Enquanto caminhavam até o carro, Harry percebeu que Esther parecia querer dizer algo, o que era estranho, pois, em todos os anos de amizade, isso nunca aconteceu. Esther era a pessoa com quem ele sempre se sentia livre para falar sobre qualquer coisa (bem, quase tudo, já que ele nunca teve coragem de confessar o que sentia além da amizade). Mas, ultimamente, as coisas entre eles pareciam diferentes, e Harry não gostava disso.
Quando decidiu perguntar o que ela estava pensando, ambos abriram a boca ao mesmo tempo, e sorriram, resmungando qualquer coisa. — Pode falar primeiro – Harry se adiantou. — Você precisa mesmo voltar ao trabalho hoje? Ele pensou em responder que sim, pois tinha muito trabalho, o que não seria mentira. Mas havia algo no olhar dela, quase uma súplica. Harry sabia que precisava estar com ela naquele momento. Talvez, assim, Esther tivesse coragem de contar o que a estava incomodando tanto. — O que você tem em mente? – Harry perguntou, observando enquanto ela mudava de posição, passando o peso de uma perna para a outra. — Estava pensando em comprarmos algo para refrescar – ela sorriu levemente. Harry se aproximou, colocou o braço ao redor do ombro dela e a guiou até o lado do passageiro. O perfume de Esther invadiu suas narinas, deixando-o quase em transe. Enquanto abria a porta e observava Esther entrar, ele se pegou pensando o quanto desejava chegar mais perto de seu pescoço, se perder naquele perfume e sentir os longos cabelos cacheados entre seus dedos. Fechou a porta, olhou para o céu e observou as pequenas nuvens que se formavam naquele dia ensolarado. Em poucos segundos, conseguiu afastar os pensamentos e deu a volta, entrando no carro. Diferente do caminho até a lanchonete, dessa vez Esther ligou o rádio e uma música calma preencheu o carro, ajudando-o a relaxar. Harry se virou para ela, que sussurrava a letra da música em um tom baixo enquanto olhava para a estrada. Ele sentiu uma vontade enorme de abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem, seja lá o que estivesse acontecendo. Logo chegaram a um mercado próximo. Esther resolveu ficar no carro enquanto Harry tentava comprar tudo rapidamente. ****************** Poucos lugares lhe davam tanta paz, e aquele era um deles. Enquanto bebiam, Harry admirava o sol da tarde, que parecia mais suave com as nuvens que começavam a se formar. — Parece que vai chover – Esther comentou, tomando um gole de sua Sprite. — Não se preocupe, ainda temos bastante tempo – ele a observou — E quando vai me contar o que está acontecendo? Harry era paciente, mas perceber que o brilho no olhar de Esther estava cada vez mais ausente o preocupava. — Não tem nada acontecendo – ela desviou o olhar, levando a lata aos lábios, como se quisesse se esconder atrás dela. — Sou seu amigo há tempo suficiente para saber que algo te incomoda. Venho percebendo isso há muito tempo, mas esperei que você viesse desabafar. Como até agora isso não aconteceu, acho que é hora de eu te confrontar. — Não tem nada acontecendo – ela desviou o olhar. Harry colocou a lata sobre o carro, posicionou-se à frente dela, aproximou-se e colocou as mãos ao redor do rosto de Esther, fazendo-a encará-lo. — Não adianta mentir para mim, estrelinha. Ela deu um pequeno sorriso ao ouvir o apelido que ele usava desde a infância. — Você não vai entender, Harry. — Tente – ele insistiu. Esther baixou o olhar, afastou as mãos dele de seu rosto e se distanciou um pouco. — Deve ser só o cansaço de organizar esse casamento. Você sabe como minha mãe é, isso está me deixando louca. Acho que ela está mais preocupada com os arranjos do que eu. Preciso de um tempo para mim, só isso. Ela falava enquanto andava de um lado para o outro, ainda evitando contato visual. Harry não era tolo. Sabia que ela estava escondendo algo, mas se Esther só quisesse contar aquilo, ele respeitaria. — Por que você não faz isso? Dessa vez, sua fala chamou a atenção dela, que ergueu o rosto, olhando-o nos olhos. — Fazer o quê? — Tire um tempo para você, longe de tudo e de todos. Organize seus pensamentos e repense se quer ou não se casar com Daniel – Harry completou. — Essa não é a minha dúvida, Harry – ela cruzou os braços. — Pode continuar se enganando, mas você não me engana. — Já conversamos sobre isso, é só a sua implicância boba com ele que te faz pensar assim. — Tudo bem – Harry ergueu as mãos em um gesto de paz, evitando uma discussão que parecia iminente. — Mas você tem que admitir que a minha ideia é boa. — Minha mãe jamais permitiria que eu viajasse a poucos meses do casamento – ela voltou a se encostar no carro, bebendo o refrigerante. Harry deu um sorriso irônico. — O que foi? – ela o encarou. — Nessas horas, sinto falta da antiga Esther, a que era ousada, rebelde, que ia contra os limites absurdos impostos pelos seus pais e, acima de tudo, amava ser livre. Harry sabia que aquilo era um golpe baixo, mas guardava aquelas palavras há muito tempo. Ele queria sua amiga de volta. Embora amasse todas as versões dela, a Esther que estava ali parecia um pássaro preso numa gaiola, nascido para voar, mas mantido próximo para que sua beleza fosse apreciada, enquanto sua liberdade era sufocada. Esther cruzou os braços, olhando-o, aparentemente ofendida. — E além de tudo, ela não tinha medo de nada nem de ninguém – Harry completou com um toque de satisfação ao ver que suas palavras surtiram efeito. — Está insinuando que sou medrosa, Harry? — Entenda como quiser – ele deu de ombros. — A vida é sua, Esther, faça o que tiver vontade. Ao terminar de falar, percebeu a mudança no olhar dela. Sabia o quanto os pais dela eram controladores e o quanto isso alterou sua personalidade. Ele temia estar certo ao pensar que Esther estava sendo pressionada a se casar com Daniel. Afinal, o mundo mudará; as mulheres eram livres para escolher seus próprios caminhos. Parecia um absurdo, mas o modo como ela o encarava o assustava. Era como se lutasse para dizer algo, mas, ao mesmo tempo tinha medo. Não fazia sentido... Eles eram amigos desde sempre. Se Esther estivesse sendo obrigada a se casar, teria contado a ele. Mas ela estava distante, sem o brilho de antes. E, de repente, ele percebeu que talvez só ele pudesse salvá-la daquela vida. — Você viria comigo? – Esther quebrou o silêncio, fazendo-o erguer as sobrancelhas, surpreso. Ele não esperava ouvir aquilo. Parecia que o destino estava a seu favor. Se viajasse com ela, poderia se aproximar e talvez entender o que realmente aconteceu nos últimos meses.— Estou precisando de umas férias mesmo – Harry respondeu com um sorriso de lado. Esther deu um grito e acabou com a distância entre eles, espremendo-o em um abraço caloroso e aconchegante. Fazia meses que ele não conseguia tirar um sorriso sincero dela, nem mesmo a via tão animada assim.— Para onde vamos? – Esther perguntou, mas, antes mesmo de ele responder, continuou: — Não importa, temos que fazer as malas – ela falou enquanto entrava no carro.— Agora? – Harry disse surpreso.— Sim, meus pais estão fora hoje; se não aproveitarmos essa oportunidade, jamais conseguiremos sair do país. Harry sorriu ao ligar o carro, com um sentimento nostálgico no peito. Fazia muito tempo que não se sentia assim.— Passaremos na sua casa primeiro? Ou eu te deixo lá e depois volto para te buscar?— Vamos fazer assim: primeiro passamos em casa; farei de tudo para arrumar a mala em tempo recorde, depois iremos para a sua casa.****************** Quando chegaram, já estava escurecendo.— E agora? Se
Quais loucuras você faria por alguém que ama? Nunca em toda a sua vida, Harry imaginou estar naquela situação. Já era tarde da noite, e mesmo assim, decidiram colocar suas malas no carro e seguir estrada. Esther não queria dar chance de alguém descobrir seu plano e atrapalhar, e Harry não ousou contradizê-la. Sentia uma energia nova subindo em seu peito e a adrenalina correndo nas veias. Por um instante, teve um vislumbre dos tempos de adolescente, quando faziam esse tipo de loucura. Ele havia esquecido como era aquela sensação e, naquele momento, se permitiu esquecer de tudo e viver o presente, com Esther ao seu lado. Após cantarem algumas músicas e dividirem uma porção de batata frita, Esther adormeceu ao seu lado, apesar de antes ter prometido com convicção que seria a melhor copiloto:“Vou ficar acordada a noite toda para te ajudar a não dormir ao volante. Já preparei várias músicas para animar e serei a melhor co-piloto dessa viagem”. Mas, assim que a quinta música começou,
Em todos aqueles anos, Harry havia conhecido várias personalidades de Esther; a atual era mais reservada, e, por conta disso, aquele simples ato o deixou surpreso e esperançoso. Foi somente quando saíram daquela tensão do casamento que ele pôde ver o vislumbre da garota pela qual ele se apaixonou. Esther estava debruçada sobre o balcão da cozinha, mexendo no notebook, quando Harry apareceu.— O que você está fazendo? – Harry perguntou.— Enviando um e-mail para minha mãe e para Daniel avisando que ficarei fora por um tempo – ela respondeu, sem ao menos tirar os olhos do notebook. Harry se serviu de café. Assim que se sentou na frente da amiga, ela empurrou um prato com ovos mexidos e torradas que estava ao seu lado.— Fiz para você.— Estou vendo vantagens nesta viagem, assim poderei aproveitar seus dotes culinários – Harry piscou, levando um pouco de ovo à boca.— São só ovos mexidos – ela deu um pequeno sorriso e, pela primeira vez desde que ele entrou naquele cômodo, levantou o
Em várias ocasiões, eles tocaram nesse assunto, mas ela nunca sequer teve coragem de confessar seus motivos. Apesar de aconselhá-la a viver sua vida, ele jamais falou para Esther se distanciar da família, mas sabia que, para ela conseguir se curar dos tormentos que a assombravam, ela precisava fazer isso. No entanto, ele não queria ser visto como o vilão daquela história, era assim que ela o veria, pois Esther estava cega demais para perceber o que acontecia ao seu redor. Então, ele decidiu esperar que ela visse tudo isso por conta própria, e aquela viagem era sua última chance. Leandro tinha razão em uma coisa: se Esther se casasse, ele precisaria se distanciar dela. Havia tomado muito de suas dores durante todos esses anos e, de alguma forma, Harry sabia que o pouco que restava da essência de Esther sumiria com aquele casamento. Ele queria poder esquecer aqueles sentimentos por ela, se apaixonar por outra pessoa e continuar sendo seu melhor amigo, para que Esther não ficasse sozi
A maneira como ela o encarava era diferente de todas as outras vezes. Seu olhar estava mais penetrante, e Harry podia jurar que havia algo naquele gesto. Um arrepio percorreu seu corpo, mas, antes de cogitar fazer qualquer aproximação, Esther se esquivou e levantou, recolhendo a bagunça que fizeram. Harry se levantou em seguida para ajudá-la. Quando fez menção de ir para a cozinha, sentiu o impacto do corpo de Esther batendo no dele. Ela parecia constrangida quando se desculpou e continuou andando.— Obrigada, mas não precisava ajudar – ela falou, abaixando a cabeça.— Imagina, eu também fiz essa bagunça – Harry disse, pegando as coisas de sua mão e jogando no lixo. Foi estranho; de repente, o clima entre eles começou a mudar, e Esther parecia mais tímida ao se aproximar. Nunca havia acontecido algo assim. Harry entendeu isso como um sinal para continuar com o seu plano inicial. Algo dentro dele dizia que isso iria dar certo, e aquele olhar de Esther sobre ele foi como uma chama
Por mais que acompanhasse Esther praticamente a vida toda, ele não podia dizer que entendia completamente o que ela sentia. Quando via tudo o que Esther passava com os pais, os problemas que ele tinha com sua própria família se tornavam sem importância. Talvez ele nem mesmo devesse chamar aquilo de problemas. Esther não merecia vivenciar isso. Ela merecia uma família acolhedora, que a amassem e, ao mesmo tempo, a apoiassem em seus sonhos, que a deixassem ser livre. Mas o maior erro de muitas pessoas é ter filhos e achar que são suas posses. A partir do momento em que se tornam mãe e pai, acreditam que têm o direito de forçar a criança a viver conforme as altas expectativas que criaram para ela. Infelizmente, não era somente Esther que passava por esse tormento. Muitas outras pessoas dão o seu máximo para receber o mínimo de afeto de outros e acabam pagando um preço alto demais no caminho, perdendo a liberdade. Harry pegou a mão de Esther tentando confortá-la. Ele não queria que a
“Dedico esse livro a todos que desejam um recomeço. Que o destino providencie uma nova chance de serem felizes”.**Prefácio** E, pela segunda vez, Harry a deixou partir. Seu coração parecia ter sido estraçalhado ao ver Esther o encarando com lágrimas descendo em seu rosto antes de afastar-se dele. Harry não conseguiu reagir. Por mais que sentisse como se o mundo aos seus pés tivesse desabado, ele não fez menção de sair do lugar enquanto ainda conseguia ver Esther se distanciando cada vez mais, até que, em um momento, não pôde mais vê-la. Sentiu como se seu coração tivesse ido com ela. Nunca havia sentido algo parecido: era cruel, devastador e agonizante. Uma pequena parte de si ainda tinha esperança de que ela se virasse, talvez corresse atrás dele para um último beijo, ou apenas para admirar, pela última vez, seu belo rosto. Aqueles breves segundos ficariam marcados em sua memória pelo resto da vida. Tudo havia acabado. Passara a vida toda apaixonado por aquela mulher, e, por dua
Assim que chegou ao escritório, Harry foi recebido com um largo sorriso de Ana, sua secretária.— Bom dia – ele cumprimentou antes de entrar em sua sala. Ao sentar, colocou o celular sobre a mesa, no mesmo segundo viu uma notificação. Desbloqueou a tela e sorriu ao ver o nome de Esther.“Está livre nesta tarde?”, ela perguntou. Harry respirou fundo antes de responder. Mesmo depois de tantos anos de amizade, toda vez que falava com ela sentia-se como um adolescente desajeitado.“Vou verificar minha agenda”, ele brincou, antes de responder: “Para você, sempre arrumo um tempo”.“Passarei aí na hora do almoço. Beijos”, ela avisou. Harry começou a cantarolar enquanto ligava o computador, mas engoliu em seco e tossiu ao ver Leandro entrar sem aviso.— Não sabe bater? – Harry o encarou, irritado.— Posso saber o motivo de tanta felicidade tão cedo? – Leandro sentou-se no sofá, esperando uma resposta.Harry inclinou a cadeira para trás, mantendo uma expressão séria.— Não é da sua conta