Capítulo 5

Meu aniversário de 27 anos passou completamente despercebido, sem nenhuma comemoração de minha parte. Estar próximo dos trinta me deixava muito nervosa.

No dia 23, terça-feira, passei quase todo trabalhando, indo a foro, delegacia e até presídio para protocolar processos e tentar liberar um cliente que tinha sido pego com drogas. Eram poucas gramas e ninguém tinha provas se era para venda ou consumo próprio, então eu precisava me virar como dava para usar isso a meu favor. Ou a favor dele, no caso.

Chegando em casa, não fiz nada além de sentar em meu confortável sofá retrátil acinzentado com o sushi pedido na telentrega e uma taça de vinho branco, sozinha e absolutamente cansada, sentindo uma leve cólica me incomodando que apenas me deixava alerta sobre eu estar ovulando ou próximo de menstruar. Depois do término, eu meio que tinha me liberado de pensar no assunto como antes, já que não havia nenhum perigo de engravidar tão cedo.

Entre um programa e outro, entrei nas redes sociais para responder todos os parabéns recebidos de amigos. Supostos amigos, pois a verdade é que amigos de verdade deveriam ao menos me ligar para dar os parabéns.

Durante o dia, recebera mensagens no celular, que fui respondendo aos poucos. Minha mãe havia ligado de manhã cedo, me desejando um ótimo dia por ela e por meu pai, assim como minha melhor amiga Carolina e minha outra amiga e ex-colega de faculdade, Luana, com quem eu convivia e encontrava muito por causa de alguns processos em comum.

 Eu ainda estava muito chateada com o término para querer sair com os amigos, então rejeitei as duas ofertas que tive para comemorarmos ao menos no final de semana, só nós, sem homens para atrapalhar. Mas, depois do que tinha rolado com Henrique, achei que ficar afastada do álcool por um tempo fosse a melhor decisão (ou ao menos de muito álcool, porque eu estava justamente bebendo naquele dia).

Carolina não sabia do acontecido e eu estava muito envergonhada para contar. Talvez, quando o sentimento de culpa passasse, revelaria meu caso de uma noite com seu primo. Ou não. Não sabia se um dia teria mesmo coragem para dizer algo. Só esperava que aquele sentimento ruim passasse logo e eu parasse de pensar no assunto, tentando recordar o que fizera naquela noite.

Ainda que não tivesse ganho nenhum presente de aniversário, no dia seguinte acabei ganhando um. E esse presente atendia pelo nome de Cassiani.

Veja bem, conseguir novos clientes quando se tem apenas um ano de experiência não é tarefa fácil. Provavelmente levava mais tempo tentando conhecer novas pessoas do que fazendo o meu trabalho de fato. Eu não era uma pessoa que conhecia todo mundo, como o Bernardo, e também não estava muito a vontade com passar as madrugadas sozinha na delegacia esperando alguém aparecer.

Já era difícil ser advogada na área criminal. O advogado criminalista é basicamente comparado ao criminoso. Porque defende um bandido, é automaticamente considerado um, como se não fôssemos todos iguais perante a lei, com direito a ampla defesa.

Era duas vezes mais difícil ser uma advogada jovem. Todo mundo acha que porque a pessoa é jovem, ela não é capaz de fazer tudo que uma pessoa mais velha e experiente faz. O que era o motivo pelo qual existe tanta gente desempregada no país, na minha humilde opinião. Tanta gente terminando a graduação e sem ter onde trabalhar!

Três vezes mais difícil é ser uma advogada jovem e recém-graduada. Porque, tendo me formado há pouco mais de um ano, não tinha uma cartela de clientes muito grande, muito menos tinha conhecimento sobre todos os campos de atuação, já que muitas regras a gente só aprende na prática. Sem contar o fato de que, para completar meu orçamento, muitas vezes era necessário assumir casos de outras áreas, como multas de trânsito e outras questões simples.

Eu poderia muito bem ter seguido pelo método mais fácil e assumido um lugar no escritório do meu pai, como ele bem desejava. Porém, isso significava ter que fazer tudo exatamente do jeito dele e ainda ter que trabalhar com Direito Empresarial e Tributário. Pelo amor de Deus, quem é que gosta de Direito Tributário nesse mundo?

Sem dúvida, é quatro vezes mais difícil ser advogada criminalista, jovem, recém-formada e mulher. Porque, por mais que já tenhamos alcançado muitos direitos durante os anos, ainda não podemos dizer que somos tratadas exatamente como os homens.

É muito comum que, mesmo jovens e sem experiência, os homens sejam tratados como doutores advogados, que sejam levados a sério e etc. Nós, por outro lado, somos normalmente confundidas como assistentes ou estagiárias, mesmo dentro de um terninho preto e saltos altos. Isso me aconteceu diversas vezes quando fui acompanhada de Bernardo na delegacia ou no Tribunal. Minha vontade era pular no pescoço daqueles policiais machistas!

Uma mulher dentro de uma delegacia ou presídio parece ser uma afronta ao sexo frágil. Como que uma pessoa tão indefesa pode entrar em um local como esse, tão sujo, tão hostil, tão masculino?

Conforme o tempo vai passando, e as pessoas vão conhecendo o seu trabalho, a mulher passa a ter um papel muito diferente do imaginado, pode acreditar. Por incrível que pareça, muitos presos preferem uma mulher lutando para defendê-los do que um homem. A razão? Os homens tendem a ser mais frios e objetivos, distantes, despreocupados, enquanto a mulher é mais carinhosa e aberta, presta atenção aos detalhes, escuta. Talvez por causa do nosso instinto materno (mesmo que algumas pareçam não tê-lo, tipo eu)!

Eventualmente pode acontecer de você estar no lugar e na hora certa, que foi o que aconteceu comigo em certo dia quando visitava um cliente.

Eu havia ido até o centro de triagem da cidade, que nada mais é do que uma parte do presídio onde ficam os presos provisórios, aqueles que ainda serão julgados. Isto é, estava lá para tentar soltar um de meus clientes que, por ser pobre e negro, ao invés de simplesmente ser solto até o julgamento com fiança ou outro tipo de medida cautelar, aguardava o advogado (no caso, eu) para poder sair.

Nesse caso, no entanto, eu já estava de saco cheio do cliente, pois, em menos de três meses, era a quarta vez que ia até lá soltar o dito cujo com uso de tornozeleira, já que ele insistia em violar a área restrita. Assim não havia a menor possibilidade de conseguir mais uma apelação e eu teria que ser bem rude com ele.

Logo após atendê-lo, no entanto, Robson, o garoto, falou:

— Doutora, tem um amigo meu aqui que talvez a senhora possa ajudar.

Parei de guardar meus papéis na pasta e encarei interessada o garoto cheio de tatuagens no pescoço. Essa era a maneira mais fácil de conseguir novos clientes.

— Ele já marcou umas quatro vezes com o advogado e o cara não aparece — continuou. — E ele já era pra ter saído daqui.

Virei para trás, onde um guarda fortão com um ridículo bigode anos oitenta vigiava o atendimento.

— É verdade — o homem respondeu. — Ele já marcou várias vezes. O advogado nunca aparece.

Refleti por um momento. Se o advogado não queria fazer o atendimento, coisa boa não era. Mesmo assim, não estava sendo possível rejeitar trabalho.

— Chama o cara então — pedi, sem muita alternativa, fazendo aquela expressão de “que outra alternativa temos pra hoje?”.

Dez minutos depois, um homem negro enorme, cheio de músculos, com longos dreads até a cintura sentou a minha frente. Senti até um calafrio, receosa. Um cara daquele tamanho e com o advogado fugindo. Estava começando a sentir medo do que quer que ele tivesse feito para estar ali. Assassinato, talvez? Mesmo assim, solicitei que me explicasse o caso.

— Lá na audiência, o promotor veio a favor e liberou meu dinheiro, doutora — falou, com seu vozeirão de barítono. — Caí com quatro mil e uma arma. Mas ele veio a meu favor, mandou me soltar e liberar a grana.

Achei bem estranha aquela história. Quer dizer, se o promotor havia mesmo o mandado soltar, por que é que o advogado havia sumido e ele continuava lá? Mas, isso era o Brasil, onde nada fazia sentido e a justiça andava de carroça, coisas estranhas podiam acontecer enquanto alguém aguardava pela liberdade.

Depois de escutar a história e refletir um pouco, pesando os prós e os contras, acabei me decidindo por ajudá-lo. Primeiro precisaria de seus dados para pesquisar o processo.

— E qual é mesmo o seu nome? — perguntei, abaixando a cabeça para anotar no meu bloquinho.

— Cassiani — respondeu, me fazendo levantar a cabeça para encará-lo. — Mas pode me chamar de Chocolate. Como a senhora preferir.

Aquele nome parecia bastante feminino para um homem daquele tamanho. Eu nem era louca de chamá-lo pelo apelido de Chocolate. Afinal, ele seria meu cliente, não amigo. Por que diabos eu o chamaria de outra forma?

Anotei seu nome ao lado do resumo do caso e seu CPF, enquanto ele me sorria abertamente, mais do que feliz em conseguir ajuda. Faltava-lhe um molar, ainda assim parecia muito imponente e amedrontador. Até que começou a contar sobre seus vários filhos e a esposa, como se fossem as coisas mais perfeitas do mundo.

Um homem de família, quem diria!

Precisei cortá-lo antes que fosse muito tarde. Mais alguns minutos e seria escoltada para fora do local.

Ao chegar em casa, fui conferir os dados e realmente dizia que estavam liberados tanto o dinheiro quanto a soltura. O que o tinha detido, no entanto, era por estar em uma outra pena ativa, cumprindo em regime semiaberto, com tornozeleira, quando o pegaram com a arma. Dificilmente eu pegava um cliente que já não estivesse em outra pena.

Achei que esse era um ótimo presente de aniversário e que tudo estava a meu favor (como eles constantemente se referiam) naquele dia. Porém, parecia um pouco enganada.

Lia o processo de Cassiani atentamente em meu escritório quando o interfone tocou. Já que não era costume receber visitas às cinco da tarde, horário em que todo mundo estaria trabalhando, pensei que pudesse ser o carteiro.

Ainda que trabalhasse em casa, devido ao fato de ter clientes criminosos, a maioria homens, não os atendia em meu apartamento, então nem pensei nessa possibilidade

— Sim? — perguntei no aparelho, curiosa.

— Dêssa! — ouvi uma voz masculina falar, em um tom pesaroso e triste.

Bernardo!

Meu coração despedaçado martelava no peito, fincando as pontas de cada pedaço em minha carne e causando uma dor profunda e insuportável. Por que ele precisava aparecer em minha casa? Já não havia entendido quando rejeitara suas chamadas e não respondera suas mensagens?

Quer dizer, precisei bloqueá-lo em todas as minhas redes sociais em que ele pudesse se comunicar.

Três semanas haviam se passado desde que me vingara com a história do Tinder. Três semanas que estava solteira. Semanas em que me pegava sofrendo toda vez que via algum caso que tínhamos em comum. Semanas que me recusava a ouvir seus pedidos de desculpas, que me segurava para não entrar em suas redes sociais e ver o que estava fazendo, ou com quem estava fazendo (porque achei que a essa altura do campeonato ele já estivesse em outra, uma vez que tinha tantos “contatinhos”). Não sabia por que motivo eu insistia com aquele tormento. Era como um vício.

No entanto, ao que tudo indicava, o desgraçado tinha a coragem de estar arrependido!

Qual era o sentido de ficar com outras pessoas quando se dizia apaixonado? Quer dizer, na minha mente, se eu o amava tanto, obviamente não tinha nenhum interesse em ficar com outro cara. Mas, ao que parecia, seu cérebro não funcionava da mesma forma e seu nível de comprometimento se relacionava apenas ao sentimento, nada tendo a ver com suas necessidades físicas e biológicas.

Então, irritada por ele ter tido a cara de pau de aparecer ali, coloquei o aparelho de volta no gancho, desligando sem ao menos dizer uma palavra, e voltei a me sentar ao computador para continuar minha pesquisa. Talvez ele desistisse. Eu esperava que ele desistisse.

Antes mesmo de conseguir sentar na cadeira, ouvi o barulho novamente. Sabia que era ele, no entanto estava disposta a deixá-lo implorar o tempo que fosse.

Dei uma volta na cadeira giratória, segurando a caneta com a ponta nos dentes. Dei uma segunda volta e o barulho não parou. Na terceira volta, pensei que tanto ruído fosse incomodar meus vizinhos idosos e que algum possivelmente ia me atormentar mais tarde.

Assim, depois de suspirar fundo e gemer de irritação, lentamente me aproximei do interfone.

— O que você quer? — perguntei com minha voz mais agressiva.

— Posso subir? — pediu, calmo e suplicante.

Revirei os olhos antes de responder.

— Claro que não.

— Por favor, Andressa. Vamos apenas conversar. Fazer as pazes.

Juro que não fazia ideia porque nunca tinha percebido o quão lento ele era para entender as coisas. Talvez eu estivesse cega e surda em relação a isso.

— Que pazes, seu maluco!?

Nunca mais teria paz ao seu lado sabendo que a qualquer momento poderia ser traída outra vez. Em que mundo ele achava que eu conseguiria perdoá-lo? A confiança estaria quebrada para todo o sempre.

— Dêssa, ainda podemos ser amigos...

Não respondi. Claro que podíamos. Eu só não tinha a menor vontade de fazer isso naquele momento. Quem sabe dali a um ano. Ou dois. Ou nunca!

— Ainda podemos trabalhar juntos.

Murmurei um gemido rouco de ódio por ele saber exatamente onde me atingir. Quando se trata de trabalho, a situação muda um pouco de figura.

Se conseguisse conviver com sua cara de pau sem querer socá-la, talvez ainda pudesse me render alguns clientes a mais. Até porque Bernardo sempre descobria novos clientes. E bons, ainda por cima. Do tipo que traziam muito dinheiro.

Cliquei no botão para abrir a porta e minutos depois ele tinha subido.

Ele parecia sempre saber o que dizer para que eu mudasse de ideia. Maldito manipulador!

Às vezes eu parava para pensar por que era tão burra em certos momentos. Mas a reflexão só aparecia depois que já havia passado pelo tormento.

Deixei a porta entreaberta e o esperei com a expressão séria e os braços cruzados. Bernardo estava com a calça preta e a camisa social usuais, sapato e o cabelo arrumado que o deixavam para lá de sexy. Ele era alto e forte, e sabia usar sua beleza e charme como ninguém. Mas a barba por fazer revelava um desleixo incomum. O cretino tinha a coragem de estar sofrendo e a minha vontade era tirar esse sofrimento de sua cara a tapas!

Inicialmente ele se aproximou com a intenção de me dar um beijo no rosto, porém logo se afastou, vendo minha expressão de desprezo.

— Dêssa... — começou. — Queria começar dizendo que você tinha toda a razão de se vingar, porque eu sou um canalha idiota que nunca mereceu o seu amor.

Fechei a porta atrás dele e recruzei os braços, esperando o resto de seu discurso muito bem ensaiado.

— Eu fui um cretino e não sabia o que estava fazendo.

Já conhecia seu poder de persuasão. Primeiro tentaria com palavras. Se não funcionasse, tentaria com sedução. E ele era absurdamente bom nisso, então eu esperava que ele parasse antes.

— Tudo que fiz não tem a menor explicação e não tenho nenhuma boa razão por ter feito o que fiz com uma mulher tão maravilhosa quanto você.

Franzi a testa, sem acreditar em suas palavras.

Nas três semanas em que pude refletir, também refiz aquele encontro em minha imaginação mil vezes. Então sabia exatamente quais seriam suas palavras, como se fosse um filme romântico clichê. Eu estava pra lá de acostumada com eles para saber como seria o final.

— Você merecia o mundo e eu só te dei lixo.

Continuei com meus braços cruzados e a expressão fechada. Vendo que não conseguiria me dobrar com sua conversa fiada, passou para a segunda opção. Aproximou-se lentamente, ajeitando meu cabelo atrás da orelha.

Fechei os olhos por um segundo, controlando ao máximo o arrepio que teimava em percorrer minha coluna. Meu coração estava ainda mais acelerado e eu podia sentir o cheiro delicioso daquele maldito, me lembrando de todas as vezes em que enfiei meu nariz na curva de seu pescoço apenas para sentir aquele aroma.

Queria empurrá-lo para longe, mas eu corpo estava acostumado demais com aquilo para me obedecer.

— Pensei em você todos os dias, amor — sussurrou. — Lembrei de cada momento em que estivemos juntos e de tudo que sentia. Que sinto.

Meu coração deu mais alguns pulos, tentando me enganar, mas não desviei os olhos dos seus, a centímetros de distância.

— Nunca deixei de te amar, Dêssa — revelou, apoiando sua testa na minha.

Resolvi dar esse presente a ele, mesmo não acreditando por completo em tudo.

Apenas um pouquinho, porque ainda queria que fosse verdade e que tudo ficasse bem outra vez. Era a parte demente e apaixonada de meu cérebro tentando me pregar uma peça.

— Só fiquei um pouco confuso, mas sempre te amei. Ainda amo. Muito. Nunca vou amar outra pessoa desse jeito — murmurou. — E sempre falei para todas que tinha namorada, eu juro. Eram apenas casinhos sem importância. Era só pela emoção, não sei, sou um idiota.

Virei o rosto depois de ouvir aquilo, engolindo o nó que havia se formado em minha garganta. Eu não derramaria uma lágrima na sua frente. Nunca mais.

Eram mesmo várias as traições. E ele parecia nem perceber o tamanho daquela revelação e o que ela implicava em meus sentimentos.

Ao invés de se afastar e perceber minha expressão de repulsa, o maxilar trincado e minha clara intenção de começar a chorar por ser tão idiota, Bernardo agiu de uma forma que nunca esteve nas mil versões que inventei para aquela conversa.

Ele se agachou, puxando uma de minhas mãos. Depois sacou do bolso da calça uma caixinha preta de veludo e a abriu, revelando duas alianças douradas.

— Casa comigo, Dêssa? — perguntou, sorrindo daquela forma que sempre fazia meu coração se alegrar.

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