Eu deveria estar presa.
Não por assassinato – ainda – mas porque claramente era crime federal estar lidando com uma ressaca dessas e ainda precisar fingir que era um ser humano funcional.
O que me levava à pergunta do dia: por que caralhos eu achei que beber até esquecer meu próprio nome era uma boa ideia?
Suspirei, sentada no sofá da minha sala, afundada em um moletom velho que cheirava a café e desespero. Meu laptop estava aberto na mesa de centro, com uma tela em branco que me encarava de volta. O cursor piscava, como se estivesse julgando minhas escolhas de vida.
Atualizar meu currículo. Esse era o plano.
Porque se minha vida virou um desastre, eu pelo menos podia ser uma desempregada com um currículo impecável — que era algo que eu claramente tinha, afinal… além de ter trabalhado em um dos melhores hospitais, eu ainda consegui me tornar cirurgiã chefe daquele lugar (não que isso fosse algo tão surpreendente, já que Carlos, claramente não conseguia lidar com os meus cirurgiões).
Mas… de qualquer forma, eu precisava colocar essas coisas no papel.
Nome: Adeline Moretti.
Idade: 35 anos.Profissão: Cirurgiã cardíaca, ex-chefe do Saint Louis, ex-noiva de um canalha.Habilidades: Operações de alta complexidade, liderança de equipe, detectar traições de idiotas e NÃO COMETER HOMICÍDIO MESMO QUANDO JUSTIFICADO.Apaguei essa última parte, junto da que eu dizia que eu era ex-noiva de um canalha. Apesar de verdadeira, recrutadores costumam desgostar de tons homicidas, e também… de detalhes desnecessários como aquele.
Respirei fundo e encarei a tela. Mas antes que eu pudesse continuar, minha cabeça latejou em protesto.
Ai.
A m*****a ressaca ainda estava me punindo por todas as decisões questionáveis da noite anterior. Aparentemente, meu fígado estava organizando um motim.
Pior ainda, minha paciência para lidar com qualquer coisa estava em níveis negativos.
E foi exatamente nesse momento que o interfone tocou, como se fosse um presságio que indicava, que o meu ódio apenas aumentaria depois daquilo.
Revirei os olhos.
— O que foi? — atendi, sem paciência.
— Bom dia, senhora. Temos uma entrega para você.
Eu franzi a testa.
— Entrega?
— Sim, um buquê de flores.
Um buquê de flores? Por acaso… isso era algum tipo de piada com a minha cara?
— Quem enviou?
O entregador demorou um segundo antes de responder:
— Um senhor… Carlos. — Ele disse ao olhar o nome que tinha naquele maldito cartãozinho que ele tinha em mãos.
Ah…
Eu podia ter lidado com isso de muitas formas. Poderia ter ignorado. Poderia ter recusado. Poderia até ter pego as flores, jogado na privada e filmado a descarga girando para depois mandar para ele por mensagem, antes de xingar ele de todas as formas possíveis e inimagináveis.
Mas não.
Em vez disso, aceitei o buquê. Segurei aquelas malditas rosas vermelhas entre os dedos e, sem pensar duas vezes, fui até a varanda, depois de agradecer o entregador, — que parecia mais confuso do que qualquer coisa.
E joguei.
Flores, pétalas, sentimentos e qualquer vestígio de paciência que eu ainda tivesse.
Vi as rosas despencando e se espalhando em cima de algum carro qualquer, como um festival de humilhação pública. Uma senhora que passava na calçada olhou para cima com os olhos arregalados. Dei um sorrisinho e acenei.
Ela provavelmente achou que eu fosse doida.
E talvez eu fosse.
Mas eu tinha certeza de uma coisa: doida ou não, eu jamais aceitaria rosas de um canalha que achava que um buquê poderia apagar o fato de que ele ME TRAIU EM CIMA DA MESA DE MOGNO, QUE EU HAVIA DADO PRA ELE.
Entrei de volta no apartamento, chutando a porta para fechar.
— Que merda, Carlos! — rosnei, marchando até a mesa e pegando o cartão que veio junto.
"Adeline, espero que repense a sua demissão, e volte para o hospital
Com amor, Carlos."
Eu encarei aquelas palavras como se o próprio diabo tivesse as escrito.
Respirei fundo, rasguei o cartão em dois.
Então em quatro.
Depois em oito.
Joguei os pedaços no lixo e fechei os olhos.
Carlos tinha a audácia de me mandar flores? O mesmo Carlos que me traiu dentro do hospital? O MESMO CARLOS QUE TEVE A OUSADIA DE FAZER ISSO EM CIMA DO PRESENTE QUE EU TINHA DADO PRA ELE?!
AQUILO TINHA SIDO UMA FORTUNA!
Eu não sabia o que era pior: o fato de ele ser um canalha ou o fato de ele achar que eu ia cair nesse teatrinho barato, que ele estava tentando fazer para me fazer voltar para aquela porra de hospital.
Peguei meu celular, abri as mensagens e comecei a digitar.
Adeline: "Carlos, enfia as flores no rabo."
Apaguei.
Muito direto. Ele podia se divertir com isso.
Tentei de novo.
Adeline: "Se acha que um buquê vai resolver alguma coisa, então você é ainda mais burro do que eu pensava."
Pensei melhor. Ainda dava muita atenção para ele.
Suspirei e joguei o celular de lado.
Carlos podia mandar quantas flores quisesse.
Nada, absolutamente nada, ia me fazer voltar atrás.
Me joguei no sofá, encarando o teto.
Meu currículo ainda estava aberto na tela do laptop, me lembrando que eu precisava seguir em frente.
Mas naquele momento, tudo que eu queria era um remédio para ressaca, um litro de café e a garantia de que nunca mais na minha vida eu teria que ouvir o nome "Carlos Ricci" de novo.
O que, sinceramente, parecia muito mais difícil do que deveria, já que do jeito que eu sabia que aquele desgraçado era… com toda certeza, ele continuaria tentando, até ter o que ele queria — mas eu com toda certeza, não iria ceder dessa vez, porque eu até podia ter sido completamente trouxa por ele antes, mas agora? Eu não pretendia cometer o mesmo erro duas vezes.
Porque no fim, eu ainda era Adeline Moretti, uma cirurgiã completamente capaz, que não precisava daquele traste para porcaria nenhuma na minha vida — e agora que eu parava pra pensar… era nítido o quanto ele precisava mais de mim, do que eu dele.
Isso me fez dar uma gargalhada sincera, porque agora… ele parecia completamente patético.
O bar estava vazio àquela hora da manhã. As luzes fracas iluminavam o balcão, refletindo nos copos que ainda estavam espalhados por ali, como lembranças da noite passada. Mas eu não estava pensando na noite passada. Eu estava pensando nela.Adeline Moretti.Meu maxilar travou ao lembrar do jeito como ela simplesmente sumiu, como se eu não fosse nada além de um passatempo para ela. O dinheiro que ela deixou para trás ainda queimava no meu bolso, um lembrete do descarte descarado. Eu queria jogá-lo fora, rasgá-lo, mas uma parte de mim sabia que aquele insulto precisava ser devolvido. Pessoalmente, ou pelo menos era a desculpa que eu vinha usando para me convencer de que eu não era só um maníaco, completamente obcecado pela mulher com quem dormiu na noite anterior.— Henry! — chamei, minha paciência se desfazendo em pedaços enquanto o desgraçado ria.Meu melhor amigo e gerente do bar apareceu no escritório, segurando uma pasta com algumas contas. Ele me olhou com aquela expressão de quem
Flores. Eu dei flores a ela e não sei exatamente o que diabos eu esperava com isso, mas com certeza não era ver um buquê de rosas vermelhas espalhadas pelo asfalto, especialmente amassadas no meio da calçada — junto a marcas de pneu de carro —, como eu mesmo pude presenciar.Eu tinha ficado ali embaixo, esperando pela chance de subir e resolver as coisas com ela, — uma esperança vaga, mas existente, — só que Adeline não parecia disposta a facilitar a minha vida.Adeline.Suspirei, encostando o ombro na parede do meu escritório depois de voltar para o trabalho. Aquela mulher tinha o dom de transformar tudo numa novela mexicana de quinta categoria. Drama por cima de drama, como se eu fosse algum vilão de filme barato.Só que eu já sabia que isso iria acontecer. Ela ia recusar as flores, ia xingar, ia bater o pé e dizer que não voltava nunca mais. Mas no fundo, ela sabia. No fundo, eu sabia.Ela ia voltar.Ela tinha que voltar.Peguei o celular e encarei a tela, sem desbloquear. O número
Eu estava sendo assombrada.Não por fantasmas, não por espíritos vingativos, nem por nenhuma alma penada.Eu estava sendo assombrada por entregas inesperadas de Carlos Ricci.E — Deus que me perdoe — se eu tivesse um lança-chamas, eu já teria dado um jeito nesse problema.— De novo? — resmunguei, encarando a campainha tocando pela terceira vez naquela manhã.Arrastei os pés até a porta, já me preparando mentalmente para qualquer nova aberração que aparecesse. Respirei fundo e abri, pronta para xingar qualquer infeliz que estivesse lá.O entregador, um rapaz de expressão cansada e camisa amassada, olhou para mim segurando outra m*****a caixa.— Mais uma entrega para a senhorita Adeline Moretti.Fechei os olhos.Eu não precisava perguntar. Eu já sabia.Carlos Ricci.O homem que aparentemente não entendia sinais, nem mesmo quando esses sinais envolviam eu jogar um buquê de rosas da varanda e ignorar cada uma de suas mensagens ou tentativas de falar comigo.— O que é dessa vez? — perguntei
Eu deveria parar.Sério.Se alguém me visse agora, acharia que eu era um psicopata completo.Porque, sinceramente, ficar olhando o perfil do LinkedIn de Adeline Moretti por mais de três minutos sem piscar definitivamente não era um comportamento normal.Fechei o notebook com força e esfreguei o rosto.— Isso tá indo longe demais.Mas antes que meu cérebro absorvesse essa informação, minha mão já estava abrindo o computador de novo .Só pra verificar uma última vez .Só pra ter certeza de que ela ainda não tinha aceitado nenhuma proposta nova .E lá estava. "Disponível para novas oportunidades."Eu deveria estar preocupado com o fato de que eu sabia essa frase de cor .Mas eu não tinha tempo para crises existenciais agora.Eu ainda era o CEO do Grupo Beaumont, mesmo que há pouco tempo, por conta da morte do meu pai, e tinha um bando de velhos chatos esperando para dizer pela milésima vez que eu não sabia o que estava fazendo.Ótimo.Exatamente o tipo de entretenimento que eu preciso pa
O interfone tocou pela quarta vez naquela manhã.Eu estava no meio de um café que finalmente não tinha gosto de ressentimento quando o som irritante interrompeu minha paz.Respirei fundo. Talvez, só talvez, fosse alguma coisa normal. Tipo um erro de correspondência. Ou um entregador na casa errada. Ou…— Entrega para a senhorita Adeline Moretti.Soltei um suspiro lento.O entregador já sabia. A voz dele tinha aquele tom de quem estava preparado para levar patadas, porque claramente eu já era uma lenda nos corredores das entregas indesejadas.— Por acaso essa entrega vem de um certo Carlos Ricci?O silêncio no outro lado da linha foi resposta suficiente.Apoiei a testa na palma da mão e tentei contar até dez antes de responder.Não adiantou.— Volte para a central e diga a eles para avisarem esse babaca que eu não quero mais nada dele.— Senhora, eu só faço entregas…— Ótimo. Então entregue esse recado.Soltei e simplesmente, desliguei. Eu sabia que o coitado do entregador não tinha cu
O barulho do relógio na parede estava me irritando depois da minha tentativa de manipular Adeline por meio do meu irmão, — falhou, — e claro que nada disso melhorava, quando o velhote do Louis, não saia do meu pé.Tic. Tac. Tic. Tac. Como uma maldita contagem regressiva para o inferno.Meus dedos tamborilavam contra a mesa de mogno do meu escritório, a perna inquieta batendo no chão enquanto minha paciência se esgotava. Eu já sabia que essa conversa viria, já sabia que Nicolas Louis ia querer ter um tête-à-tête comigo depois de tudo que aconteceu. Mas o fato de saber não tornava nada mais fácil.Eu tinha controlado os boatos! Eu tinha feito de tudo para aquele velho maldito não descobrir que eu estava enrolando a filha dele e fodendo com a médica que trouxe renome pro hospital.Adeline era uma fase, claro e no fim, Amanda era com quem eu pretendia me casar, — mas nem Nicolas e nem Adeline, precisavam saber disso.— O doutor Nicolas está esperando o senhor — Ana, minha secretária, me d
O som irritante do celular vibrando pela terceira vez me fez revirar os olhos. Eu já sabia quem era. E também já sabia que não queria ouvir merda nenhuma do outro lado da linha.Eu tinha atendido a ligação de Antony por achar que ele era diferente do irmão (afinal ele sempre pareceu um bom garoto), mas quando vi que esse não era o caso, só decidi que não me daria mais ao trabalho.Mesmo assim, peguei o aparelho de qualquer jeito e vi o nome na tela: Antony Ricci.Suspirei fundo.Primeiro Carlos, agora Antony ficaria insistindo sem parar? Como se eu já não tivesse aturado o suficiente da família Ricci. Por um segundo, considerei atender só para mandar ele ir à merda, mas minha paciência não era infinita, e eu sabia que qualquer conversa com ele ia me render uma dor de cabeça que eu não estava disposta a ter.Apertei o botão de bloquear sem pensar muito e soltei um suspiro de satisfação. Esse era o fim de uma era.Carlos ia descobrir sobre minha demissão a qualquer momento, e quando iss
Eu estava tão puto que minha própria respiração parecia me irritar.Minha mão latejava de tanto socar aquela porta de merda, e a cada segundo que passava sem uma resposta, meu sangue fervia mais. Ela estava lá dentro. Eu sabia que estava.E eu a faria abrir aquela porra de porta ou eu mesmo arrombaria e entraria.Não. Eu estava cansado de toda essa merda. Quem ela achava que era, para tentar foder a minha vida e anos de planejamento, por conta de uma birrinha ridícula como aquela?Depois de ignorar todas as minhas ligações, todas as minhas mensagens, e principalmente depois de me fazer passar pelo pior esporro que Nicolas Louias já me deu na vida, Adeline não tinha o direito de simplesmente fingir que eu não existia. No final, tudo aquilo era culpa daquela mimada!Se não fosse pelo surto de Adeline, nada daquilo estaria acontecendo e eu faria ela entender que não tinha outra opção além de implorar para que eu a aceitasse de volta no hospital.Então eu bati de novo. Mais forte.— Abre