais alguma coisa, não hesite em me ligar. — estranhei essa bondade toda, não era do feitio dele.

— Obrigada.

Saí da sala confusa e voltei ao meu trabalho. Por mais que meu coração ainda estivesse ferido e a dor da traição ainda martelasse em meu peito, estava confiante que foi algo bom. Talvez eu realmente precisasse de uma mudança. Voltar a ser a Jade cheia de vida que um dia fui, aproveitar novas paixões e me permitir ser feliz, sem me preocupar em agradar um homem ingrato e sem futuro.

Regina estava de saída no mesmo momento que eu, então a chamei para tomar um café. Ela era o mais próximo de amiga que eu tinha e seria bom desabafar, a vantagem é que ela não era fofoqueira e eu podia confiar que essa história não iria se espalhar por toda a empresa.

No café, ela ouviu todas as minhas queixas e desabafo atentamente, sendo literalmente uma mão amiga naquele momento tão delicado. Ela garantiu que tudo ficaria bem e eu também acreditava nisso, não era o fim do mundo e quem saía perdendo era o David.

Peguei um táxi para voltar para casa, mas a rua do meu prédio estava bloqueada por equipes dos bombeiros, polícia e todos os carros com giroflex possíveis. Desci correndo do carro, pensando que o pior teria acontecido, estava numa maré de azar e a chance de ser o meu apartamento era enorme.

Eu queria ultrapassar a faixa amarela, mas um policial me impediu e começamos a discutir, foi quando porteiro e o síndico me viram e correram até mim, seus semblantes preocupados eram a resposta que eu precisava.

— Senhora Smith, sentimos muito, mas seu marido ficou louco e incendiou o apartamento. Os bombeiros conseguiram impedir que as chamas se espalhassem para outros apartamentos, mas no seu infelizmente nada pode ser salvo. — avisou o síndico.

Em choque, me sentei na calçada. Estava tudo perdido. Tudo.

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