— Miguel, você precisa me ajudar — disse Heylel o que pareceu ser pela décima vez, encarando o irmão ainda na mesma posição, sem dar nenhum indício de que ajudaria.
— Não vou ficar levando madeira Lúcifer. — O tom de voz debochado e enojado atacava diretamente a pouca paciência que Heylel ainda tentava manter para lidar com ele.
Miguel estava sentado na entrada de uma simples cabana, trajava calça jeans, uma camiseta cinza de mangas curtas e botas. Mexia em um matinho aos seus pés e, como criança contrariando as ordens dos pais, fazia bico para o pedido de ajuda do irmão. A decisão já estava tomada, acataria o castigo dado por seu Pai, mas não facilitaria a vida de Heylel em momento algum.
— Se não me ajudar, não teremos como preparar o jantar, muito menos como nos aquecer à noite. — Lutava contra o desejo de sumir e viver o que deveria viver longe de Miguel e sua arrogância.
Heylel passou por ele com uma pilha de lenha em seus braços, bufando e claramente frustrado com toda a situação. Também vestia uma calça jeans, mas, ao contrário do irmão, estava com o peito nu e o corpo suado pelo esforço, que seria menor se dividido.
— Odeio tudo isso! — o grito ecoou enfurecido, afugentando as aves que se aglomeravam ali perto.
Miguel levantou-se, ainda contrariado, batendo as mãos na calça para tirar a poeira, caminhou até à grande pilha que Heylel havia cortado e empilhou alguns troncos em seu braço, caminhando para dentro da pequena cabana, marchando enraivecido. Sua mente trabalhava acelerada, desejando mil coisas ao mesmo tempo e nenhum desses desejos incluía algo bom ao irmão.
— Sei que odeia, irmão, mas precisamos trabalhar e nos ajudar. — Heylel falou calmamente, contendo-se mais uma vez.
— Não sou seu irmão e pare de achar que é meu pai, detesto quando faz isso. — Apesar das palavras gritadas por ele, todas suas ações diziam o contrário, pois se comportava exatamente como um filho mimado sendo corrigido pelo pai.
— Como quiser Miguel, como quiser — declarou deixando claro o quão frustrado estava com tudo aquilo.
Ele já estava cansado das manhas do irmão, não aguentava mais discutir ou tentar fazê-lo ver que poderia tirar algum proveito daquela situação. Ainda que não entendesse o plano de seu Pai em prendê-los naquela situação, tirando deles a imortalidade, transformando-os em seres humanos limitados, acataria o que quer que viesse dEle. Sabia que os planos de seu Pai seriam sempre melhores que os dele. Havia se afastado dessa verdade uma vez e colhia até os dias de hoje os frutos da rebeldia, não cairia no mesmo erro.
— O que vamos jantar? — Miguel perguntou jogando no chão os troncos que trouxe, fazendo o monte já arrumado se espalhar, tirando Heylel de seus pensamentos e fazendo a gota de paciência que nele existia, desaparecer por completo após o ato.
Heylel virou-se e a fúria estava estampada em sua face, espalmou as mãos sobre a mesa, fazendo o som ecoar por toda a cabana.
— Chega Miguel! — ele gritou, assustando o outro. — Não aguento mais essa sua atitude. Você comerá o que conseguir fazer, tomará banho quente se cortar sua própria lenha e ficará aquecido à noite se acender sua lareira. Estou farto de você e desse seu temperamento egoísta.
Não deu tempo para que o irmão retrucasse, saiu porta afora, deixando-a aberta. Puxou do varal improvisado uma camisa e sumiu da vista de Miguel.
A luz acinzentada do Sheol invadiu o quarto de Yekun, tocando os olhos fechados do casal que dormiam entrelaçados. Naiara tremeu levemente e, como por instinto, ele puxou sobre eles o cobertor grosso, a envolvendo com sua asa esquerda, fazendo seu corpo se encolher ainda mais em busca de aconchego, encostando o nariz gelado em seu peito nu e despertando o sorriso preguiçoso do caído. Se enroscaram um no outro, fundindo-se em braços e pernas. Não haviam dividido nenhum outro tipo de intimidade, estavam esperando o tempo se encarregar de dizer o momento certo, mas ainda assim o pouco que conseguiram conquistar fazia tudo valer a pena. Viviam em uma montanha russa de sentimentos, saciados pela presença e o toque um do outro. Ele, faminto por muito mais. Ela, incerta de seu querer e desejo.Sabia que todos esperavam que enfim ela se encontrasse, saciasse os desejos da menina de dezoito anos e parasse de lutar contra o que o destino escolh
— Ouvi o burburinho, mas precisava ver com meus próprios olhos — começou a dizer Gabriel, que virava-se revelando ser o dono das asas. — Estamos mesmo sem nenhum ponto de referência, demônios andam entre nós agora?O sarcasmo escorria ácido em suas palavras. Em nada ele lembrava o menino carinhoso e gentil que Naiara sempre chamou de melhor amigo. Estava mais alto, ombros largos, olhar altivo, até mesmo os cabelos estavam maiores e os cachos caíam perfeitos sobre sua testa.— Acredito que sim, já que aceitaram sua entrada aqui. — Agares respondeu arqueando a sobrancelha, incitando a resposta de Gabriel.Jamais faria algo para machucá-lo, ainda que a vontade de dar uma boa surra nele fosse uma ideia bem vinda, sabia que não poderia magoar Naiara daquela forma, mas nada o impedia de aproveitar cada encontro para provocá-lo.— Não se c
— Não aguento mais vê-la assim. — Naiara olhava a mãe sentada sozinha em meio ao terreno cinzento e pedregoso, buscando por sua deusa.Há dias não comia, sequer falava com as pessoas que cuidavam e zelavam por ela, saía da cama somente quando a dor em seu coração era tamanha que precisava se conectar com seu sagrado e buscar algum consolo para seu sofrimento.— Ela precisa disso para sentir-se bem — respondeu Yekun, entrelaçando os dedos aos de Naiara. — Ou tão bem quanto ela consegue, vida.— Queria poder fazer mais, odeio essa sensação de impotência.Naiara não deu a ele chance de resposta, virou-se beijando com carinho a sua face e foi direção onde estava sua mãe. Ela sabia bem qual era a sensação de ter alguém que amava longe dela, sem notícias. Mas conseguiu entrar em cont
— Vimos o meu pai — começou a explicar, já sentindo os dedos de Yekun entrelaçando-se aos dela e, de alguma forma, o gesto a irritou ainda mais. — Acho que Deus nos atendeu, não sei... e permitiu que víssemos que ele está bem. — Deu de ombros, não sabia como explicar o que nem ela mesmo entendia e isso a frustrava ainda mais.— Você está muito nervosa, Heylel está mesmo bem? — Era evidente que ela não estava bem e a reação dela ao toque de Yekun evidenciava isso ainda mais.Afastou-se, querendo ter seu espaço pessoal preservado, não queria ser tocada, muito menos sabatinada com perguntas que não teria como responder, e a frustração a irritava tanto quanto as atitudes de Miguel.— Sim, só que... — Tentou explicar e afastou-se ainda mais, mas a mãe veio ao seu socorro, coloc
Yekun chegou impiedoso na sala, vendo todos se levantando do chão. Apenas alguns minutos haviam se passado e o caos na mente e coração de Naiara quase levou a morada à destruição e sua família à morte. Assim que viu seus dedos se movendo, sabia que a menina o atingiria, somente não passava por sua cabeça que teria poder o bastante para, não somente o tirar de lá, mas enviá-lo para um lugar entre os mundos que poucos se permitiam estar, como se fosse uma bolsa entre o Sheol e a terra, um imenso espaço onde o tempo não existia, somente o vazio.Precisou de todo o seu esforço físico para conseguir se desprender do lugar onde estava e não permitir que sua mente fosse tomada pelo vazio que ali habitava e assim conseguir voltar para sua família e tentar ajudá-los de alguma forma.Chocou-se assim que atravessou a porta, deparando-se com a
Os dois chocaram-se contra o colchão, ele envolveu as pernas ao redor das pernas dela e os braços ao redor de seu corpo. Usava toda sua força para conseguir conter Naiara, sentia o suor escorrer e os cabelos grudarem em sua face.— Nai, por favor, se controla. Ouça a minha voz, sou eu, estou aqui com você — ele dizia com dificuldade no ouvido da menina. — Você é mais forte do que isso, pode conter, você tem o seu destino nas mãos, Nai, é você quem decide, lembra?— Eu não consigo. — Enfim ela conseguiu dizer.— Consegue, ouça a minha voz, estou aqui, você não está sozinha.Com cuidado ele acariciava o rosto dela, ainda falando baixo em seu ouvido. Sentiu o corpo de Naiara relaxar e aos poucos a luz vermelha ceder, ficando clara e em uma linha fina ao redor dela.— Estou aqui, Nai, estou aqui — en
Após os momentos de silêncio entre ele e o Pai, Miguel teve o direito de voltar, sabendo que em nada aquele castigo adiantou, apenas deixou-o ainda mais bravo e desejoso por colocar em prática o plano que mataria aquela que, ao seus olhos, não passava de uma aberração e, com seu fim, teria o fim de Heylel.— Mas a que devo a honra de uma visita tão ilustre? — Belial sorria diabolicamente, olhando para Miguel parado a sua frente.— Pare de gracinhas Belial, precisamos começar a trabalhar — respondeu seriamente, deixando claro que não estava com humor para brincadeiras.— Trabalhar? — O tom irônico ainda dominava a conversa. — Ouvi falar que seu pai colocou-o de castigo, já pode sair para brincar?— Belial... — Miguel começou a dizer, enquanto aproximava-se um pouco mais. — Acha mesmo sensato o que está fazendo
Miguel recolheu suas asas e sentou-se no banco de madeira da simples igreja, mostrando o espaço vago ao seu lado para que Robert fizesse o mesmo.Ele o atendeu de pronto.Robert acreditava em um mundo sobrenatural, acreditava que anjos e demônios caminhavam entre os humanos e que em algum momento se mostrariam face a face, portanto não se surpreendeu ou abalou-se diante da aparição, ao contrário, sentia-se privilegiado por vivenciar aquele momento e, assim como leu inúmeras vezes em sua bíblia, iria somente crer e obedecer ao querer de Deus.— As crias do inferno estão se colocando contra a igreja e contra tudo o que é certo, afetando a moral e os mandamentos do Pai — começou o discurso que Robert conhecia tão bem. O pastor bebia de cada palavra que saía dos lábios do anjo, como se fossem o mais puro mel. — Estou liderando o exército que colo