Eu ouvia um som contínuo, que parecia dentro do meu cérebro. Queria abrir os olhos, mas não conseguia. Minhas pálpebras tinham dificuldade de se movimentarem. Num grande esforço, consegui enfim abrir os olhos. A claridade me perturbou.
Várias pessoas correram na minha direção, falando coisas que eu não conseguia entender. Todos usavam roupas azuis e seus cabelos estavam cobertos por toucas do mesmo tecido.
- Chamem a doutora Adams... A encontrem, onde quer que esteja. – Uma mulher ordenou.
Comecei a me remexer e percebi que haviam várias espécies de fios conectados ao meu corpo, que me impediam de movimentar-me.
Tentei identificar onde estava, mas minha mente permanecia estranha... E eu não conseguia conectar os pensamentos direito.
- Batimentos normais... Pressão normalizada. – Ouvi uma das mulheres ao meu lado falando enquanto observava as máquinas que brilhavam e faziam sons estridentes que era como se vivessem dentro do meu cérebro.
Consegui movimentar a cabeça para o lado e identifiquei o ambiente em que estava: um hospital.
O que eu fazia num hospital? O que teria acontecido?
Uma mulher se aproximou rapidamente, fazendo com que todos se afastassem. Verificou novamente todos os meus sinais e perguntou:
- Consegue me ouvir, senhora Montez Deocca?
“Montez Deocca”... Imediatamente lembrei de Andress. E fiquei ainda mais confusa:
- Casei com Andress? – Questionei, achando estranho o som da minha própria voz.
- Andress Montez Deocca? – a voz dela foi gentil e veio acompanhada de um sorriso – Sim, ele é o seu marido.
Sorri ao lembrar de Andress. Eu talvez não conseguisse recordar do nosso casamento, mas na minha mente era vívido o momento em que ele pediu minha mão, quando eu ainda tinha 9 anos de idade, na praça de alimentação do Shopping.
- Pode me dizer como se sente, senhora Montez Deocca?
- Eu... Me sinto bem – afirmei – Mas um pouco confusa... Como se minha mente não conseguisse recordar muita coisa. Como vim parar aqui?
A doutora virou-se e falou com alguém:
- Os sinais vitais estão perfeitamente bem. Marquem todos os exames necessários e assim que estiverem prontos, quero ela num quarto.
- Pode deixar, doutora.
- Lembra de alguma coisa? – Ela quis saber.
Balancei a cabeça negativamente:
- Só lembro de Andress... Seu cheiro, seus olhos, seu toque...
- Certamente irá lembrando aos poucos de outras coisas, não se preocupe. É normal esta confusão.
- O que aconteceu?
- Você acordou de um coma profundo.
Olhei ao redor novamente, sentindo o cheiro de produtos de limpeza misturado com álcool, característico de áreas hospitalares.
- Um coma? – Parece que minha mente ficou ainda mais perturbada.
- Sei que quer saber muitas coisas, senhora Montez Deocca. E é normal. Acontece que primeiramente precisamos verificar como está de fato e se houve alguma sequela. Depois iremos focar na sua memória – ela tocou minha mão de forma carinhosa – Estarei aqui para o que precisar. Meu plantão estava acabando – sorriu – Mas estamos juntas há praticamente um ano. Então eu não perderia o seu despertar por nada neste mundo. Só irei para casa quando me certificar de que não teve nenhuma lesão ou dano permanente... Porque a forma como acordou é quase inexplicável.
Ela estava saindo quando peguei sua mão, sentindo a pele levemente ressecada:
- Como se chama?
- Sou a doutora Adams, neurocirurgiã. Mas pode me chamar de Verbena... – Com a mão livre usou um dos dedos para acariciar minha testa – Estou muito feliz por você estar de volta.
- Obrigada.
Ela retirou minha mão lentamente da sua e estava saindo quando perguntei:
- E Andress?
Pareceu um pouco hesitante ao responder:
- Como eu disse, primeiramente vamos aos exames.
- Ele... Está bem, não é mesmo?
- Sim, Andress Montez Deocca está bem. – Confirmou, fazendo com que meu coração sentisse um alívio absurdo.
Fechei os olhos, mesmo com dificuldade devido à claridade que ainda me perturbava. E na minha mente só aparecia a imagem de Andress... O rosto lisinho, os olhos claros, geralmente combinando com as roupas azuis, sua cor preferida. Os cabelos sempre limpos e bem penteados, de um castanho claro comum, mas que nele parecia especial, como se ninguém ficasse mais perfeito naquele tom. Os lábios de meu Andress eram macios e seus beijos doces e gentis.
Ainda sem muita noção de tempo, fosse por contagem de horas ou mesmo dias, me vi fazendo inúmeros exames, alguns os quais nem sabia que existiam.
A doutora Verbena Adams todos os dias vinha me ver. Logo passei a receber a visita de uma Psicóloga e outros médicos especialistas. Cada um cuidava de uma parte de mim: cérebro, corpo, órgãos internos... E parecia que tudo estava bem, exceto minha mente, que não me trazia nada além de Andress.
Fui transferida para um quarto e assim que me encontrei sozinha no ambiente, sentei-me sozinha pela primeira vez, sem necessitar de ajuda de ninguém. E não senti cansaço. Apenas orgulho de mim mesma.
Comi a primeira refeição normal e cheguei à conclusão de que eu poderia repetir, pois ainda sentia fome, o que me foi negado. “Ir aos poucos” foi a ordem da nutricionista.
Estava sentada, olhando para a parede branca gigantesca enquanto imagens começaram a tomar minha mente.
A porta se abriu e a doutora Verbena entrou, com aquele sorriso radiante de sempre.
Ela era negra, alta e os lábios carnudos sempre estavam abertos num sorriso contagiante que mostrava os dentes brancos completamente alinhados. Apesar do odor do hospital, eu conseguia sentir o cheiro dela. E não era de perfume. Era sabonete floral, com notas que lembravam jasmim. E mesmo tendo a certeza absoluta de que nunca vi aquela mulher na vida, era como se eu tivesse sentido aquele cheiro a vida inteira.
- Como se sente?
- Bem... Muito bem.
- Já se passou mais de uma semana.
Estreitei os olhos, confusa:
- Você... Não deveria ter comunicado a minha família? Onde eles estão? Por que Andress não veio me ver? O que aconteceu com ele?
Eu tinha tantas perguntas, mas nenhuma resposta.- Eu... Vou tentar lhe explicar o que houve... – ela pareceu hesitante – Mas quero que se mantenha calma, ok?- Ok... – Senti o coração acelerar, amedrontada por ter acontecido algo com Andress.- Você chegou aqui no hospital vítima de um afogamento.- Afogamento? – Respirei fundo, sentindo o corpo estremecer levemente – Eu... Não sei nadar.A doutora foi até um armário de duas portas que havia num canto e retirou de lá um pequeno plástico com algo dentro. Entregou-me e observei a aliança, retirando-a enquanto tocava o metal dourado e largo. Dentro estava escrito o meu nome: “Maria Eduarda Montez Deocca”. Pus no dedo e era muito larga para se minha. Certamente era de Andress.- Quando chegou ao hospital, estava em estado de hipóxia, com severa redução de oxigênio no cérebro. Encontramos esta aliança dentro da sua mão, que estava fechada.- Por que... Não entregaram para Andress?- Porque Andress só veio naquele dia que você deu entrada
- O senhor Alexis Hauser foi interditado pela família e se encontra numa clínica de repouso. Ao menos... Foi o que li no jornal há um tempo atrás.- Como assim? – Fiquei atordoada.- Talvez seja muita informação para pouco tempo, Maria Eduarda.- Eu sou a família dele. Meu avô só tem a mim. Como assim “alguém” o interditou? E se realmente foi feito, não foi pela “família”.- Irei intervir na ligação para seu marido.- Acha que consegue? – Fiquei esperançosa.- Falarei diretamente com a diretora do hospital. Tenho uma boa relação com ela.- Obrigada, doutora Verbena... Muito obrigada. Sei que tenho uma grande dívida com a senhora. E prometo que pagarei cada centavo. Não sei o que está acontecendo, mas garanto que minha família tem posses e...- Não quero seu dinheiro, Maria Eduarda. Sinceramente, tenho o bastante e o que paguei para que ficasse internada aqui não me fará falta alguma.- Desculpe... Se a ofendi.Ela respirou fundo e voltou ao semblante tranquilo:- Está tudo bem. Assim
Parecia que ter sido ontem que aquilo tudo aconteceu. Eu sorri, sozinha, observando para fora do automóvel. Sabia que aos poucos iria lembrando de tudo.Cerca de quarenta minutos depois estávamos entrando na propriedade onde ficava a mansão Deocca, dentro de um dos mais conceituados condomínios de luxo de Noriah Norte.A casa ficava cercada de um gramado gigantesco. Não muito grande em extensão, mas extremamente luxuosa, tinha praticamente 50% vidro na sua composição, o que fazia com que durante o dia houvesse muita luz natural e à noite proporcionava uma bela visão da lua e das estrelas. Ri ao lembrar do quanto eu tinha medo de temporais e pedia a Andress que cobrisse as vidraças do quarto para evitar os relâmpagos que pareciam tomar conta do ambiente em tempestades.Andress sempre dizia que era desnecessário, que bastava eu abraçá-lo que tudo ficaria bem. Então eu me obrigava a ficar em seus braços enquanto ele alisava meus cabelos até o tempo ruim passar.O primeiro andar abrigava
Agora eu entendia porque Andress não foi me ver. E também porque Mabel não quis saber notícias. Ou mesmo meu avô. Tudo estava ficando muito claro. Parecia ser um plano... Para tirar todos do caminho.Mas... Com qual objetivo?Desci as escadas imediatamente, sentindo nojo, vergonha, raiva de mim mesma por não ter visto o que esteve na minha frente o tempo inteiro.Fernanda ainda no mesmo lugar, me esperando.- Senhora... Eu... Sinto muito.- Quanto tempo faz que Mabel saiu desta casa? – Perguntei seriamente enquanto limpava as lágrimas.- Sete meses.- E quando Ashley tomou meu lugar?- Algumas... Semanas... Depois que a senhora entrou em coma.- Quantas semanas exatamente?Fernanda abaixou o olhar, temerosa.- Por favor, Fernanda. Eu preciso saber.- Uma semana, senhora.- Preciso de um favor. – Pedi.- Qualquer coisa, senhora.- Não conte a Andress que estive aqui, por favor.- Não contarei.- Ashley está morando aqui?- Ela... Trouxe algumas coisas. E passa a maior parte do tempo ne
- Eu sempre amarei você, mamãe.Ela tocou a ponta do meu nariz com o dedo e sorriu:- Quem tem o nariz mais lindo do mundo?- Eu... – Sorri.- E os olhos?- Eu...- E... A barriga? – Me fez cócegas.- Eu... – Gargalhei.Todos os dias ela fazia aquilo comigo antes de dormir. E eu não conseguia adormecer sem que minha mãe fizesse as cócegas e aquela brincadeira que conheci desde sempre.- Só seja você, Maria. E sei que isto será o suficiente para tocar o coração de seu avô.Mordi o lábio, devastada pelo que sabia que estava acontecendo. Sim, por mais que ela sempre tivesse me preparado para aquele momento, não sabia que doeria tanto.Mamãe me abraçou com força e naquele momento eu soube que era chegada a hora de dizer adeus, o momento ensaiado ao longo dos meus nove anos.- Amo você, Maria. E sempre amarei. Que Deus sempre esteja com você. – Deu-me um beijo na ponta do nariz.Em seguida minha mãe levantou-se e tocou a campainha.- Pois não? – Ouvi a voz vinda de além, parecendo sair de
A porta atrás de mim se fechou e senti o coração acelerar e as pernas tremerem. Tinha uma sala grande ali, com tantos sofás estranhos que fiquei em dúvida novamente se aquele lugar era mesmo uma casa.A mulher me pegou pela mão, levando-me pelo meio dos sofás, até que eu chegasse nas três pessoas sentadas.— Eis a garota, senhor Hauser. — Largou minha mão, deixando-me no centro do tapete felpudo, sob o olhar inquisidor deles.Ficamos todos nos olhando um tempo, sem dizermos nada. Eu ainda segurava minha sacola branca nas mãos e aos poucos fui ficando envergonhada e escondendo minhas coisas para trás do corpo. Observei meus pés sujos no tapete bege claro e comparei meu par de sapatos gastos com os da menina que parecia ter quase a mesma idade que eu, usando sapatilhas pretas com ponteiras douradas e um pequeno saltinho.Sorri, ao lembrar do quanto pedia para minha mãe comprar sapatos iguais aos daquela menina. A meia calça branca que ela usava era impecável e sem um fio puxado, diferen
Andei vagarosamente até a minha suposta tia e peguei suas mãos, de forma carinhosa. Ela ficou confusa. Aproximei-me e cuspi para o alto, pegando na sua cara.A mulher tentou me dar uma bofetada, mas foi contida por uma mão que apareceu por trás dela:— Não se atreva a encostar um dedo na menina!Olhei para a mulher que saiu de trás de tia Maya. Não era muito alta, tinha a pele clara e o rosto redondo com belos olhos claros e cabelos pretos e lisos. Era bonita e cheirava bem.Ela aproximou-se a abaixou-se levemente, ficando na minha altura:— Olá! Eu sou Mabel. Tudo bem?Assenti, dando um passo para trás, amedrontada.A mulher limpou minha lágrima e disse com voz doce:— Vai ficar tudo bem.— Esta é Maria Eduarda, Mabel. É a filha de Rob, da qual lhe falei — Alexis explicou.— Sua neta. — Mabel olhou para o homem.— Sim, minha neta — confirmou.— Mabel, não me diga que concorda com esta palhaçada toda! — Maya disse furiosa.— Não é sobre concordar, Maya. A menina tem direitos. Ela pert
O Shopping era um lugar gigantesco, cheio de lojas e pessoas que pareciam andar em círculos, pois eu as via a cada esquina que dobrávamos. Haviam plantas vivas em vasos sem receber a luz do sol direta. E entendi o motivo pelo qual eu nunca tinha ido num lugar daqueles... Porque não tínhamos dinheiro. E sem dinheiro, não havia o que fazer naquele lugar, já que tudo estava à venda.Acontece que Mabel tinha muito dinheiro. E fomos entrando em todas as lojas que ela via roupas de crianças. E ela me deixava escolher qualquer coisa. Eu teria escolhido somente um vestido e uma sapatilha de ponteiras douradas. Mas ela não concordou e acabou levando tantas coisas que precisou dois homens para ajudar a levar.Eu estava já cansada de provar roupas e calçados quando Mabel sugeriu:— O que acham de comermos alguma coisa?— Eu acho ótimo! Fazer compras é chato — Andress disse, com cara de poucos amigos. — Muito chato.Eu ri. Também achei aquilo chato.— Concorda com ele, Maria Eduarda? — Mabel quis