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CAPÍTULO 4

Corri os olhos pelos armários da pequena cozinha à procura de algo que pudesse transformar em uma refeição decente, já que a última vez que colocara alguma coisa no estômago fora no jantar, antes de tomar quase uma garrafa de vinho. Estava com o corpo inclinado dentro da geladeira, quando ouvi aquela voz encorpada e grossa, me assustando profundamente:

— O que você está fazendo? — Perguntou, me deixando vermelha, como se tivesse sido pega fazendo algo de errado.

— Estou procurando algo para comer. Bia disse que eu podia me virar em sua cozinha. — Senti-me desconfortável ao ficar de frente para aquele homem alto e forte.

— Você veio direto de São Paulo para cá?

— Sim. Confesso que estou morrendo de fome.

— Tem pão no armário de cima, e frios nos potes de tampa vermelha, aí. — Indicou os potes colocados com perfeição na prateleira da geladeira.

— Quer que lhe faça um sanduíche também? Ou prefere arroz com salada? Posso fazer rapidinho.

— Acho que não tenho tempo para isso — respondeu, me observando atentamente — Por que te enviaram? — Perguntou estreitando os olhos.

— Porque você pediu um advogado.

— Exatamente. Pedi um advogado. — Sua resposta me deixou furiosa.

Peguei o pão e os frios, tentando controlar minha língua, antes que falasse umas poucas e boas ao grande macho à minha frente. Coloquei os ingredientes na mesa, peguei uma faca do faqueiro, e olhei-o intensamente.

— Posso ser tão boa quanto um advogado. Ouso dizer que sou até melhor. — Respondi brandindo a faca em sua direção, o que lhe conferiu uma sonora gargalhada, me deixando ainda mais furiosa.

— Não tenho dúvida que você é bem melhor do que um advogado — respondeu me avaliando de cima a baixo, me constrangendo — Ainda quero saber por que está aqui.

— Já disse! Você precisa de mim. — Respondi com o queixo erguido, enfrentando aqueles olhos cor de mel.

— Acho que saberia se precisasse realmente de você. — Seu sorriso era cínico.

Aquela conversa não estava dando certo. O troglodita distorcia todas as minhas falas.

— Acho melhor começarmos de novo, senhor Nicolas Barreto — respirei profundamente — Estou aqui porque o senhor solicitou os serviços da firma Jarbas Monteiro & Associados, para evitar uma disputa judicial.

— Eu sei o motivo de ter solicitado os serviços de sua firma. Quero saber o que realmente está fazendo aqui. Por que uma jovem bonita como você, se meteu nesse fim de mundo, em pleno feriado prolongado? Você não parece que morre de amores em andar no meio do mato.

— Pois saiba você que eu poderia viver a vida inteira num lugar como esse. — Ergui o queixo, soando arrogante.

— Pode mesmo? Consegue viver sem a sofisticação dos bares da cidade grande, dos restaurantes, dos hotéis, dos shoppings, dos cinemas e teatros? Consegue deitar cedo, ouvindo o som dos grilos cantando fora da sua janela, tendo a lua fria como companheira, num quarto perdido no meio do nada? — Seus olhos soltavam faíscas ao me encarar rudemente.

— Escuta aqui! Não sei por que o senhor resolveu me tratar como sua inimiga. Estou aqui para ajudá-lo, porém, se não quer minha ajuda, é só dizer que arrumo minhas malas e vou-me embora daqui agora mesmo. A propósito, embora hoje more em São Paulo, eu passava minhas férias em Dois Córregos; conhece? Lá cresci, ouvindo as histórias de fantasmas, que meu avô nos contava, nas noites frias, quando estávamos de férias. Subia em árvores, chupava frutas do pé, andava de bicicleta, brigava com os meninos e brincava de amarelinha. — Disse num rompante só, enquanto ele sorria com os olhos.

— Você ainda não respondeu minha pergunta. Do que está fugindo? — Perguntou, aproximando-se perigosamente de mim, me fazendo engolir em seco, com medo de denunciar meus sentimentos diante de seu olhar inquiridor.

— Esse assunto não lhe diz respeito. Não lhe devo satisfação da minha vida pessoal. Como disse, estou aqui para resolver o seu problema, e não o meu. — Encarei-o, estando ele bem próximo a mim.

Seus olhos percorreram meu rosto, desafiando-me. Sustentei seu olhar e por um louco segundo, imaginei como seria aquela boca cobrindo a minha; como seria o toque daquela mão áspera deslizando por minha pele.

— Acho melhor você comer, advogada. Parece estar faminta. — Disse e se virou, me deixando sozinha na cozinha.

Aquilo não devia estar acontecendo. O cara era um trator, passando por cima de tudo sem piedade. Entretanto um trator com um charme revoltante. Talvez devesse ir realmente embora daquele lugar, antes que ficasse de cabeça virada. Não é raro advogados se sentirem atraídos por seus clientes, porém, aquilo estava ficando extremante perigoso, em todos os sentidos. Não recomendado. O cara conseguia mexer com meus pensamentos, com meu corpo, minha alma, meu coração dorido; não sei bem por que me sentia assim, mas não iria me deixar envolver por mais nenhum rosto bonito. Fiz um lanche, e depois de comer com um prazer acentuado, resolvi fazer uma excursão pelo lugar, já que, mais uma vez, não tive a chance de conversar com ele a respeito do problema que me trouxera até ali.

Andei pelo haras, apreciando a beleza simples do lugar e pensando que poderia realmente viver ali numa boa, apenas ouvindo o som dos pássaros e sentindo o sol no rosto. Pus-me a pensar como seria acordar com a sinfonia do passaredo, sem ter que me preocupar com a hora e nem com qual roupa vestir para enfrentar um Fórum. Estudei muito para me formar e arranjar um emprego dos sonhos, entretanto, depois de ver o modo como Artur só pensava em se promover, lambendo as botas do Doutor Jarbas, comecei a pensar se era aquilo que queria para minha vida. Caminhei até a cerca branquinha e me debrucei sobre ela, sentindo a brisa fresca na face. Naquele feriado, o lugar encontrava-se praticamente vazio, com um ou outro funcionário. Parece que todo mundo tinha ido à cidade ajudar no tal casamento. Entrei, com um pouco de receio, mas curiosa, no pavilhão onde ficavam as baias dos cavalos. Ver a moça com um deles aguçou meu desejo de ver um bem de perto. Lá estavam os mais belos cavalos que já tinha visto em toda a minha vida. Obviamente que havia visto poucos, porém, aqueles tinham algo de diferente, o que podia ser observado em suas posturas, pelagens e beleza.

— Ei, grandão! Como você é bonito! — Exclamei, aproximando-me devagar de uma das baias, onde se encontrava um cavalo de pelagem branca, com uma mancha preta na testa.

— É fêmea. — Disse o dono da voz grossa, atrás de mim.

— O que disse? — Perguntei surpresa.

— Não é grandão. É uma fêmea. Estrela — respondeu, afagando a égua — Como vai menina?

— Ela é maravilhosa! Nunca vi uma égua tão grande assim. Posso tocá-la?

— Passe a mão aqui — indicou a mancha na testa do animal — assim, devagar.

Nossas mãos se tocaram por meros segundos, mas foi o suficiente para sentir o clima mudar entre nós. Aquilo estava ficando esquisito, então me afastei dos dois.

— O que você faz exatamente nesse lugar? — Perguntei, tentando voltar ao normal.

— Crio cavalos. — Respondeu com um sorriso torto, me olhando como se fosse uma criança de dois anos que não entende nada de negócios.

— Eu sei que você cria cavalos. É um tanto óbvio — repliquei, começando a ficar com raiva novamente — Quero saber se esse lugar atende a alunos, como uma hípica, ou se você apenas comercializa os seus cavalos.

Ele sorriu e me disse sem rodeios:

— Gosto de implicar com você, advogada.

— Percebi, porém não entendo por quê!

— Meu pai passou a fazenda para mim há alguns anos. Essa era uma fazenda de café, porém, resolvi transformá-la no que é hoje. Comprei meu primeiro padreador, e comecei a criar cavalos de raça no intuito de treiná-los para os desportistas.

— Padreador? O que vem a ser isso?

— Padreador é um reprodutor. Se você tem um bom reprodutor, tem a garantia de poder inseminar as fêmeas, dando continuidade a uma raça de grande valor genético, principalmente pela inseminação artificial que evita várias doenças sexuais.

— Sério? Tem isso também?

— Tem sim. A inseminação artificial tem várias vantagens, já que permite um grande número de progênies por macho de uma única vez, além de manter a linhagem de um reprodutor já morto, preservando-a, por exemplo. Podemos também usar o material genético de um reprodutor incapacitado e sob muitos aspectos, favorecer os meios úteis de pesquisas da fisiologia reprodutiva de machos e fêmeas.

— Reprodutor incapacitado? O que quer dizer?

— Por exemplo, um cavalo que sofreu alguma fratura durante um treino. Se não houver a necessidade de abatê-lo, coloca-se o gesso no animal até a solidificação do osso, porém esse cavalo não poderá mais ser usado para tarefas rotineiras. Servirá apenas como reprodutor.

— Interessante. Com qual a raça você trabalha?

— Com várias. A Estrela, aqui, é uma appaloosa snowflake. É um animal de competição — corridas e saltos. Já aquele ali, é o Raio — disse apontando para a baia seguinte, onde havia um cavalo castanho, imenso — Ele é um Andaluz. Embora não seja muito veloz, é ágil e atlético. Ótimo para adestramentos e shows. O terceiro ali, o Meia-Noite, é o mais harmonioso dos cavalos. É um Árabe. A sua cauda tem fios sedosos e longos. É usado para diversos fins, como passeio, corridas, saltos de obstáculos, na lida do gado, e até mesmo usado em circo.

— É lindo! Exala força e vitalidade.

— Ele é exatamente assim. — Olhou-me com o semblante curioso.

— Você comercializa esse material genético, ou é apenas para uso na fazenda?

— Comercializo, ou melhor, comercializava.

— Por quê? O que aconteceu?

— Parece que não está mais havendo tanto interesse assim nos meus padreadores.

— E você sabe o motivo? O que alegaram?

— Que não estão precisando do produto no momento.

— Isso é normal? Tentou novos compradores? — Perguntei ao perceber seu semblante anuviado.

— Eu não cuidava diretamente dessa transação. Havia uma pessoa que fazia esse trabalho para mim.

— Entendo. Essa pessoa não tentou novos compradores? De repente, se você colocar em algum site de vendas na internet, ou numa página do Haras, acredito que terá o resultado que espera sem precisar contar com seus exs-compradores.

— Como disse, havia uma pessoa que cuidava dessa transação para mim. Ela foi embora. — Respondeu taciturno.

— Não pode contratar outra? Ninguém é insubstituível. — Ele me olhou de uma forma estranha.

— Eu preciso ir. Tenho algumas coisas para resolver. — Disse, e simplesmente me deixou mais uma vez sozinha.

O homem era jogo duro. Sempre que aparecia uma chance de eu falar com ele sobre o motivo de estar ali, o grandão me deixava falando sozinha. Perplexa, saí do pavilhão e continuei com minha expedição. Segui a trilha ao longo dos piquetes ou cercas brancas que separavam os pastos, a caminho de uma árvore solitária e gigantesca há alguns metros dali. Parecia um lugar ideal para se descansar depois de um dia puxado no campo. Sua sombra era frondosa e convidativa. Pensei em descansar ali, quem sabe até tirar um cochilo e deixar o ar saudável tirar a poluição de São Paulo dos pulmões.  A manhã tinha passado tão rápida e a tarde estava indo do mesmo jeito. Embora todo aquele sossego me deixasse lânguida e preguiçosa, recriminava-me por não estar tentando resolver o problema que me levara até ali. Alguns metros antes de eu chegar à árvore, vi a moça do cavalo surgir por detrás do tronco. Parou e se pôs a me encarar novamente. Reparei que ela usava um vestidinho azul de alcinha, estampado com florezinhas. Havia algo de estranho nela. Pensei-a uma cabocla desconfiada que não gostava muito do povo da cidade. Tentei ser agradável acenando. Estava bem próxima a ela, entretanto ignorou-me mais uma vez. Intrigada, apertei o passo em sua direção, o que a fez girar e se esconder atrás do tronco da árvore, me fazendo perdê-la de vista. Corri atrás dela, decidida a confrontá-la. Não estava ali para causar problemas a ela e nem a ninguém. Faria meu trabalho e voltaria para casa sem maiores consequências.  Cheguei à árvore e logo a contornei. Par minha surpresa, uma trilha de terra batida seguia até a entrada de um bosque e lá estava ela, perscrutando-me atrás de uma árvore, instigando-me a segui-la.

— Hei, espera! — Gritei, enquanto olhava para o chão procurando não escorregar na trilha que começava a ficar íngreme. Quando voltei o olhar em sua direção, ela havia desaparecido.

Estaquei por alguns instantes pensando se deveria continuar a segui-la. Ao mesmo tempo em que desejava continuar, algo me dizia para voltar. Era uma sensação. Olhei para o relógio e depois para o lugar onde acabara de vê-la. Decidi, intrigada com a atitude da moça, a continuar. Chegando ao local em que a tinha visto pela última vez, quase dentro do bosque, parei e olhei para os lados, tentando imaginar para onde ela tinha ido. Então, por entre as árvores, vi um pedaço de sua saia balançando.

— Hei, por que está fugindo de mim? Podemos conversar?

Fiquei indecisa novamente. A tarde estava querendo se transformar em noite e um vento gelado começava a soprar. Meu lado detetivesco queria que eu fosse atrás dela. Talvez ela morasse além do bosque; e se houvesse uma casa ali, poderíamos conversar e, quem sabe, tomar um café. Quando dei um passo à frente, senti um arrepio percorrer meu corpo. O vento intensificou gelando-me a alma. Olhei, por sobre o ombro, para a grande árvore solitária na frente da trilha, e depois para dentro do bosque. Contra todo o meu racional, prestei atenção às batidas aceleradas do meu coração, e amedrontada, confesso, retornei à casa de Nick. No dia seguinte perguntaria a Bia quem era a moça, e onde ela morava.

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