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Capítulo II - O príncipe

Capítulo II – O príncipe

Era uma noite de cerimônias e o rei Ulysses de Valdrick tinha muitos visitantes importantes em seu castelo. Muitos espetáculos seriam apresentados, em comemoração ao tratado assinado. O mais esperado deles era o enforcamento de um pirata, devidamente aprisionado numa das celas. Tal morte estava marcada para a manhã seguinte.

O ano era 523 do Novo Tempo. Um ano antes do encontro de Ônix com o mestre das apostas.

O Rei Valdrick estava sentado em seu trono, no salão real, lotado de nobres. Ele tinha cabelo longo e grisalho. A barba, bem aparada, também era cinza, em concordância com a prata da armadura e coroa; escolhidas para a ocasião. A única cor estava em sua capa, de um azul escuro.

No trono, à esquerda do rei, estava a rainha.  Trajava um vestido verde escuro, adornado com prata e pérolas. A coroa, como a do rei, era composta por finas linhas do claro metal, entrelaçadas para exibir desenhos exuberantes acima da linha da cabeça. O cabelo dela era castanho, evidenciando a grande diferença de idade em relação ao marido. Os braços desnudos da rainha eram ornados com braceletes, inspirados nas coroas.

Ao lado de cada soberano havia um soldado. Vestiam armaduras reluzentes e capas pretas. As indumentárias dos soldados da Elite Especial. Os elmos eram bem fechados, havendo aberturas apenas na linha dos olhos, através das quais espiavam o mundo. 

O terceiro trono, à direita do rei, estava vazio. Era destinado ao príncipe Aleck de Valdrick.

O músico principal, num patamar abaixo dos tronos, tocava uma última música introdutória, depois da qual o rei não poderia mais protelar seu pronunciamento inicial e, consequentemente, a abertura da celebração.

 Os nobres convidados, dois patamares abaixo dos tronos, bebericavam em suas taças refinadas. O príncipe Aleck ocuparia seu lugar? O rei se perguntou, olhando para o trono vazio. Seu olhar pousou ali e perdeu-se. A recordação do encontro com o filho, no fim da tarde, veio numa fração de segundo.

A conversa se tornou uma discussão quando o filho afirmou:

– Não estarei presente na celebração desta noite, meu pai.

– Por quê? Me diga, Aleck, por que insiste em ignorar seu real papel? – perguntou o rei. Estavam na torre mais alta do castelo.

– E qual é meu papel? – o príncipe encarou o pai.

– Ser um rei. Para início de conversa – respondeu o mais velho, com o pesar dos anos vividos a temperar suas palavras. O longo cabelo grisalho estava solto, e balançava ao vento. O rei afastou a pesada capa, passou a mão pela curta barba acinzentada e continuou: – Meu tempo está no fim. Ele se põe no oeste da minha existência. O seu está por vir. O povo espera por ti.

– E por que teme a noite, meu pai? – perguntou o jovem príncipe, entristecido. Não tinha pêlos no rosto de pele clara.  O cabelo negro estava muito bem preso numa trança longa, descendo pelas costas. Tinha o olhar da mãe. Trajava uma simples bata branca e calças escuras. Presa ao cinto estava sua estimada espada leve. – Por que cada um não pode lançar mão de uma tocha e iluminar o próprio caminho?

– Eles não estão prontos para isso, meu filho – afirmou o velho. A certeza pareceu amarga na própria língua. Mas acreditava nela.

– Estão mais prontos do que eu para ser um rei! – retrucou Aleck de Valdrick. A convicção soberana do filho teria feito o velho pai rir, se o rei não houvesse abdicado de tal habilidade há tempos. Deixou o filho continuar o desabafo: – E se não estou pronto para governar um reino, quem dirá ser a luz de toda a humanidade!

O semblante de Ulysses endureceu e ele perguntou:

– Quer negar seu destino?

– Não posso ser a reencarnação de Dáverus – Aleck não conseguia aceitar a responsabilidade de ser um deus, adorado por milhares de pessoas.

O velho Valdrick, mais uma vez, afirmou:

– A profecia é exata. 

Todos conheciam a profecia. Até quem não acreditava nela, como Aleck.

“Dáverus renascerá após trezentos anos de repouso. Filho de Ulysses de Valdrick, o maior de todos os reis daqueles dias. Em seu aniversário de vigésimo sétimo ano, vejo o anel de cristal em seu dedo. Suas palavras eu ouço. Sua vida será repleta de dores e alegrias. Em sua alma, muito peso. Terá poder para salvar a humanidade de um fim pavoroso. Quando o povo estiver prestes a desistir de acreditar, ficará, então, surpreso. Dáverus regressará...”

Aleck forçou um riso nervoso e falou:

– Tal profecia foi repetida através dos séculos. Seu nome, meu pai, foi escolhido por meu avô. Não sabemos se ele acreditava no seu destino em se tornar o maior rei dessa geração, ou se ele quis fazer isso acontecer.

– Está questionando os méritos de minhas conquistas? – O olhar do rei era duro.

O filho notou a ofensa e tentou amenizar, sem voltar atrás:

– Honestamente? A profecia de Dáverus não valida seu nome. Ela já existia antes mesmo de o senhor nascer.

Aleck mirou a paisagem. O pai lhe deu tempo para pensar. Ulysses era um incrível estrategista. Nasceu pobre. Chegar até ali nada tinha a ver com a profecia. Por muitos anos, inclusive, ocultou seu nome com o apelido de guerra. Quando mero soldado, era conhecido como o Lobo. Ulysses tinha um temperamento forte e cresceu colecionando inimigos, até torná-los submissos através de incríveis feitos. Não queria chamar atenção para si mesmo, antes do momento certo. Mas nunca duvidou ser o rei da profecia; a ser responsável pela reencarnação de um deus.

O jovem príncipe se perguntou como seria se acreditasse ser Dáverus renascido com tanta certeza quanto a de seu pai sobre o assunto. Não conseguia acreditar, porém.

O silêncio não resolveria nada e Aleck voltou a encarar o pai. O rei, no entanto, falou antes:

– Faltam ainda cinco anos, segundo a profecia, para seus poderes divinos despertarem. Até lá, é justo não se ver como um deus. Você é meu único filho, porém. Não terei outro; isso está claro para mim. E, depois de hoje, me tornarei o maior rei dessa geração.

Ulysses de Valdrick estava certo em afirmar não poder ter outro filho. Uma doença o havia tornado infértil. E, graças ao tratado proposto para aquela noite, seu poder sobre todos os povos seria insuperável.

Exasperado, Aleck questionou:

– E se eu for Dáverus reencarnado e não quiser assumir a responsabilidade de salvar a humanidade do sei-lá-o-quê de terrível que está por vir? 

– E o que gostaria de fazer de sua vida? – perguntou o velho Ulysses, deixando a experiência falar mais alto. Às vezes, para ganhar muito terreno, é preciso ceder um pouco.

O príncipe suspirou e foi sincero ao dizer, mordendo a isca:

– Encontrar um verdadeiro amor e viver de forma simples. Um dia de cada vez. Como se cada um deles fosse o último e também o primeiro. Intensamente simples. Minha espada e minha vontade construiriam meu caminho de acordo com meus verdadeiros méritos. Viver uma imensa aventura. Quero conhecer o mundo e as pessoas; dos mais variados pontos de vista. Quando encontrar meu fim, quero olhar para trás e me orgulhar. Não quero ser um deus. Quero poder morrer facilmente, para valorizar cada novo dia de vida. Só lamenta a morte quem não viveu de verdade. Quero morrer com brilho nos olhos e um sorriso nos lábios... e não com o olhar pesado e lábios inexpressivos, depois de tantos anos de sacrifícios.

  – Sim, fiz meus sacrifícios, meu filho – respondeu o velho. O olhar pesado acima de lábios inexpressivos. – Você não pode imaginar quantos. Assim como não faz idéia da realidade do mundo. Acredita ser um espadachim bom o suficiente para garantir sua vida?

– Ninguém, neste castelo ou fora dele, me derrota faz anos – o jovem príncipe disse. E era verdade.

– Evidentemente. Todos sabem quem você é. Ninguém arriscaria lhe ferir – o velho rei foi cruel, sem perceber. Há muitas formas de ferir alguém. E o orgulho de Aleck o foi, quando o pai falou: – Não sobreviveria numa luta de verdade, tenho certeza. Quanto ao amor, já está compromissado com a filha de Raguir, uma princesa encantadora, acredite. Precisa aceitar seu destino. 

Mais uma discussão foi trazida pelo pai e o filho perguntou, admirado:

– Sequer a conheço. Como espera minha aceitação?

Ulysses não respondeu, se limitando a dizer:

– Sua imaturidade, aos vinte e dois anos, me assusta, Aleck.

– Para você, meu pai, sempre serei imaturo.

– Quer me provar o contrário? Quer conquistar meu respeito? Compareça à nossa celebração hoje e não precisará se casar com a filha de Raguir. Tem minha palavra. Esse tratado é o mais importante de minha vida e é o alicerce da sua. Se comprometa a mantê-lo, supervisionando-o pessoalmente, e me darei por satisfeito. 

Dito isso, o rei Ulysses saiu, deixando o jovem príncipe Aleck com seus pensamentos.

 Era típico do velho pai. Se Aleck não comparecesse, estaria dando provas de imaturidade e, para completar, não estaria livre do casamento com a filha de Raguir. Por outro lado, se comparecesse, não estaria livre de governar aquele reino. Aquele tratado o daria poder suficiente para tomar decisões e definir o destino de toda a humanidade. Ficou enjoado só de imaginar.

Pela primeira vez, o príncipe considerou a profecia como verdade. Uma verdade metafórica, ao menos. Talvez o poder mencionado na profecia não fosse o poder de rasgar o céu, erguer montanhas, voar ou viver eternamente. Acabou descartando a ideia, no entanto.   

Aleck de Valdrick desejava simplesmente ser livre, e as opções do pai não lhe pareciam opções. Ulysses de Valdrick jamais entenderia. Nunca se casou por amor, nenhuma das duas vezes. A mãe de Aleck, falecida anos atrás, era uma ótima companheira para o rei, tanto quanto a atual. As duas haviam ajudado o rei a fortalecer alianças.

A noite caiu juntamente com lágrimas, e uma frase do pai ecoou na mente do jovem filho: “Esse tratado é o mais importante de minha vida.”; e Aleck concluiu: “Mais importante do que a felicidade de seu filho.” Resolveu, então, seguir com seu plano.

O rei Ulysses de Valdrick estava certo em sua afirmação de Aleck não poder imaginar os sacrifícios feitos pelo pai. O velho rei, por outro lado, não podia imaginar um sacrifício maior, prestes a ocorrer em sua vida.   

O rei respirou fundo, ao final da bela música executada um patamar abaixo. Em algum momento teria de justificar a ausência do príncipe. Com a desculpa certa, porém, não chegaria a ser um problema. Mas não precisava falar disso de imediato e pronunciou:

– Bem-vindos a essa celebração, nobres amigos. Fico feliz em recebê-los para comemorar o marco inicial de uma nova era para nosso reino. As novas leis já varrem a criminalidade como uma sujeira que nunca deveria ter sido tolerada. E a partir de hoje, com o tratado aqui assinado, todos vocês desfrutarão da segurança de um rei. Portanto, desfrutem também de minha diversão.

Os músicos iniciaram a música ensaiada. O rei sorriu para sua esposa e ela inclinou a cabeça. Era uma exuberante mulher, vinte anos mais nova. Ostentava um penteado extremamente trabalhado em meio à cora. O vestido salientava a beleza de seu corpo. O rei sabia o quanto era invejado por ter aquela mulher e isso lhe dava certo prazer. A rainha não esperava nada além de seu rei. Era, literalmente, uma relação de aparências.

A primeira apresentação do espetáculo escolhido para a ocasião era o bobo da corte. O artista era tido como o mais hábil malabarista de todos os reinos. Sua roupa era escura, mas havia tiras de panos coloridos e brilhantes pendurados nas extremidades do chapéu de muitas pontas, assim como ao redor dos seus joelhos, cotovelos e cintura. O rosto estava completamente coberto por uma máscara branca, sorridente.

Os nobres foram tomados por orgulho e fascínio. Os espetáculos de Valdrick exaltavam a exuberância destinada somente aos privilegiados da mais alta corte. A mente do rei, no entanto, estava absorta em pensamentos sobre o filho, alheia ao artista em cena.

Dois bastões eram girados com maestria pelo artista, de forma deslumbrante. Ulysses de Valdrick sequer notava. Aleck não foi mais visto desde a conversa ao fim da tarde. A alma do rei estava inquieta. A ausência do filho era uma forma de aceitação do casamento? O rei questionou-se. Seria melhor assim, pensou. Aquela celebração e o tratado eram importantes. O casamento acertado, no entanto, era muito mais; embora deixasse o filho pensar o contrário, para persuadi-lo a escolher a união com a princesa.

Os convidados, ao contrário do rei, sequer piscavam, entretidos com o bobo da corte. O artista havia desenrolado fitas, presas nas pontas dos bastões. Círculos e mais círculos eram desenhados no ar, pelas fitas, em cores tão vivas quanto seus movimentos. Os riscos coloridos passavam ante a face branca da máscara do artista.

O rei ainda estava absorto em seus devaneios, quando o artista, já sem seus bastões, se aproximou da rainha e lhe ofertou uma rosa. A primeira apresentação estava no fim.

A rainha sorriu e aceitou o presente. O rei se aprumou para aplaudir, enquanto o artista voltava para centro do patamar inferior ao dos soberanos e superior ao dos convidados. O bobo da corte pegou seus bastões e executou o último movimento, terminando em sincronia com a música.

A rainha inalou o perfume da rosa.

– Não! – gritou o terceiro soldado da Elite Especial, ao entrar no salão. Tarde demais. A rainha tombou.

      O rei amparou sua esposa rapidamente e olhou, suplicante, para o soldado recém-chegado. Esperava uma explicação e ele não tardou em cedê-la, dizendo:

– Acabo de encontrar o artista desacordado na adega. Esse aí é um impostor. – Apontou para o homem de máscara, estático em sua posição final da apresentação. O rei entendeu o óbvio: havia alguma poção na rosa. Enfurecido, gritou:

– Vocês deixaram um assassino entrar aqui?!

– Ele pode ter entrado, meu rei, mas não vai sair – o soldado colocou o elmo e sacou a espada, se igualando aos outros dois. Os três cercavam o intruso de rosto completamente coberto pela máscara branca e sorridente.

– Está tão errado quanto seu rei – disse a voz por baixo da máscara. O sorriso congelado no falso rosto era perturbador. O homem se levantou lentamente e continuou: – Sim, vou sair daqui, e, não, não sou assassino. A rainha apenas dormirá por algumas horas e despertará com uma bela dor de cabeça. Quando seu rei a procurar à noite, para assuntos conjugais, ao menos dessa vez ela não precisará mentir, para se livrar do fardo de agradar a um velhote...

– Como ousa?! – o rei gritou. Os soldados se posicionaram para atacar.

– Como ouso vir aqui mostrar que não está a salvo em seu próprio trono? – a voz debaixo da máscara indagou. – Como ouso vir aqui lhe dar uma dose do mesmo terror imposto ao povo? Como ouso desmascará-lo?

O rei estufou o peito e proclamou:

– Tornou-se apenas mais um voluntário aos castigos listados em minhas leis para criminosos como você! O pirata, encarcerado em meu calabouço, não será enforcado sozinho amanhã! Sua ousadia será punida com a morte. Essa é a minha palavra e meu nome depende dela. Não haverá clemência!

Os soldados esperavam o comando do rei. O invasor, no entanto, foi mais rápido em responder, com entonação séria atrás do sorriso estático da máscara:

– Lamento desapontá-lo, ó rei, mas estou aqui apenas para esclarecer a seus nobres convidados o que suas mentes obtusas não são capazes de entenderem sozinhas. Estou aqui para dizer a eles como suas leis impedem o povo de ter uma vida digna, o impelindo a roubar ou trapacear. Você cria os ladrões para poder oferecer proteção aos nobres. Uma negociação fácil, dada a fragilidade dos criminosos cultivados por ti.  Estou aqui para deixar bem claro aos nobres presentes: todos nós usamos máscaras. O soberano rei Ulysses de Valdrick não é uma exceção. O que ele dá com uma mão, tira com a outra.

– Prendam-no! – o rei deu a ordem tão esperada pelos homens em armaduras reluzentes. – Quero a morte dele em praça pública pela manhã!

– Ah! Sim! A Elite Especial! – Os olhos no fundo da máscara miravam os olhos nos fundos dos elmos.  – Os três melhores soldados do rei, versados nas artes antigas de combate. É uma honra merecer tanta atenção. Em respeito ao respeito que tenho por vocês, concedo-lhes um presente: a vida.

Os soldados continuaram a aproximação, ainda mais obstinados ao combate, após evidente provocação. O mascarado continuou, no entanto, como quem estava em plena vantagem:

– A vida de cada um de vocês vale tão pouco assim, para recusarem? Sejam sensatos. Se eu perder, é seu rei quem vence. Mas, se eu vencer; são vocês quem perdem.

Os soldados sequer cogitaram a possibilidade de não lutar.

– A escolha é de vocês – o invasor insistiu. – Não transfiram a responsabilidade de seus atos para o seu rei. Não é ele quem está empunhando uma espada agora. Eu escolho a vida. Minha escolha só irá contra a de vocês se escolherem a morte.

As mãos dos soldados seguravam com firmeza suas espadas. No fundo dos elmos, se via olhares de determinação. As capas foram desprendidas das ombreiras de metal. O mascarado entendeu a resposta e segurou com firmeza os dois bastões da apresentação, agradecido por serem de metal. Como imaginou desde o início, sua provocação foi o suficiente para lutarem com todas as suas forças; como o mascarado desejava. Era o momento de provar suas perícias de combate.

Dois dos oponentes atacaram alternadamente. O homem de máscara defendeu-se. E, por um bom tempo, só conseguiu fazer isso. Quando o terceiro soldado entrou na batalha, o misterioso guerreiro encontrou dificuldade em se defender e muito mais em atacar. Conseguiu evitar ataques letais. Muitos golpes, porém, o atingiram e ele terminou desarmado. Ainda assim, conseguiu derrubar um de seus adversários.

 Os dois soldados de pé atacaram em sincronismo e o mascarado usou uma manobra arriscada, pegando o punho de uma das espadas, descendo em sua direção, para bloquear o ataque do outro soldado. Para tal, girou o corpo, ficando de frente para o soldado a ser bloqueado e de costas para o outro soldado.

O invasor teve êxito na façanha e atingiu, com a parte de trás da cabeça, o rosto do soldado às suas costas. A espada foi largada pelo homem ferido e ficou na mão do mascarado. O nariz esmagado atrás do elmo sangrou. O sangue escorreu pelo queixo do elmo. Aquele soldado não conseguiria enxergar nada por um bom tempo, em virtude das inevitáveis lágrimas.

 O mascarado tinha bloqueado o ataque do outro e contra-atacado com sucesso. Foi além, no entanto. No processo, conseguiu roubar a segunda espada, ao desferir um corte certeiro no segundo soldado, com a lâmina da primeira espada roubada por ele. O ponto vulnerável do corpo, não coberto completamente pela armadura, sangrou.

Os dois soldados, bastante feridos, não teriam impedido a fuga do mascarado. O terceiro oponente, no entanto, se colocou de pé entre ele e a saída.

O homem de armadura atacou primeiro, mas foram precisos muitos movimentos até o mascarado perder uma das espadas e o equilíbrio, parando de costas para o oponente. O invasor estava vulnerável e seu adversário não hesitou em atacar. O golpe mirava o alto da cabeça do mascarado, mas não chegou a atingi-la.

O invasor se defendeu com a espada erguida em tempo, sem olhar para trás. Segurou o pulso do oponente e girou desferindo um golpe entre as placas da armadura. O adversário se curvou e sangue jorrou no chão liso.

Os três guerreiros estavam caídos. Os convidados estavam perplexos. O rei engoliu em seco e perguntou ao melhor guerreiro já visto por ele:

 – Quem é você?

 – Eu agora poderia, em homenagem ao passado esquecido, fazer uma apresentação poética de quem sou pautada na incidência da letra V – respondeu a misteriosa voz. –Mas, a resposta verdadeiramente válida, via voz veemente, vinda veloz e vertente é: ainda não descobri. Nunca me foi permitido.  Precisei assumir vários papéis no grande palco da vida. Muitas máscaras já passaram por meu rosto. Atualmente sou um amigo de suas almas. Sou eu quem, no mar, intercepta os navios reais e tira, de todos vocês, o ouro tirado dos povos escravizados. O prazer de seus nobres é sustentado pelo suor de pessoas miseráveis. As riquezas deles, e as suas, são uma vergonha para todos vocês e cabe a mim livrá-los dela. O destino dessas riquezas? Cedo aos povos miseráveis, na esperança de dar a eles a oportunidade de descobrirem quem são. Quanto a mim, se quer mesmo um nome... pode me chamar de Ônix Pedra-Negra, o pirata.

O visitante retirou seu disfarce e revelou-se, com a audácia estampada em sua face. O pirata ostentava, também, o cinto com a fivela de prata, um crânio no centro de um par de asas, tão inesquecível como a proeza realizada para conquistá-la, um ano antes. Isso fazia dele o segundo pirata mais procurado. Tal proeza, no entanto, seria eclipsada pelo grande feito daquela noite, no castelo de Valdrick, e, um ano depois, ainda seria lembrada por bêbados da Taverna do Coelho Caolho. Não por todos, é claro. O mestre das apostas bem gostaria de ter se lembrado desses fatos.

Os piratas haviam se tornado uma praga aos olhos do rei, mas aquele o havia provocado de forma pessoal. Para ter certeza, o rei perguntou:

– Ônix Pedra-Negra? Aquele que, há um ano, invadiu a fortaleza de Agures?

– Apenas coloquei um fim às depravações daquele velho – Ônix respondeu, com falsa modéstia. – Nenhuma garotinha pobre será violentada por ele, agora. E não venha me culpar por ter perdido seu maior comerciante neste reino. Após minha invasão à fortaleza de Agures, todos os nobres estremeceram diante da ameaça, no caso, eu, e, graças a isso, assinaram o tratado de hoje. Por isso estou aqui. Detesto ser usado. – Ele fez uma pausa. Pensando melhor, acrescentou: – A menos que seja por lindas donzelas em busca de celebrar a vida, livrando-se, juntamente com suas roupas, de suas entristecidas rotinas existenciais meramente contemplativas e patéticas, proporcionadas por seus nobres. Não satisfazer suas mulheres parece ser uma habilidade inerente à alta classe, dentre outras fraquezas.

Murmúrios indignados varreram o salão. O pirata continuou, porém:

– Estou aqui para deixar duas coisas bem claras aos nobres presentes: pagaram pouco por sua segurança. E pagarão muito caro por sua estupidez!

 Os dois primeiros soldados da Elite Especial a caírem estavam bem menos feridos, em relação ao terceiro. Mas, foi esse último que se levantou e se colocou diante do pirata.

 Nos olhos de Ônix, havia admiração pela determinação daquele guerreiro, com dificuldades evidentes em se manter de pé. Um leve pesar se apoderou do pirata, quando ele esquivou de dois golpes, antes de atingir, pela derradeira vez, o oponente. Muito mais sangue foi derramado no salão de Valdrick.

Ônix esperou o adversário cair. Antes da queda, porém, o obstinado guerreiro tentou atingir a face próxima do pirata, com uma cabeçada de desespero. O golpe foi facilmente aparado por uma mão de Pedra-Negra.  Segurando firme o elmo do guerreiro, o pirata viu o admirável lutador cair de joelhos. O elmo ficou em sua mão e todos puderam ver o sangue escorrer do canto da boca do homem ferido...  a boca do príncipe.

– Aleck... – o rei balbuciou ao reconhecer, no corpo prestes a tombar, o filho.

– Eu descobri...  haveria um atentando contra o senhor. – Eram as últimas palavras do príncipe Aleck. – ... não lhe contei... queria provar ser capaz de viver com minha arte da espada... não pude viver como eu quis, meu pai... mas, ao menos, poderei morrer...

O corpo do príncipe Aleck de Valdrick tombou e, naquele dia, Ônix Pedra-Negra feriu mortalmente a alma do homem mais poderoso e odiado do mundo, ao tirar seu herdeiro. E isso ainda seria lembrado, muito tempo depois, como seu maior feito.

Muito embora Ônix não se orgulhasse do ocorrido, tão pouco se envergonhava. A escolha do jovem príncipe, afinal, em ter estado ali, empunhando uma espada, fazia dele o principal responsável por aquele desfecho; aos olhos do pirata. 

Pedra-Negra não esperou para descobrir a opinião do rei. Tratou de fugir em disparada. Saber o momento de entrar e sair de uma cena era um dos seus pontos fortes.

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