26 de Outubro de 2272
A agente doze depositou sua pequena bolsa em silêncio, em cima do balcão. Seus olhos encararam o reflexo da porta semiaberta do banheiro individual. O sorriso escancarado no rosto da dama sentada a latrina era mais do que convidativo. Ela não estava fazendo absolutamente nada. Apenas esperando-a. A agente se virou, sem contato visual.
— O que está esperando?
Indagou, mansa e sorridente. Ela levantou e caminhou vagarosa em sua direção. Seu perfume invadiu as narinas da agente e só então, ela ergueu os olhos para o monumento azul que eram suas íris. Tão raras quanto as de seu pai.
— Você me enlouquece, Angélica.
— E o que vai fazer?
— Isso.
Ela colou seu corpo ao de Angélica e aproximou sua boca pequena e faminta. Seus lábios grandes tomaram-na sem pressa.
Tinha de confessar que, apesar de estar sob disfarce, ela adorava estar acompanhada daquela mulher. Ela era a única naquele salão com quase trezentas pessoas com uma energia diferente e pura. Mas ao mesmo tempo, havia ingenuidade e luxúria em seus movimentos. Ela não sabia explicar o que ela tinha que a tornava especial. Só esperava que, ao final daquele dia, ela fosse a única que pudesse ser salva.
Sem fôlego, seus lábios se separaram. Ficaram se encarando, uma a outra, em um silêncio que dizia muita coisa.
— Queria que tudo fosse diferente.
Declarou Antonieta, com a voz melancólica.
— Eu também.
— Meu pai jamais toleraria isso mesmo que você...
— Eu sei. Ele é tão arcaico quanto os homens que começaram a terceira guerra.
— Sorte a nossa não termos vencido.
— Sorte a nossa.
Enfatizou Angélica, não podendo jamais esquecer dos anos tenebrosos e sombrios que seu país teve de passar para enxergar o óbvio: o fato de que todos somos humanos, independente da sexualidade, identidade de gênero, cor ou crença. E que todos, sem exceção, carregam a mesma cor dentro de si.
— É melhor irmos. Vão sentir nossa falta.
— Eu sentirei a sua, quando tudo acabar.
Ela tocou a pele da agente com sua mão macia e pequena e proclamou:
— Eu também. Espero que possamos nos ver de novo.
— Farei o possível.
Respondeu com sinceridade. Afinal, não fazia ideia de como aquele dia terminaria. Só havia uma certeza e ao mesmo tempo, ela era uma incógnita.
— Foi bom enquanto durou. Eu sei que mesmo lá fora, longe dessa realidade, seu coração jamais pertenceria a mim.
— Não vamos falar sobre isso, Antonieta.
— Está tudo bem, Angel. Só espero ter a oportunidade de conquistá-lo um dia.
Angélica se virou para o espelho, pegando o batom em sua bolsa e o retocando. Antonieta continuou ao seu lado, olhando-a como se fosse o último presente dos sonhos em uma loja em plena noite de natal.
— Sabe que meu coração não pode pertencer a mais ninguém. Ele foi quebrado uma vez e foi para sempre.
Fora sua vez de se virar, tocar no rosto delicado e puro, e caminhar até a saída do banheiro.
— Você sabe que para sempre é tempo demais.
Afirmou Antonieta, com um pesar na voz.
A agente segurou a porta do banheiro, parte do som já invadindo o espaço onde ainda estavam. Olhou para ela, que como se nada tivesse acontecido, sem deixar transparecer o seu abalo, também começou a retocar a maquiagem. A agente permitiu que um canto dos seus lábios se curvasse bem de leve enquanto saía do toilette.
Do lado de fora, ninguém havia sentido a falta delas. Os convidados continuavam sentados em suas mesas, tendo conversas espontâneas sobre a economia, a política do país ou o quanto viajar de jatinho tinha se tornado caro. O estômago da agente se revirava para certas conversas. Mas como noiva do chefe, ela devia sorrir e concordar a todo tempo. A maioria, se não todos, esbanjavam inúmeras e caríssimas joias, relógios, celulares de última geração e alguns tinham até robôs como seus motoristas exclusivos e garçons pessoais, totalmente programados para servir apenas o desejado e pré estabelecido pelo cliente. Tudo aquilo a custas de pessoas que às vezes mal tinham o que comer no final da noite. Em cada uma das mesas que ela passava, onde até dez pessoas poderiam se sentar, se fosse contar apenas os carros e propriedades de cada um, somaria alguns milhões de dólares. Fora as contas bancárias e empresas que muitos deles fundaram. O salão era recheado com pessoas pobres e de duas maneiras: podres de rico e podres de alma.
Se sentar em meio a mafiosos, assassinos e traficantes tinha se tornado seu trabalho há mais de oito meses. Ela não tinha nenhum conhecimento do que acontecia na agência ou no mundo fora daquele círculo. Sua missão era única e nada simples: consegui os cadernos secretos onde tinha o nome de todos que faziam parte dos crimes, além de transações bancárias e toda a rede de informações que seriam provas mais do que perfeitas para incriminá-los durante anos e anos, além encontrar o esconderijo de drogas, dinheiros e muitos outros negócios ilegais. Mas para que tudo desse certo, ela tinha de ter o disfarce perfeito. Com um passado conturbado e sem perspectiva de futuro, além de ter habilidades interessantes para os negócios e para cama. E no pacote havia incluso nenhum contato com sua vida pessoal e antiga. O que não fora um problema, já que não haveria ninguém a esperando.
— Querida, venha aqui, vamos brindar e iniciar o leilão.
Henrique ainda não havia lhe dito que tipo de leilão ele estava promovendo. O que a incomodava bastante. Afinal, havia planos para ele que não era de seu conhecimento. E para tudo sair perfeito, ela devia ter todas as informações. Mas não conseguira fazer que seu noivo revelasse seus planos. Então, só lhe restava sorrir como uma idiota alienada e feliz da vida.
— Meus caros amigos, este dia vai entrar pra história. Faremos o tão esperado leilão, com uma peça única e rara. Eu sei que vocês estão ansiosos para esta noite. É muito difícil reunir tantos de nossos familiares aqui. Afinal, não somos apenas amigos e sócios. Esta é uma enorme família e tenho muito orgulho de ser o chefe dela. Vocês sabem que em breve vou me casar com a mulher que tomou meu coração para si, então ela também será uma de nós.
Uma salva de palmas se iniciou. Ela sorriu o máximo que pôde. Percorreu os olhos pelo salão e os azuis de Antonieta a encaravam com seriedade e desdém. Ela sabia disfarçar todo o fogo por debaixo do vestido como uma verdadeira atriz de novela mexicana.
— Eu nunca estive em melhor momento da minha vida, com todos vocês aqui. Então decidi que precisávamos de um evento como este. Então quero que todos se divirtam, gastem muito suas fortunas e sejam felizes. Um brinde à todos nós. E meus amigos, não se esqueçam, antes de sair, levem uma garrafa de champanhe e um Rolex. Pras mulheres, bem, somente o champanhe.
Todos riram. Ela sentiu náuseas, mas riu como se fosse a melhor piada de todos os tempos. A mão de Henrique na sua cintura a conduziu até a cadeira na mesa da frente. Se sentou ao seu lado, de pernas cruzadas, aguardando ansiosa. Angélica tinha duas horas para conseguir o que precisava. Um homem surgiu no palco e começou a falar, para em seguida mandar trazer a primeira leva das mercadorias. Naquele instante, ela só queria sacar uma arma e enfiar uma bala na cabeça de todos aqueles homens nojentos e inescrupulosos. "As mercadorias" eram garotas. Com idades entre 8 e 13 anos. Ela fechou os olhos por um segundo, assimilando o que suas íris marrons tinham visto. Ela virou o rosto para um lado, durante um momento. Não sabia se seria capaz de assistir àquilo sem fazer nada.
Antonieta estava na mesma mesa que ela. Ela a encarou, transmitindo um olhar de calma. A agente respirou fundo, e ela assentiu levemente. Angélica estaria perdida se não fosse pela ajuda dela em muitos momentos daqueles meses. Henrique pôs a mão em sua coxa e indagou em seu ouvido se estava tudo bem. Ela respondeu que estava com um pouco de enjoo e que iria lavar o rosto no banheiro, para amenizar. Ele exigiu que ela não demorasse. Não caía bem a noiva do anfitrião não estar presente em seu evento de mais importância.
— É claro meu bem. Jamais perderia isso ou o constrangeria. Volto logo.
Ela se obrigou a beijar o canto de seus lábios e saiu sorrindo o máximo que pôde. Ela foi ao banheiro, o invadindo com força. Ninguém ouvira. Estavam todos absortos no cenário no palco.
Crianças... Pelo que ouvira, algumas foram vendidas por seus próprios pais que não tinham condições de criar. Alguns desses "pais responsáveis" haviam se endividado com contas de hospitais dos outros filhos e não tinham condições nem mesmo de se sustentar, quanto mais de criar mais uma criança. Era deplorável a situação que se encontravam aquelas pobres meninas. Sujas, com roupas rasgadas e olhares apavorados. Era doloroso acreditar que no Século 23, onde a tecnologia no Brasil dominava com facilidade, ainda houvesse casos de tráfico humano. Mas aquilo nem era o pior... Ela sabia que havia muitas outras sujeiras por de trás daquela Máfia. Não era à toa que estava ali há quase um ano para descobrir tudo.
Felizmente, sua vontade de justiça era maior do que qualquer sentimento de repulsa e teria de se superar para atingir seu objetivo. Ela deixou uma placa no banheiro de "interditado" e caminhou em direção as escadas.
— Senhorita Angélica, essa parte está proibida.
— Como assim? Eu preciso de alguns itens de maquiagem e perfume. Não pode me impedir de ir no meu quarto!
— Ordens do senhor Henrique.
— Essas ordens são para hóspedes. Eu sou da casa, me deixe passar agora.
— Sinto muito. Ele foi específico. Absolutamente ninguém sobe, nem mesmo a senhora.
— Isso é ridículo. Não acredito que vai me fazer apelar.
— Apelar ao quê? O que está fazendo?
A agente doze começou a tirar seus saltos. Precisava de silêncio e conforto, quando tomou espaço e o golpeou com um chute preciso no meio de suas bolas e outro em seu rosto. Ele caiu de imediato. Ela o arrastou para o canto, deixando-o com óculos escuros. Quem o visse, pensaria estar tirando um cochilo.
Subiu as escadas o mais rápido possível, segurando seus saltos. A agente acreditava que o motivo para seu adorado noivo ter proibido a entrada de qualquer pessoa é o mesmo para nunca tê-la deixado sozinha naquela casa: ele não confiava em ninguém. Nem mesmo em seus familiares mais íntimos. E não estava errado. Afinal, ela sabia que seu irmão mais novo estava tentando tramar alguma coisa para derrubá-lo. Sua única filha havia se juntado a ela das maneiras mais íntimas que ele sequer poderia imaginar, além de querer sair daquele inferno de vida há muito tempo. E sobre ela, nem precisava de comentários.
Angélica caminhou tranquilamente até seu escritório. Ela sabia que as câmeras iriam gravá-la. Mas não havia ninguém vigiando aquele lugar e quando houvesse seria tarde demais. Com um grampo que escondeu dentro da bolsa, ela abriu a porta em vinte e dois segundos. Entrou e respirou o ar gelado do ar-condicionado. Pegou uma cadeira e prendeu na porta. A sua sorte era que, apesar de toda tecnologia disposta na casa, Henrique mantinha certas coisas ao modo antigo. Por exemplo, as informações confidenciais de que tanto precisava estavam guardadas em um caderno e não em um drive como tudo naquele tempo. Isso porque ele sabia que computadores são facilmente hackeados. Então qualquer bom nerd de treze anos seria capaz de ter todas as informações que desejasse. Mas seu método também não era tão seguro. Afinal ela entrou com facilidade em seu escritório e achar o caderno não seria uma tarefa impossível. Demorada e arriscada, mas perfeitamente possível.
Levou mais tempo do que havia previsto. Ela vasculhou as gavetas, os quadros falsos e as prateleiras de livros, mas nenhum sinal. Sentou-se na cadeira, as mãos na cabeça, a ponto de desistir. Acabou melancólica, olhando fixamente para os objetos na mesa. Canetas, o computador, papéis e mais papéis inúteis. Viu um porta retrato dele segurando Antonieta, com seus quatro anos de idade. Ela era uma garota fofa e com olhos brilhantes. Com um sorriso, o pegou, admirando-o de perto. Uma gaveta secreta, embaixo da mesa, surgiu bem a sua frente. Ela não poderia adivinhar nem em mil anos. Na gaveta, havia mais documentos, alguns maços de dinheiro e um caderninho azul. Ela o apanhou devagar, sem acreditar que finalmente tinha acabado. Aquilo teria um fim e ela não poderia estar mais eufórica, apesar de não conseguir demonstrar aquilo.
Com um suspiro de alívio e um sorriso verdadeiramente alegre, ela abraçou aquele pequeno caderno. Nem precisava, mas fez questão de conferir os nomes na lista. Tinha alguns conhecidos. Junto com suas contas bancárias, datas, valor e serviço prestado. Era de arrepiar as coisas que eles estavam fazendo. Mas não poderia perder mais tempo. Sabia que muito em breve Henrique mandaria alguém atrás dela se não retornasse logo. Reunindo toda coragem necessária, pôs tudo de volta no lugar, escondeu o caderno em sua bolsa, dentro de uma maleta de maquiagem, que na verdade era o esconderijo perfeito para o que estava procurando, e saiu daquele lugar. Já usando seus saltos, caminhou despreocupada até se esbarrar com Antonieta.
— Conseguiu?
Seu olhar estava difuso. Ela não tinha certeza se ela estava feliz ou triste por aquilo terminar. Será que havia confiado demais naquela garota? Não. Não podia estar errada sobre seus sentimentos novamente. A agente nutria algo incompreendido por aquela jovem, mas tinha certeza dos sentimentos de Antonieta perante o pai.
— Sim.
Ela veio em sua direção, pôs a mão em seu rosto e sorriu.
— Eu fico feliz que isso vai acabar.
Ela beijou-a, bem de leve.
— Que porra é essa?
Antonieta se afastou rápido e a agente viu um segurança encarando-as bravamente próximo a escada. Engoliu em seco, temendo pelo fim. Antonieta pegou a bolsa da mão dela e se virou.
— Isso. Eu estava tentando pegar isso. Acho que ela pegou algo de meu pai. Esse foi o jeito mais pacífico que encontrei.
— O que pegou, dona Angélica?
Angélica encarou Antonieta sem entender nada. O segurança deu alguns passos em sua direção, visivelmente irritado.
— Eu não sei do que ela está falando.
— Não sabe? Então vamos ver.
Ele tomou a bolsa da mão de Antonieta e vasculhou. Ela pegou a maleta de maquiagem e abriu. Lá estava sua única prova física.
— Esse é o caderninho do senhor Henrique. Por que estava com ele, dona Angélica?
— Eu... eu não...
— Chega. Vou levá-la agora até o senhor Henrique.
Ele segurou em seu braço e tentou arrastá-la. Ela parou, puxou o braço com força e bateu a lateral da sua outra mão no meio de sua traqueia, que de imediato o fez perder a fala e o ar. Antonieta pegou a gravata dele, enrolou em seu pescoço e o enforcou, puxando o tecido para trás com toda sua força. Angélica completou com uma rasteira nele. O homem caiu e Antonieta continuou enforcando-o, desta vez usando as duas pernas para prendê-lo, até que ele perdesse a consciência.
— Por um instante, eu achei que tinha me traído.
Disse Angélica, após ver o corpo parar de se debater.
— Jamais faria isso. Eu a amo.
Ela sentiu seu corpo paralisar e o coração congelar, mas não podia continuar ali, enquanto o segurança ficava aos seus pés, desacordado. Sem respondê-la, arrastou-o para o canto.
— Desculpe, péssima hora pra dizer isso, mas é verdade.
— Falamos sobre isso depois.
Era a primeira vez que ela ouvia isso, sem ter sido da sua mãe, em 28 anos. E falando desta forma, parecia mais deprimente do que romântico.
Voltaram enfim para a festa. Mas não antes dela puxá-la Antonieta pelo braço e arrancar-lhe um beijo. Ela não sabia quando se veriam novamente e o outro beijo não tinha valido. Angélica escondeu novamente o caderno e deixou que Antonieta entrasse primeiro no salão. Ela aguardou, a respiração presa, andando de um lado a outro antes de estar pronta. Pela contagem, faltava menos de dez minutos para entrarem. Sabia que seriam pontuais. Não importava o que tivesse acontecido, eles tinham de ser pontuais. Porque quando aquela festa acabasse e as câmeras de segurança fossem checadas, ou até mesmo quando os homens acordassem, todos saberiam.
Ela ajeitou seus cachos enormes e entrou, sem pestanejar. Andou vagarosamente até a mesa e sentou-se. O olhar de Henrique era pura fúria, mas sua voz saiu controlada.
— Por que diabos demorou tanto? Teve uma diarreia?
— Quase isso. Me desculpe. Eu não estava bem. Prometo que não sairei do seu lado o restante da festa.
— Melhor que não saía mesmo.
Ela tomou um gole do champanhe, quando o homem no palco anunciou:
— Agora, a última mercadoria. Essa é a surpresa que estávamos guardando para o final. Podem sair e tragam-na.
Mulheres nas casas dos 20 anos se retiraram do palco. Algumas delas estavam acorrentadas, outras amordaçadas. Eram mulheres diferentes, negras, brancas, de diversos países do mundo, de corpo e altura distintos, mas todas carregavam o mesmo olhar de medo e a mesma aparência de dor e sofrimento. Os dedos da agente formigaram para poder pegar algum objeto e libertá-las daquela prisão. Isso, claro, depois de enfiar uma faca na jugular do homem ao seu lado para quem ela sorria constantemente.
Um homem entrou no palco trazendo uma mulher consigo. Ela tinha cabelos longos e preto. Estava de cabeça abaixada. Suas roupas estavam ensanguentadas e rasgadas. Sua pele era branca, mas apresentava-se como se tivesse saído de um esgoto. Ou do inferno, como a agente pensava ser aquele lugar. Devagar, ela levantou a cabeça e... Seus olhos marejaram. Seu peito afundou em pura agonia e desespero. Henrique sorriu ainda mais ao vê-la e Angélica parou de respirar quando reconheceu aqueles olhos profundamente castanhos.
— Apresento a vocês, Elizabeth Reis, também conhecida como Agente 13 na Agência Nacional de Investigação Secreta. Ou ANISE como preferirem.
O mundo desmoronou para a agente quando Elizabeth olhou diretamente em seus olhos. Uma lágrima escorreu lentamente pela bochecha da agente e ela não sabia se poderia controlar seu desespero para ajudá-la.
Não era apenas uma colega de trabalho ou uma pessoa com quem ela havia estudado na escola e convivia razoavelmente bem durante anos: aquela era a mulher que havia partido seu coração e ainda era dona de todos os pedaços restantes.
Antonieta, que estava sentada ao seu lado, segurou sua mão e apertou-a. Ela abaixou a cabeça por um segundo, limpando seu rosto. Os olhos de Henrique brilhavam demais para notar qualquer coisa.— Você está bem?A jovem sussurrou. Ela negou com a cabeça.— Não.— Quer sair daqui?— Não posso. Não agora.Olhou novamente para o palco, onde se encontrava o novo item de poder que logo seria vendido como um pedaço de carne. Em seu olhar jazia sofrimento, dor e arrependimento. Ela não tinha ideia do que havia acontecido para ela ter ido parar ali. E seu maior medo era que todo o plano tivesse ido por água abaixo e eles não viessem. Que ninguém entraria pela porta principal nos próximos cinco minutos. E isso não a apavorava pela ideia de morrer, mas de não poder salvá-la.— Você a conhece?Antonieta sussurrou novamente em seu ouvido. Ela inclinou-se com cuidado.— Essa é a garota de quem te falei.— Essa? Sério?Assentiu, ten
Major Albuquerque ainda usava o vestido da noite anterior, quando se sentou na cafeteria do hospital. Antonieta ficara em silêncio.— Então, o que vai fazer?— Eu não sei. Pela primeira vez em anos, eu não tenho um lugar pra ir. Essa é a sensação?— De que?— De liberdade?Ela não se lembrava. Deste o instante em que conseguiu entrar pra família Bitencourt, seus dias foram vigiados por meia dúzia de seguranças atentos e nada discretos. Seus únicos momentos sozinha era durante o banho. Quando ela não tinha a companhia das mãos nojentas passeando por seu corpo. O pensamento a fez desejar um banho com a maior das urgências.— Acho que sim.— Como você se sente? Foram meses longos.— Ainda não tive tempo pra assimilar tudo o que aconteceu.Ela assentiu. Um garçom-robô trouxe os pedidos e a agente ficou em silêncio, encarando aquele copo de café fumegando. Ela não era nenhuma viciada em cafeína ou coisa do tipo, mas uma parte de
Eram quatro da manhã quando gritos despertaram a agente. Mas não era o tipo de grito que a faria pôr a mão embaixo do travesseiro para pegar sua arma. Era um grito de fome. Ou talvez fralda suja.Ela caminhou com os olhos entre abertos. Tateou a parede para chegar ao quarto ao lado do seu, onde um bercinho tinha sido montado de última hora.— Oi coisinha. O que você tem?Ela tinha zero experiência com crianças, mas havia assistido algumas aulas educacionais sobre o comportamento de bebês. Uma forma de traumatizar as crianças para que evitasse uma gravidez precoce. A vida de mãe devia ter assustado a agente, mas sempre lhe fascinou. Contudo, não achava que poderia fazer aquilo sozinha.Com a ajuda de um banco de doação de leite, ela pôde alimentar a pequena, que parou de chorar depois que se alimentara. De anti mão, a agente trocou sua fralda e deixou-a bem limpinha.— Talvez a gente se dê bem, coisinha.De olhos vidrados, a pequena Christina
A solução veio rápido a mente da espiã. Ela instruiu Elizabeth a vestir as roupas de enfermeiro do homem que encontrava-se ao chão, algemado do lado da cama. Por sorte o uniforme não ficou folgado demais para parecer suspeito. E ela pôs a roupa de hospital, tendo em vista que não sairia andando dali com aquele ferimento a vista. O lençol deixaria óbvio que tinha algo de errado. A agente 13 buscou uma cadeira de rodas que havia sido deixada por algum enfermeiro no corredor e fez a agente 12 sentar-se. A contragosto, ela obedeceu, sabendo que era a única maneira de saírem despercebidas. Elizabeth verificou se estava tudo limpo no corredor e saiu de fininho. Caminhou devagar, cabeça baixa, ainda com dores no corpo. A Major fingiu estar adormecida para não ser reconhecida.Elas foram até o elevador de serviço. Com discrição, Elizabeth cumprimentou alguns médicos e funcionários que passavam, que não estranharam nem o uniforme e muito menos a paciente. Ninguém reconheceu-a ou
O peito da Capitão Elizabeth Reis descia e subia em ritmo frenético, depois de encarar, mais uma vez, a morte. A Major ria, incrédula que tinha dado certo.— Eu sempre quis fazer isso! Sempre deu certo nos filmes.— Isso não é um filme, Major. Estamos lutando por nossas vidas!— Desculpe, mas escapamos, não foi?— Por pura sorte!A Major suspirou. A adrenalina correndo em alta velocidade em sua veia, e o pé indo cada vez fundo no acelerador.— Mantenha a calma agente. Estamos bem e viva.— Não graças a você.— Oh, não?Elizabeth ficou em silêncio. A agente sacudiu a cabeça e ajeitou seu corpo no banco.— Eu não sei porque acredito que alguma coisa possa ser diferente. Que por algum motivo, o final não será o mesmo.— Eu não sou a mesma garota. Fiz besteira, mas crescemos. Me desculpe por isso. Só estou assustada.— Depois ainda perguntam porque nunca trabalhamos juntas.— Eu já entendi Ma
A agente 12 se esforçava para manter os olhos abertos, mas com a mesma velocidade que ela tinha para chegar em um alvo, aquela dor tinha para atingi-la violentamente. Elizabeth se virou para o homem, que não sabia o que fazer com os corpos e os clientes que surgiram em sua loja.— Ei, você, chame uma ambulância, rápido!— Não...— Não uma ova! Você não vai protestar quanto a isso.— Me escute... Por favor. Ele disse que tem um infiltrado na agência. Se... Se descobrem, matam nós duas.Sua voz era falha, mas ela se esforçava para ser clara e enfática no que dizia.— Não temos escolha, Major.— Temos sim. Tem um lugar... Nunca vão nos achar.— Você foi baleada!— Lá podemos cuidar disso. Por favor. Não podemos ir para o hospital.— Lá vai estar cercado de gente nossa, não vão tentar nada.— Você acha mesmo? Assim que a coisa esfriar... Na calada da noite, eles invadem o hospital que ninguém irá descobrir. Somente.
A Major não sentia qualquer tipo de orgulho por ser filha de quem era. Alexander já tinha sido um bom homem, mas a morte de sua esposa o transformou, trazendo para si, o que poderia ter de pior no ser humano. E desde que ele deixou sua criação, tentando lhe forçar a assumir uma responsabilidade que não condizia com seu caráter, ela parou de sentir algo por ele. Mesmo passado mais de uma década, as lembranças ainda eram tão frescas quanto o cheiro do mar que elas acabaram de inalar.— Papai, o que houve? Por que o senhor não fala comigo?Ela havia acabado de chegar da escola e, depois de largar a mochila na sala, se inclinou para beijar o rosto de seu pai que desviou, irritado.— Estou cansado de lidar com tudo isso. Preciso de algum tempo sozinho.— Mas o senhor passa uma boa parte do dia sozinho. Eu fico na escola, depois vou pro curso e pras aulas de Capoeira, só chego de noitezinha.Ele permaneceu com o corpo parado, inclinado para frente, os o
Elizabeth queria perguntar sobre o que ela estava falando, sacudir-lhe os ombros e dizer que elas ficariam bem, que tudo terminaria bem. Mas ela não tinha como ter certeza disso. E pior, sentia que as palavras da Major não eram em vão e que ela tentava lhe preparar para alguma coisa. Para o quê? Esperava que não fosse para o que suas palavras davam a entender. Ela não estava pronta... Ainda tinha que aproveitar mais algum tempo com ela. Precisava disso e apenas nas últimas horas descobrira. Com um suspiro pesado, ela voltou a cozinha, se perguntando o que seria das próximas horas.Depois do jantar improvisado, a Major permaneceu sentada no sofá, sem parar de encarar o mar revolto. A lua estava cheia e iluminava as águas cristalinas como uma luz cheia de beleza e graça, impondo-se de forma que apenas o sol poderia lhe tirar dali. Elizabeth lhe fazia companhia, mas sem dizer uma palavra.O celular da Major tocou. Ela olhou para o nome escrito na tela e lágrimas brota