Capítulo 7

Duas semanas depois do ocorrido, achei que nunca mais veria meu dinheiro. Cassiani havia sido solto, mas ninguém me atendia no número que me deu. Às vezes só chamava, outras nem tinha sinal. E cada dia ficava mais preocupada de não receber meus honorários. Até porque já havíamos conversado e Cassiani prometera me entregar pessoalmente quando saísse.

Naquele dia, precisava mais uma vez ir ao presídio pegar a assinatura de um garoto que havia sido preso com drogas e que outro preso havia me indicado. Nem o conhecia ainda, mas já havia conseguido encontrar todo o processo com os dados que me enviara pelo W******p. Sim, porque eles conseguiam se comunicar com o lado de fora muito fácil atualmente. Provavelmente era mais fácil falar com alguém que estivesse lá dentro do que com Carolina, que era a rainha de me deixar no vácuo por horas.

Entrei na sala e me aproximei do garoto que parecia ser o tal Diógenes. Ele era magrelo e mulato, como a maioria dos meus clientes. E jovem. Provavelmente tinha menos de vinte anos. A maioria tinha. E era esse tipo a maior parte dos meus clientes: garotos negros na faixa nos vinte pegos com drogas ou armas de fogo.

Sentei no banco diante de Diógenes, sorrindo amigavelmente e largando a pasta e a caneta na mesa.

Foi quando senti o perfume horrível.

Não me entenda mal, o garoto não estava fedendo a suor e sujeira. Por incrível que pareça, eles sempre estavam impecáveis quando vinham me ver. Era uma regra. Não era apenas porque era sua advogada, era por ser mulher. Dia de visita era dia de tomar banho, fazer a barba, cortar as unhas e se perfumar.

O maldito perfume ou desodorante, entretanto, tinha um cheiro pavoroso, doce e enjoativo, como chá de limão e mel. Tão enjoativo que precisei parar para respirar fundo umas cinco ou seis vezes. Porém, ao invés de me sentir melhor, o enjoo se tornou ainda mais forte.

Precisei correr até a lixeira mais próximo para vomitar, mas consegui segurar a tempo de não passar essa vergonha. Quando voltei até o garoto, ele me olhava com uma expressão assustada. Achei melhor dizer apenas que estava com uma indigestão, não queria ofendê-lo. Ele tinha se arrumado todo para me receber!

Diógenes assinou a procuração e me desejou melhoras enquanto eu me segurava para não ter outro ataque, respirando o mínimo possível pelo nariz e tentando não fazer cara de nojo, coisa que era minha especialidade. Assim que entregou toda a papelada, quase voei de volta para o carro o mais rápido possível, me distanciando daquele cheiro insuportável. Sentei no banco do motorista, ainda com a porta aberta, e respirei fundo, esperando que passasse. Levei pelo menos dois minutos para voltar ao normal.

Quando enfim me senti melhor, pensei em tentar mais uma vez telefonar para o número da esposa de Cassiani. Peguei o celular para discar e de repente um lampejo de memória surgiu em minha mente: o dia em que atendera ao telefone dentro do carro, no posto de combustíveis. A mulher havia me ligado do número da cunhada, o que significava que havia um outro número para discar. E eu tonta havia esquecido.

Fazia duas semanas, mas, rolando as últimas chamadas, consegui recuperar o número pela data e hora da ligação. Sem perder tempo, disquei e esperei alguém atender.

— Alô — disse uma voz feminina e jovem do outro lado.

Não parecia ser a esposa dele.

— Oi, aqui é doutora Andressa, advogada do Cassiani — falei, mesmo assim.

— Ah, doutora, graças a Deus a senhora ligou — disse a garota. — Perdemos seu número e o Cassiani tá desesperado atrás da senhora. Ele precisa muito falar com a senhora.

Comecei a falar, mas pareceu que ninguém mais estava ouvindo. Ouvi vozes ao fundo, sem conseguir identificar o que diziam.

Depois de alguns segundos, a voz grave de meu cliente surgiu do outro lado da linha:

— Doutora, graças a Deus. Achei que nunca mais encontraria a senhora.

— Eu que o diga, Cassiani — reclamei, rindo. — O número que você me deu não funciona, ninguém atende. Levei duas semanas pra lembrar que a sua mulher havia me ligado de outro número.

— Ah, bem, ela perdeu aquele número por não colocar crédito, sabe como é — respondeu, envergonhado. — Mas a senhora precisa muito vir aqui na minha casa. Pra eu lhe pagar.

— Bem, pode falar. Onde você mora?

Ele me deu o endereço em uma rua, sem número. Dava na margem do rio, em uma avenida que não tinha absolutamente nenhuma residência.

Mas que infernos? Onde será que o cara vivia? Que esquisito!

Pedi então que me buscassem em um ponto de encontro, no estabelecimento mais próximo, pois daquele jeito não encontraria o local. Um certo receio passou por minha mente, porém precisava me acostumar com as coisas esquisitas que aconteciam naquele trabalho.

Cassiani então disse que esperasse, no dia seguinte, no estacionamento de um posto de combustíveis próximo ao local.

No dia seguinte, ao levantar, às 9h30 (porque tinha ficado até tarde assistindo Netflix), havia mais de vinte mensagens no W******p. A maioria era de clientes, porque eles achavam muito mais simples enviar mensagens de áudio do que me ligar e falar tudo de uma vez.

Também havia algumas mensagens de Carolina e Luana, memes idiotas. Minhas amigas eram muito bestas mesmo, especialmente a primeira, que via graça em tudo e vivia me enviando vídeos. Eu não sabia dizer se em outras circunstâncias teria virado amiga daquela maluca.

Levantei e andei até minha cozinha, direto no armário onde ficava o pó do café. Precisava acordar logo, porque tinha muito trabalho para fazer. Abri o pote de vidro, esperando sentir aquele aroma delicioso, como fazia em todas as manhãs. Contudo, diferente do que sempre acontecia, aquele odor subiu em minhas narinas e desceu direto para meu estômago, me fazendo correr até o banheiro para vomitar.

Mas que porcaria estava acontecendo! O que havia comido para ficar assim tão mal?

Tentei lembrar de cada alimento que havia passado por minhas mãos. Eu era a rainha de comer coisas na rua por preguiça de cozinhar só para uma pessoa.

Por uns trinta segundos repassei meus passos naquela semana. Então a noite com Henrique magicamente surgiu em meu pensamento como um lembrete da grande burrada que havíamos feito. Até aquele instante, nunca havia parado para refletir sobre o que havia acontecido e a possibilidade de uma grande merda acontecer. Mas o fato era que parara de tomar anticoncepcional logo após o término com Bernardo, pois estava com raiva e não tinha a menor vontade de ficar me lembrando de tomar pílula todo dia.

E ter transado com alguém duas semanas depois do término não pareceu um problema, porque havíamos usado preservativo. Tínhamos visto a prova disso naquela manhã. Não havia como ter dado errado, havia?

Além do mais, do jeito que meus seios andavam inchados e doloridos, tinha certeza de que minha menstruação desceria a qualquer instante. E até poderia estar desregulada, um ou dois dias era algo normal.

Corri de volta para a cozinha e peguei o celular no balcão, procurando o aplicativo em que conferia meu ciclo menstrual. Porque mesmo me prevenindo com pílula e camisinha, ainda não confiava em minha própria memória para lembrar de tomar os comprimidos, que foi justamente o motivo pelo qual parei de tomá-los assim que rompi com Bernardo.

Para minha total surpresa, minha próxima menstruação deveria ter acontecido dia primeiro de maio, há exatos quinze dias. Eu estava há duas semanas atrasada e nem havia percebido nada por causa das correrias e da falta de preocupação com o assunto!

Não, não, não!!!!! Não podia ser!!!! Isso não podia ter acontecido comigo! Justo comigo!

Havia transado com Henrique justamente no meu período fértil! O que significava que, ou a camisinha havia estourado ou nós sequer a havíamos usado. Eu nem tinha conferido no lixo, confiando plenamente no bendito pacote de preservativo.

Comecei a gritar bem alto, como uma louca, sem me importar com o que os vizinhos pensariam de mim. Gritei tanto que acabei começando a chorar. Aquilo devia ser um castigo por tudo de ruim que fizera na vida!

Nem havia feito um teste, mas os indícios já eram suficientes para uma pessoa tão pragmática e organizada quanto eu. Estava grávida. E sem dúvidas era do primo de minha melhor amiga, com quem não tinha nenhum relacionamento. Por quem não tinha nenhum sentimento. E quem provavelmente me detestava.

Ele ia me matar, com toda certeza!

Não fazia a mínima ideia de como contaria uma coisa dessas a ele. E a sua prima. Carolina, irritante como era, ficaria muito mais contente que nós dois. E era o motivo pelo qual não sentia a mínima vontade de revelar a ninguém.

Talvez o melhor fosse esconder a verdade e enfrentar aquele tormento sozinha sem nunca contar quem era o pai.

Bem, essa era a pior ideia do mundo. Quer dizer, e se a criança nascesse com a cara de Henrique? Não havia como esconder a verdade por muito tempo. Mas será que ele ao menos desconfiaria de tudo?

Seria muita idiotice de minha parte tentar essa opção. Eu teria que contar. O problema era que nem ao menos tinha o número dele para m****r uma mensagem e por rede social seria muito esquisito.

Depois de chorar e soluçar por vários minutos me culpando por ser a pessoa mais burra e estúpida do mundo, ouvi o alerta do celular me lembrando que precisava ir até a casa de Cassiani. Como faria essa reunião com o rosto todo inchado e vermelho? Se é que conseguiria parar de chorar até chegar a sua casa, porque naquele momento parecia não conseguir.

Eu não podia estar grávida. Muito menos de Henrique!

Porcaria!

Em um mundo onde as mulheres sempre eram criadas para crescer, encontrar um marido, casar e ter filhos, eu vivia em uma família privilegiada. Enquanto outros pais presenteavam as filhas com eletrodomésticos de brinquedos, bonecas e roupas cor-de-rosa, os meus me davam livros, viagens, jogos e produtos eletrônicos.

Não fui influenciada a ser mãe. Por mais que fosse filha única, o único desejo de meus pais era que fosse tudo aquilo que desejasse ser. E, para isso, deveria estudar muito, trabalhar muito, e o desejo de ser mãe nunca esteve presente em meu pensamento.

Quer dizer, já tinha 27 anos, não era como se fosse uma adolescente. Eu já tinha estudado, tinha emprego, casa e carro. E mesmo assim continuava me sentindo uma adolescente, não uma adulta. Como cuidaria de uma criança se nem sabia cuidar de mim mesma?

Aquele instinto materno que dizem que temos desde que nascemos? Provavelmente me roubaram. Eu não era boa com crianças. Nem gostava de ficar perto delas. Como criaria uma?

Uma hora já havia passado quando me dei conta de que continuava sentada em uma cadeira, olhando para o nada, tentando entender o que havia acontecido. Tentando saber o que fazer. Como fazer.

Meu celular despertou novamente me avisando da visita a Cassiani em quinze minutos. Então me vesti apressada, sem nem lembrar que não havia tomado café.

...

Minutos mais tarde, estacionava no posto indicado e uma garota mulata e magrela com trancinhas me recebia com um sorriso feliz.

Ela me cumprimentou, dizendo se chamar Jênifer e ser a cunhada de Cassiani. Então me guiou pelo caminho, atravessando a avenida pouco movimentada naquele horário, até que chegamos à margem do rio. Abaixo, descendo um barranco, havia uma casa de madeira e peças metálicas reutilizadas, minúscula.

Não tinha como eles viverem naquele lugar, pensei de imediato. Contudo, uma família pobre poderia viver nos locais mais inimagináveis para uma pessoa branca e rica como eu.

Mesmo sem salto, com uma bota de couro de montaria, foi bastante difícil descer a encosta de terra úmida, me segurando em galhos de árvores próximas.

Quando chegamos, havia cinco crianças correndo, de bermuda e chinelo, mesmo com todo o frio que estava na rua. Cassiani corria junto, chutando uma bola velha e suja de barro, mas parou assim que me viu e veio até nós apresentar toda a família.

— Doutora, estávamos esperando a senhora! — ele disse.

— Tudo bem, Cassiani? — respondi.

— Tudo ótimo agora que tô aqui com minha família, né? — riu. — Tâmo curtindo meus dias em casa.

Meus olhos acabaram me traindo e me vi observando o barraco ou suposta casa imaginando como caberia tanta gente lá dentro. A risada grave de Cassiani me chamou de volta para ele e as crianças.

— A gente não mora aqui, não, doutora!

— Ah, não? — quis saber.

— Essa é nossa casa de praia!

Tenho certeza que fiz uma expressão confusa com a explicação. Ali não havia mar nem areia para ser uma casa de praia. Estávamos em plena cidade, nas margens do rio. Mas, bem, às vezes a gente esquece das outras realidades sociais. Para aquela família, aquilo era uma casa de veraneio, portanto, casa de praia.

Me senti mais aliviada em saber que a família não vivia naquele local. Não queria nem imaginar como conseguiriam dormir todos em um espaço dois por dois.

Cassiani então apresentou os cinco filhos que estavam jogando, todos muito parecidos, mas com diferentes idades. Iam de cinco a doze anos.  Logo surgiu de dentro da casinha uma mulher, que imaginei ser a esposa, carregando no colo um menino que devia ter mais ou menos um ano. Ela era morena, mais clara que a irmã, e era muito bonita, com os cabelos cacheados e longos, não tão escuros quanto os da irmã. Tinha os olhos de um castanho claro, o nariz pequeno e os lábios fartos que lhe conferiam uma beleza exótica. Era alta, mas não tão magra quanto a outra, tendo mais quadril e coxas grossas. Devia ter apenas trinta anos.

— Essa é a Mariane, mãe dos meus filhos.

Achei estranha a colocação, mas fingi ignorar. Ela notou e fez uma expressão de irritada para o homem.

— Muito prazer, doutora — disse. — A gente tava esperando a senhora.

Eu me sentia como provavelmente se sentiriam as atrizes famosas, cheia de gente em volta como se eu fosse a oitava maravilha do mundo.

— Vai buscar o dinheiro, mulher — pediu Cassiani, depois de um tempo de silêncio.

Mariane se virou e entrou na casa, não sem antes entregar o bebê para a irmã. Ela então me trouxe um bolo de dinheiro embolorado. De verdade. Eu nunca tinha visto tanto dinheiro junto. Era dinheiro de tráfico, tinha certeza, mas não os podia julgar. Com seis filhos, devia ser muito difícil de conseguir trabalho.

Cassiani explicou que tinha mais dinheiro do que havíamos combinado porque queria que ficasse sempre atenta para o que quer que acontecesse. Imaginei que muita coisa ainda ia rolar para ele estar querendo se antecipar daquela forma.

— A Mari tá grávida de novo, doutora — explicou. — Não posso deixar ela sozinha. Não posso voltar pra lá e deixar eles todos sozinhos.

Ouvir que a mulher na minha frente estava esperando um bebê de repente me fez recordar de que também poderia estar e comecei a me sentir estranha e pesada, com tudo escurecendo.

— A doutora tá branca, Chocolate. Leva ela pra dentro — mandou Mariane.

Cassiani me pegou no colo como se fosse uma almofada leve e me levou até o casebre escuro, mas estranhamente limpo, mesmo naquelas condições. Fui deixada em um sofá verde limão meio gasto. Logo a garota, Jênifer, irmã de Cassiani, me trouxe um copo com água.

— Não dá essa água pra ela! — gritou Mariane. — Vou ferver e fazer um chá pra ela esquentar. Deve tá com frio.

Todo aquele cuidado de uma família que nem era a minha pareceu tão forte e especial e quando vi já estava chorando, nervosa, enquanto todos me olhavam da entrada.

A esposa mandou todo mundo sair da casa, especialmente as crianças, e ficamos apenas nós duas e a cunhada.

— A senhora tá grávida, não tá? — ela perguntou, gentilmente, pousando a mão sobre a minha.

Mais lágrimas saíram de meus olhos e comecei a tremer.

— Como é que você sabe? — consegui perguntar, sem compreender.

— Esse é meu sétimo filho, doutora. É claro que sei.

Meu choro se intensificou e comecei a soluçar. Logo Jênifer trouxe o chá, de camomila, em uma xícara de metal.

— A senhora é casada? — quis saber ela, me entregando a xícara.

— Não — confessei.

— Então é por isso que tá tão desesperada? Ele não quis assumir, foi? — concluiu Mariane, sem me deixar responder. — Olha, uma criança é uma benção, de verdade. Hoje pode parecer horrível, mas ela vai mudar a sua vida. Às vezes pode parecer ruim, mas vai ter momentos ótimos. E eu tenho bastante experiência nisso.

— Ele não sabe — revelei, depois de beber um gole do chá.

Não fazia ideia porque estava falando tudo aquilo a duas desconhecidas. Parecia muito mais fácil não ser julgada.

— Como assim? É casado?

Mariane e Jênifer se olharam, assustadas.

— Não, não é — falei. — Ainda não contei pra ninguém.

— Se ele não é casado, então vocês são namorados. — a mulher deduziu. — Então a senhora precisa contar pra ele. Talvez ele fique feliz. O Cassiani quase morreu quando falei que teria outro filho, mas agora tá bem feliz.

Quando vi, estava revelando baixinho para duas completas estranhas tudo o que havia acontecido: a traição de Bernardo, a noite com Henrique, o fato de nos odiarmos desde crianças, e ele ser justamente primo de minha melhor amiga.

— Uma melhor amiga é tudo nessa vida, sabe. — Mariane disse. — A senhora devia começar contando pra ela.

Já havia parado de chorar naquela altura e me sentia um pouco menos tonta por causa do chá, então estava começando a raciocinar. Precisava mesmo começar por algum lugar. Talvez minha melhor amiga fosse mesmo a melhor escolha.

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