O disparo ecoou pela capela com uma força ensurdecedora, e o tempo, de repente, pareceu desacelerar. Tudo ao meu redor começou a se mover como se o mundo estivesse submerso em um oceano espesso. Eu assisti, impotente, enquanto a bala saía da arma, rasgando o ar com uma precisão assustadora. Cada milésimo de segundo se estendia em uma eternidade. Meu corpo congelou, preso em uma espécie de paralisia. Minha mente gritava, mas eu não conseguia emitir som algum. Minha boca não se mexia. O medo gelado corroía minha espinha, bloqueando qualquer tentativa de reação. O ambiente ao redor – a capela cheia de gente, as flores delicadas que decoravam o altar, os rostos chocados – tudo se distorcia, como se estivesse a quilômetros de distância. Só uma coisa estava clara: o cano da arma, ainda fumegante, nas mãos trêmulas de Valentina. O olhar de ódio em seus olhos, o som abafado de vozes em pânico, tudo se misturava numa cacofonia distante.Tudo parecia tão surreal, como se eu estivesse presa em u
Eu me encarei no espelho enquanto lavava as mãos, a água fria escorrendo pelos meus dedos, tentando acalmar o tremor que ameaçava me dominar. As lágrimas que haviam queimado meus olhos antes pareciam ter secado, como se, ao vestir o uniforme cirúrgico, meu corpo soubesse que não havia mais espaço para o desespero. A frieza que tanto me definiu como cirurgiã, aquela capacidade de desligar o emocional para focar no procedimento à minha frente, era minha única salvação naquele momento. Eu precisava disso mais do que nunca.O reflexo no espelho não mostrava uma noiva desamparada, mas uma médica determinada. As dores nas mãos causadas pela STC continuavam latejando, um lembrete constante da fragilidade do meu corpo. Porém, naquele instante, se eu conseguia ignorar a dor do meu coração, poderia ignorar qualquer outra coisa. A adrenalina corria nas minhas veias, e por mais que a pressão fosse esmagadora, havia uma calma que eu precisava manter. Bernardo dependia de mim.Não era comum um médi
O helicóptero balançava suavemente no ar, e mais uma vez, eu tentava controlar o medo que sempre surgia com a ideia de voar. Lembrei-me de quando Bernardo, com seu jeito brincalhão, disse que eu precisaria me acostumar com esse tipo de transporte para casos de transferência. Lembro-me dele rindo, falando que, como médica, eu não teria escolha a não ser superar esse medo. Um sorriso melancólico escapou dos meus lábios ao pensar nisso, mas o aperto no peito logo voltou. Agora, o barulho ensurdecedor das hélices não conseguia abafar os pensamentos caóticos que dominavam minha mente. Enquanto o Rio de Janeiro se estendia sob meus pés, com o Mercy Hospital surgindo no horizonte, eu me sentia cada vez mais ansiosa. O nó no estômago só aumentava ao imaginar Bernardo deitado em uma cama de UTI, lutando pela vida. Ele estava lá, imóvel, e eu me sentia impotente, incapaz de fazer algo para mudar a situação.A transferência de Bernardo foi angustiante, mas necessária. Seus pais tinham insistido
A porta do quarto de Bernardo se abriu lentamente, e assim que pus o primeiro pé para dentro, uma agitação ao redor dele capturou minha atenção. Enfermeiros se moviam rapidamente, ajustando máquinas, falando entre si em um tom que eu mal conseguia distinguir. Meu coração acelerou, e em um instante, o instinto de médica tomou conta de mim. Sem hesitar, me movi como um furacão, empurrando todos para fora do caminho. Precisava ver, precisava ter certeza de que ele estava bem, precisava ver com meus próprios olhos.Meus olhos correram imediatamente para os monitores ao lado da cama. O ritmo regular das batidas cardíacas de Bernardo piscava em verde na tela, como um pulso de vida. Ele estava vivo. Um suspiro de alívio escapou de meus lábios antes mesmo que eu percebesse, mas a tensão ainda não se dissipava. Eu sabia que, apesar de seu coração estar batendo, havia algo mais que eu precisava conferir. Meus olhos desceram lentamente até ele, enquanto o caos ao redor parecia ficar em segundo p
Os dias no hospital pareciam se arrastar, mas cada segundo de espera valia a pena ao ver Bernardo melhorar um pouco mais a cada dia. Sua recuperação, apesar de lenta, era constante, como se ele estivesse, de alguma forma, desafiando todas as probabilidades que haviam sido colocadas contra ele. Cada pequeno avanço, desde o movimento sutil de seus dedos até o primeiro sorriso que ele me lançou depois de dias em coma, era um alívio indescritível. Cada momento ao seu lado era como receber um presente inesperado, algo que eu nunca havia valorizado tanto antes. A cada suspiro mais estável, a cada palavra dita com esforço, eu sentia meu coração se encher de esperança.Bernardo, sempre brincalhão, tentava amenizar a gravidade da situação com piadas e comentários sarcásticos sobre si mesmo. Ele transformava o medo em humor, e era assim que conseguia aliviar a tensão que pairava no ar. Muitas vezes, ele fazia graça sobre sua situação, dizendo que a cadeira de rodas ou os passeios monitorados pe
O tempo dentro do hospital parecia uma ilusão, como se os dias se arrastassem devagar, mas ao mesmo tempo, cada instante ao lado de Bernardo se tornasse algo precioso. O relógio marcava as horas, mas meu foco era todo nele, observando cada pequeno avanço em sua recuperação. Ele já conseguia se sentar sozinho, e a palidez em seu rosto dava lugar a um rubor saudável. Ver suas bochechas ganhando cor e seu sorriso retornando, quase tão vibrante quanto antes, trazia uma onda de alívio e felicidade que eu não conseguia descrever. Cada vez que seus olhos encontravam os meus com aquele brilho familiar, era como se a dor e o medo que haviam nos cercado nos últimos tempos perdessem um pouco mais de sua força. Saber que ele estava lutando e vencendo me enchia de uma alegria indescritível, uma sensação de que, por mais lento que fosse o processo, estávamos nos movendo na direção certa.Era uma tarde tranquila, e eu o observava dormir profundamente na cadeira reclinável ao lado da janela. Sua resp
Eu estava sentada na sala do Dr. Mendes, com as mãos apoiadas no colo, enquanto suas palavras ecoavam pela minha mente. Ele falava de maneira calma e segura, seu sorriso satisfeito refletindo a grandeza do que estava prestes a dizer. Mesmo assim, minha mente demorava a processar completamente o que aquilo significava. O peso da responsabilidade dos últimos meses, a STC e tudo o que enfrentei pareciam criar uma barreira entre mim e a realidade daquele momento. Ele continuou a me observar com expectativa, como se estivesse me dando a melhor notícia do mundo, e talvez fosse mesmo. Eu tinha atingido todos os requisitos para concluir a minha residência, algo que eu sempre sonhei. Em breve, estaria entre a turma de especialistas formandos, algo que parecia tão distante há pouco tempo.O sentimento era uma mistura de alívio e surpresa, mas ainda havia algo dentro de mim que resistia a comemorar completamente.— Parabéns, Alice. — Ele disse, observando minha reação com atenção.Eu o encarei,
~ BERNARDO ~Os dias em casa, após o retorno do hospital, tinham um ritmo peculiar. A normalidade parecia diferente, como se cada pequeno detalhe da rotina tivesse ganhado um novo significado. Cada passo que eu dava pela casa, cada gesto simples, como pegar uma xícara de café ou folhear um relatório da Orsini, me lembrava do quão perto estivemos de perder tudo. Mas, ao mesmo tempo, cada um desses momentos trazia uma sensação de renovação. O que antes era corriqueiro, agora tinha um peso diferente, quase sagrado. Eu me recuperava lentamente, e aos poucos, a vida começava a retomar sua forma, ainda que com marcas evidentes de tudo o que passamos. Embora nada fosse exatamente como antes, havia algo de profundamente positivo naquela transformação.No início, meu retorno à Orsini Tech foi remoto. Passava horas em frente ao computador, tentando me readaptar à rotina de reuniões e revisando relatórios. Era uma experiência estranha, estar em casa, sentado à mesa de trabalho, enquanto ouvia a