Início / Fantasia / Ônix / Capítulo I - O mestre das apostas
Capítulo I - O mestre das apostas

Prelúdio I - Rabiscos numa mesa.

Aquela escolha determinaria meu futuro e tive plena consciência disso. Lembro de ter pensado: “Hoje vou cometer o maior erro da minha vida. E já não era sem tempo.”

Era julho de 2002 do calendário cristão e o tédio me consumia. Estava no escritório de contabilidade no qual trabalhava. Tinha uma sala só minha. Um ano como office-boy e fui promovido para trabalhos internos no setor fiscal. Perdi o hífen. Ganhei um espetacular aumento salarial. Graças a isso, me estabilizei. Podia cuidar da minha família. E minha alma morria em silêncio...

Era o segundo escritório de contabilidade no qual trabalhava. Depois do primeiro, havia prometido nunca mais trabalhar nesse ramo novamente. Quebrei uma promessa para estar ali e logo completariam três anos.

O telefone não tocava havia quase vinte minutos. Isso era uma dádiva. Era fim de expediente. Eu rabiscava a mesa com minha lapiseira. O grafite 0.5 gravava, na superfície lisa, um dragão. Mais um.

Os dragões não eram os únicos desenhos rabiscados por mim, naquela mesa. Havia um peixe. Não um peixe qualquer. Sua cauda era uma mão. Ele era sustentado por uma planta. Não uma planta qualquer. Ela se transformava numa serpente da qual pendia uma maçã em formato de coração.

Um peixe-mão. Uma planta-serpente. Uma maçã-coração. Muitos dragões. Para mim, meus desenhos tinham profundo significado, além de trazer vida para a mesa. Eles não durariam muito, no entanto, como muitos outros antes deles.

Em minha mente, o peixe tinha cor de fogo. Uma puta ousadia, se você pensar bem. Ele, porém, não vivia na água. Uma ousadia ainda maior, se você pensar melhor. E tais ousadias seriam apagadas em breve pela mulher encarregada da limpeza do escritório.  

A faxineira não desistia de apagar meus desenhos, assim como eu não desistia de refazê-los. Nunca discutimos. Para ela, no entanto, o peixe era cinza e não cor de fogo; tenho certeza.

Minha mente estava mergulhada na ideia de um dia ser um artista de verdade e usar minha arte para alcançar quem também está em busca de mais significado para sua vida; ou em busca de brindar a algum já encontrado.

 Existem muitas pessoas enxergando apenas em cinza e parecem ter satisfação em apagar algumas de nossas partes de nós. Partes importantes.

É preciso reforçar, de quando em quando, os traços dos desenhos verdadeiramente relevantes em nossas almas.

 Mirando a imagem na mesa, senti estar tentando falar comigo mesmo. E era algo muito importante. 

Uma janela minimizada, no canto inferior do meu computador começou a piscar. Abandonei a lapiseira. Direcionei a seta, através do mouse, e cliquei sobre a janela. 

– Você tem certeza disso? – A pergunta surgiu na janela expandida, onde uma conversa acontecia. Vinha de um amigo, do outro lado da cidade, certamente preocupado com minha decisão.

– Sinto que devo fazer isso – respondi. Como estava escrevendo um livro sobre um pirata, acrescentei, teclando: – Meu coração é a única bússola que tenho, nesse grande mar da vida. Aprendi a segui-la e só me resta confiar. Com sorte, ela me levará aonde devo ir, para aprender o que devo aprender. Até mesmo se for para aprender a não me arrepender de péssimas escolhas.

– A escolha é sua, meu jovem. Mas, é trocar o certo pelo muito duvidoso. – A frase apareceu abaixo da minha, na tela do computador, em resposta quase imediata. Ele sempre me chamava de jovem, mesmo sendo mais novo, em alguns meses.

– O dinheiro aqui é bem certo, de fato. Paga minhas contas e da minha família, de fato. Isso é bem certo. Tão certo como minha infelicidade – respondi. – Estou trocando a terra firme pelas ondas bravias de um mar desconhecido para mim, bem sei. Mas, ou uso essa bússola; ou desisto dela de vez. E, sejamos sinceros, já tem muita gente sem coração no mundo. Não concorda?

A resposta foi uma carinha amarela sorrindo, um smile, apenas. Meu amigo devia me achar louco. Me respeitava, no entanto. Sua preocupação era por se importar. Seja como for, ele sabia não poder fazer muito para me fazer mudar de idéia. E não fez.

Falei com o chefe naquele dia. Em consideração ao camarada, porém, concordei em ficar até o fim do ano. Ele precisava de tempo para achar um substituto para mim. O trabalho era horrível, mas o chefe e outros funcionários eram legais. Fiz amigos ali e os visitaria, na medida do possível.

A angústia não desapareceu, porém. Não desapareceria enquanto eu não pudesse me dedicar mais a meu livro.

 Tentava, arduamente, escrever em meus momentos livres. Gastava horas, porém, indo para o escritório. Gastava muitas horas no escritório. Gastava horas para voltar para a casa, graças ao trânsito infernal, similar ao matutino. Sem mencionar o fato de chegar extremamente cansado, física e mentalmente. Quase não havia momentos livres.

Naquele dia, fui deitar angustiado. Sentia como se estivesse negligenciado meu verdadeiro dever. Algo em mim me cobrava aquilo de uma forma absurda e não sabia explicar a razão. Só sabia da necessidade de escrever. 

Mas meu amigo estava certo. Não sabia como seria meu futuro largando uma carreira promissora por um sonho. A escolha foi feita, no entanto.

Imaginei os desafios vindouros. Uma coisa é imaginá-los; outra, bem diferente, é vivenciá-los. E os vivenciaria, tinha certeza.

Com um frio na barriga, demorei a dormir e a me entregar a um sonho. O sonho, porém, não era bem um sonho e nada mais seria como era.

Interlúdio I – Fora do tempo e do espaço

Era tudo cinza ao meu redor. Várias tonalidades oscilantes. Em todas as direções. Chão e céu. Mas havia brilhos aqui e ali. Pareciam relâmpagos. Acima e abaixo. Um zunido estranho me desorientava. Mas havia estrondos, surdos e distantes, aparentemente vindos tanto de baixo como do alto. Pareciam trovões. Sentia vontade de vomitar.

Havia alguém diante de mim. Era um velho. Vestia roupas claras, embora encardidas, rasgadas e esvoaçantes, mesmo não havendo vento ali. O sobretudo parecia ter vida própria. A longa barba era tão clara quanto o cabelo, igualmente longo. O branco mais intenso, porém, cobria completamente os olhos do velho.

Ele me era familiar, de uma forma muito indefinida. O lugar não me era estranho. A sensação me deixou em estado de alerta, um tanto assustado. Não o suficiente para querer fugir dali.

Sempre fui fascinado por sonhos. Sempre tive certo controle e lucidez durante alguns. Já havia estudado projeções astrais, em teoria e prática. Algo ali era diferente, porém, de tudo já vivido por mim, de paranormal.

Depois de algum tempo, me atrevi a perguntar:

– Eu já estive aqui antes, não estive?

– O que é antes? – o velho questionou. Esboçava um sorriso.  – A ordem não importa. Não aqui. Você logo entenderá. É como um quebra-cabeça cósmico.

 A resposta não me satisfez. O velho soube e tentou me ajudar a me situar, perguntando:

– Quais são suas lembranças sobre este lugar?

– Havia um enorme peixe-dourado aqui. Mas não era apenas um peixe – falei. Parecia uma lembrança, mas não chegava a ser. Escapava da minha mente, como se eu perseguisse uma raposa por um labirinto, vendo apenas a sua cauda em cada virada. A raposa, nesse caso, era um peixe-mão e o labirinto era minha mente.

O quase peixe em minha quase lembrança era similar ao desenho feito por mim, em minha mesa no escritório de contabilidade. Na quase lembrança, porém, ele tinha cores vívidas, literalmente. A coisa toda estava viva.

Me esforcei para focar a visão e a lembrança se tornou mais nítida, assim como uma dor aguda em minha cabeça. Suportei a dor e me lembrei de estar olhando para o peixe-mão. Ele tinha quase um metro de altura.

– Suas guelras se moviam, abrindo e fechando, como sua enorme boca, em busca desesperada por algo para se manter vivo – falei. – Sua nadadeira estava fincada no espinho da planta-serpente, abaixo dele. Ele se equilibrava ali.

– Você está descrevendo o selo – o velho disse. – Lembra o que aconteceu quando se aproximou dele?

Precisei me esforçar muito para encontrar a resposta.  Era uma lembrança, mas de alguma forma, eu sabia tratar de algo que ainda aconteceria; e a simples consciência disso nublava minha mente. Uma lembrança do futuro? Não fazia sentido.

Ante o novo e doloroso esforço, consegui enxergar como terminou a cena com o peixe-mão; o tal selo.

Relatei ao velho como ele pediu e, quando contei o desfecho, meu coração descompassou. A partir de mim, houve uma ondulação no ar. A onda translúcida pareceu percorrer todo aquele cinza.

– O que foi isso? – perguntei. O coração voltando ao compasso estabilizado. 

– Você se lembrou de ter quebrado o selo e, a partir disso, o mapa foi ajustado – o velho respondeu. – Não importa se ainda vai acontecer. Sua mente acionou o mapa por se lembrar de tê-lo acionado, através do selo. É o suficiente. Já podemos usá-lo. Simples assim.

Me senti mais zonzo ainda. Não tinha nada de simples. Esfreguei as têmporas para aliviar o desconforto. O quebra-cabeça cósmico teria de esperar para fazer sentido.  Me senti irritado e, como não buscava mapa algum, perguntei:

– Que lugar é este?

– Que lugar não é este? Seria a pergunta mais apropriada – o velho rebateu. Sua voz era rouca e profunda. – Está fora do espaço. E do tempo, devo acrescentar.

– Você é Deus? – Não pude evitar a pergunta e fiz uma careta, já arrependido de minha ingenuidade, antes mesmo de ver o esboço de um novo sorriso esticar os lábios dele.

– Você sabe quem eu sou – ele respondeu. – Só não sabe que sabe. Ainda. Mas, com um tantinho de esforço, vai lembrar.

– Holdur – respondi, sem saber como sabia. Ele sorriu. E continuei: – Mas não é seu real nome. É um apelido, tirado da mitologia nórdica. 

– Qual nome é real? – ele provocou, bufando um riso. – Esse me serve. Por ele sou, fui e serei conhecido por muitos; incluindo você.

– De onde lhe conheço? – perguntei, tentando ser mais específico.

– De quando? Seria a pergunta mais apropriada.

­– Isso é um sonho – afirmei, mirando o nada. – Estava acordado há pouco; tenho quase certeza.

– Ou está invertendo as coisas.

O velho pareceu esperar minha compreensão sobre tudo aquilo. Ao entender ser cedo demais para eu entender, Holdur deu alguns passos, aparentemente a esmo. Parou e esticou o braço direito na minha direção; a palma virada para baixo durante um momento.

Ao virar a palma da mão para cima, ergueu o braço e vi uma esfera emergir do chão, feito uma imensa gota de água se formando ao contrário. A esfera respondia aos movimentos do velho e se destacou do todo abaixo de nós.

Holdur moveu os dois braços, fazendo um círculo no ar, enquanto a esfera flutuava ao nosso redor. Ele parou de se mover por um instante. Os braços abertos. A esfera estacionou diante dele, entre nós, na altura de seu peito. 

Fiquei em silêncio. Ele não:

 – Este lugar guarda todos os mapas para todos os tesouros, de todas as almas. E esse será seu ponto de partida nesta caçada. 

Vi, dentro da esfera, uma cópia miniatura de uma parte específica do céu existente abaixo de nós. A pequena parte brilhava dentro da esfera numa sequência exata, em sincronia com a sua versão ampliada, ainda imersa no todo sob nossos pés.

O chão parecia uma fina camada de gelo, embora não frio, a nos separar do céu abaixo. As nuvens, na parte inferior, acendiam e apagavam numa sequência nada aleatória. Prestando bastante atenção, era possível sentir, mais do que ver, as linhas finas nas quais os brilhos aconteciam. Cada linha numa tonalidade de infinitas cores. O cinza não era tão cinza, em verdade. As oscilações frequentes, nas cores do prisma, davam aquela ilusão. As linhas corriam em várias direções e, em alguns locais, as explosões surdas aconteciam.

Aquele lugar era um imenso mapa e tinha realmente reagido à minha lembrança de quebrar o selo vivo.  Fiquei muito assustado e sem saber a razão.

Num sussurro rouco, o velho falou:

– Vou lhe contar uma história. Se prestar atenção, tudo fará sentido. Será tão revelador quanto divertido.

 Holdur não esperou qualquer reação minha e moveu os braços com velocidade e vigor, levando as palmas das mãos em direção à esfera translúcida diante dele.

 O choque gerou uma explosão. Tudo ao redor desapareceu num branco dolorosamente intenso. Não adiantava fechar os olhos. Eu não tinha mais olhos ou forma, aliás. Estava lá, mas não estava. Apenas presenciava.

A voz rouca de Holdur falava direto à minha mente. As palavras eram sobre um homem ajoelhado, prestes a morrer.

 A cada palavra dita pelo velho, um cenário era construído naquele branco intenso da explosão; como tinta viva jogada numa tela etérea tridimensional.

As imagens estavam um pouco borradas, mas era possível ver tochas iluminando o lugar. A inquietação das chamas fazia a sombra do homem no centro da cena dançar na madeira sob seus joelhos. Havia outros ao seu redor, logo percebi.

A voz do velho continuou esparramando sons, também borrados, como as cores fortes das imagens.

Minha mente tentou, em vão, entender como tudo aquilo estava relacionado a mim e o que era tudo aquilo. Só entenderia se prestasse atenção, entendi. Tentei dissolver o medo de me desfazer. Esperei a tal história fazer sentido no final, sem fazer ideia do quanto iria muito além dessa expectativa.

Calei as perguntas de minha mente e os borrões se transformaram num mundo extremamente nítido, em imagens, sensações e sons; como jamais percebidos antes.

Era uma taverna e a voz de Holdur mantinha a cena viva.

Capítulo I – O mestre das apostas

O dia ainda não havia nascido na Taverna do Coelho Caolho, imersa em sombras, silêncio e expectativa. As poucas tochas, ainda acesas, tremeluziam em seus últimos momentos de fogo e iluminavam a face de um homem ajoelhado, tremendo em seus últimos momentos de vida.

Era o primeiro mês do ano 524 do Novo Tempo. Seria o ano 2536 do antigo calendário cristão, se tal calendário não tivesse sido abandonado e esquecido, juntamente com a história passada da humanidade e toda tecnologia moderna. Nessa civilização neomedieval, havia muitas tavernas, frequentadas por muitos piratas. A taverna do Coelho-Caolho, no entanto, merecia atenção especial.

Um homem, amarrado e de joelhos no chão, tinha uma espada encostada em sua garganta. Quem o ameaçava era o velho mestre das apostas, com sérios problemas mentais e linguísticos.

O homem ajoelhado ofegava sob os olhos arregalados do velho. Ao redor dos dois homens no centro, havia alguns bêbados debruçados sobre mesas manchadas de vinho. Havia um taverneiro atrás do balcão. A atendente estava em pé, entre duas mesas, tão inerte quanto a rosa branca, pousada sobre um barril, não muito distante dela.

Como a rosa, ninguém fazia menção de tentar salvar tal homem ameaçado.

A lâmina fria do mestre das apostas ergueu a face do coitado que, de qualquer forma, miraria o alto em busca de um santo qualquer. Num último ato de desespero, o ameaçado rompeu o silêncio com uma prece. Não acreditava em nenhum deus. Naquela situação, no entanto, passaria a acreditar em qualquer um que atendesse sua prece, feita às pressas.

Bastaram poucas palavras santas e um brilho iluminou o rosto do desesperado, emoldurado pelo cabelo ainda mais claro, em virtude da luz. Era o dia nascendo. Os primeiros raios do Sol invadiam a taverna através das frestas na madeira e refletiam da lâmina fria do mestre das apostas para a face do coitado. Mas, o simples nascer do dia não impediria o morrer do homem.

Ciente de sua situação, o desesperado retomou sua reza:

– Ave Maria que estais no céu, livrai-me do mal e dos pecadores, assim na terra como no bendito é o fruto do amém em vosso ventre!

Estava enfiado em trapos. As botas não tinham pontas e seus dedos sujos estavam à mostra, tocando o piso de madeira. Sua barba era tão mal feita quanto sua oração, contornando o rosto e se misturando ao cabelo emaranhado, em tom de castanho claro. A falta de bigode dava a ele um ar juvenil. Os olhos tinham inocência de quem nunca tivera grande comprometimento com alguma coisa, a ponto de ser privado da liberdade de andarilho festeiro.

O velho mestre das apostas não demonstrava piedade. Esbaforido, argumentou:  

– Vô ti matá, seu cabra sem vergonha! Vendeu amuleto da sorte pra todo mundo dessas terra e todo mundo ganhô as aposta de mim!

O longo bigode trançado do velho balançava freneticamente quando ele falava, tão branco como o cabelo fino, escorrendo por suas costas encurvadas. Era calvo no topo da cabeça. Seus braços, expostos graças à camiseta curta, eram quase tão desprovidos de carne quanto o punho de sua espada de lâmina afiada. No bolso da camiseta, ele tinha um baralho e metade da primeira carta estava à mostra. Era um ás de copas. E ele não tinha outro coração. Numa tanga, amarrada acima da calça e abaixo da pança proeminente e discrepante no corpo magrelo, havia o naipe de paus bordado. Era um aviso sobre como o sexo era, para ele, um mero jogo de interesses; embora estivesse há décadas fora dessas partidas. Nos calçados, havia naipes de espadas, bem costurados, para sempre se lembrar de levar uma arma aonde quer que fosse. Enfiada numa faixa amarrada na cabeça, havia uma carta, também escolhida de forma proposital. Era um sete de ouros. Se o arco-íris tinha sete cores, e levava a um pote de ouro, aquela carta era a melhor escolha, havia lhe ensinado seu finado pai. Os conselhos do pai seguiam todos nessa linha. Chegou a dizer, certa vez:

Quando alguém lhe perguntar o que você tem na cabeça, filho, aponte o ouro. Só isso importa. Aposte a vida de um parente, se precisar.

Ironicamente, o jovem, ainda aspirante a mestre das apostas, fez exatamente isso. E os conselhos de seu pai sobre os naipes terminaram ali, assim como sua vida.

Antes de atingir o auge de suas vitórias, o mestre das apostas havia sofrido derrotas. Agora voltaram a superar as vitórias, numa frequência perigosa. Não querendo admitir sua falta de bom senso, cada vez mais escasso, resolveu culpar o vendedor de amuletos da sorte.

 – Tô pobre, fudido e quase falido por sua culpa, seu fêdaputa! Só me restô cem moeda, seu peste sem mãe! – o velho esbravejou, indignado com a pobreza iminente.

A moeda do rei Valdrick, chamada de valois, já havia se tornado a única em todos os reinos, a partir do tratado assinado no ano anterior. E quando alguém dizia ter uma moeda, estava se referindo a uma moeda de bronze, equivalente a um valois. O mestre, em verdade, não tinha cem moedas em sua bolsinha de couro. Tinha dez moedas de prata, equivalentes a cem valois. Enquanto uma moeda de prata valia dez valois, uma de ouro valia cem.

O mestre poderia ter uma moeda de ouro, ao invés de dez de prata, mas, assim como possuir apenas moedas de bronze fazia o velho se sentir mais perto da pobreza, possuir apenas uma moeda produziria a mesma sensação, mesmo sendo uma de ouro. Precisava ouvir o tilintar dos metais dentro duma bolsinha de couro pra se sentir no jogo da vida. Cada vez mais, porém, tinha menos e, enfurecido, continuou a ameaçar o coitado:

– Cê vai morrê é agora! E num dianta tentá fugi, caus de quê, tenho lá fora mais de dez capanga qui pega pra capá. Seje homi, disgramado! Num chora não! Vai aprendê a não mexê com o mestre das aposta!

– Você disse, mestre das apostas? – perguntou uma voz arrastada.

Por um instante, a voz pareceu vir do além. Não pertencia a nenhum dos homens bêbados, sentados às mesas ou escorados nas paredes ao redor. Não pertencia, ainda, ao taverneiro, à atendente, ao mestre das apostas e nem mesmo à rosa; assim como não pertencia ao homem ameaçado, ainda rezando ajoelhado. Era uma voz levemente arrastada, somente ouvida graças ao silêncio feito pelos presentes, atentos e à espera da execução. Dificilmente alguém ali teria descoberto de onde haviam vindo as palavras. Um movimento atrás dos barris de vinho vazios, porém, provou não se tratar de uma voz do além e denunciou sua origem. Nem mesmo a atendente, atenta a tudo, se lembrava do pirata caído ali atrás.

O mestre magrelo das apostas avaliou, de cima a baixo, o pirata. Bastante desconfiado, quis saber:

– Sô eu mesmo. Quem perguntô?

O pirata se levantava lentamente, enquanto bebia um último gole de rum duma garrafa; como se a embriaguez, notória, não fosse suficiente.

Aos olhos do mestre, o pirata não pareceu ameaçador. Usava uma bandana preta. O cabelo solto era ornado com pequenos crânios de prata e emoldurava a cara suja. O cavanhaque tornava as caretas do pirata mais evidentes, quando um músculo ou outro era esticado. Trajava um sobretudo e um chapéu de três pontas.  A pedra negra pendurada no pescoço dele balançou e o pirata gentilmente a estabilizou, embora ninguém tenha reparado nesse gesto. A única coisa a quase chamar a atenção do mestre das apostas foi a fivela de prata do cinto do tal pirata: um crânio alado. Onde ele teria ouvido falar disso antes? Teria? Mas, a mente do mestre já dava sinais de falhar desde o seu nascimento e, recentemente, já quase não se lembrava de fatos recentes, ainda menos de fatos ocorridos um ano atrás.

O esfarrapado homem ajoelhado, porém, abriu um sorriso largo e exclamou:

– Ônix Pedra-Negra!

O pirata ergueu mão, como se acusasse ser ele mesmo. Imediatamente, porém, voltou a procurar sua garrafa favorita de rum, largando a vazia de lado. Não dava muita atenção aos dois homens no centro da taverna; e a mais ninguém ali, para ser sincero.

O velho mestre não relacionou o nome a algum feito e como não era dotado de paciência, perguntou:

– O que cê qué cumigo, Pirata Praga-Negra? –Esbugalhou momentaneamente os olhos, como se precisasse fazer isso para sua visão alcançar o outro lado da taverna. Mas, por fim, decidiu não se preocupar com o pirata e avisou: – Tô ocupado. – E voltou a mirar o homem ajoelhado.

– Quero alertá-lo – disse Ônix Pedra-Negra, mesmo assim.  Soergueu as sobrancelhas ao avaliar, aliviado, a garrafa recém encontrada. Sorrindo, completou: – Não vou lhe culpar, porém, se preferir terminar os assuntos em andamento.

O homem ajoelhado demonstrou decepção. O mestre das apostas deixou escapar uma risadinha de prazer, ao erguer sua espada. A lâmina brilhou, pronta para descer na nuca, que nunca antes havia suado tanto como naquele instante.

– Mas há quem diga não merecer o título de mestre das apostas. – Ônix deixou escapar, antes de abrir a nova garrafa de rum.

O mestre das apostas espichou o pescoço, colocando a cabeça entre os braços erguidos, para enxergar o pirata que, ao conseguir a atenção do abestalhado homem armado, acabou deixando o gole de rum da nova garrafa para depois, e continuou dizendo:

– Dizem não merecer tal título, pois, cada vez mais, anda apostando menos. Sou até capaz de apostar quarenta moedas que você não aposta sessenta moedas em meu jogo favorito.

Incrédulo, o mestre perguntou:

– Cê apostô que eu num vô apostá? – Baixava lentamente a espada. A mente tentando processar, de forma ainda mais lenta, as palavras do pirata. E Ônix continuou:

 – Exato. Então? Devo-lhe quarenta moedas ou você me deve? 

A conclusão da mente perturbada do mestre das apostas, foi: “Se eu num apostá, eu perdo quarenta moeda! Mas preu ganhá, basta eu apostá. Pirata idiota!”

Sorrindo, o velho avisou:

– Cê perdeu, Prega-Negra! Vô apostá. Agora mi dá minhas quarenta!

– Lhe darei as quarenta moedas, mas, espere – disse o pirata, com um breve sorriso no canto esquerdo da boca, quase tão imperceptível como suas duas espadas, penduradas na cintura, não completamente cobertas por seu sobretudo. – Afinal, se me vencer em meu jogo, receberá, de uma só vez, cem moedas. As quarenta, da primeira aposta já vencida por ti, e mais sessenta, da segunda aposta, caso venha a vencer.

Os olhos do mestre brilharam. Ônix Pedra-Negra notou e continuou:

– Somando com as cem moedas que disse ter, ficará, então, com duzentas. Enquanto, se eu vencer, recebo apenas vinte moedas, pois lhe devo quarenta das sessenta que nem sei se vou ganhar.

O mestre estava confuso. Da forma como o pirata colocava, porém, lhe pareceu uma boa notícia. Ônix realmente parecia arrependido ao dizer:

– Só agora percebo minha falta de esperteza. Mas somos homens de palavra e, por isso, vou até o fim.

O mestre das apostas, àquela altura, nem tinha mais pressa em matar o homem ajoelhado e aliviado; assim como ninguém mais ali tinha pressa em assistir a morte do coitado.

 O velho apostador podia não se lembrar, mas todos os outros ali conheciam a fama de Ônix Pedra-Negra. Era o suficiente para esperarem por uma diversão ainda maior. Mortes, eles viam todos os dias. O pirata em ação, não.

Naquele dia, o mestre das apostas acordou disposto a mudar sua sorte, acabando com aquele a quem julgava ser a causa de sua maré de azar. E tudo indicava o fim desta. Isso, no entanto, não resultaria no perdão para o homem/causa de sua má fase. O velho apenas se sentiria menos desesperado com boas moedas no bolso e, assim, poderia se ater a pequenos detalhes da morte do coitado e se divertir por algumas horas, ao se lembrar deles. Sua memória era claudicante e não duraria muito, de qualquer forma.

Uma súbita pontada de dúvida, porém, atravessou a mente lenta do mestre. Somente naquele momento notara algo deveras importante: ter aceitado apostar num jogo até então não revelado. A dúvida levou o sorriso e trouxe uma inquietação desconcertante. E, ressabiado, o velho perguntou:

– Má qualé seu jogo mais favorito, pirata?  

Um breve sorriso despontou novamente no canto esquerdo da boca de Ônix. Ele sentia a expectativa refletida em todos os olhares ao seu redor. Sabia o quanto era admirado pelos bêbados ali. Isso, no entanto, não o deixava nervoso; pelo contrário. Ele tinha um nome pelo qual zelar e não decepcionaria seus admiradores. Até aquele dia, brindavam ao maior feito do pirata Pedra-Negra...

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo