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Capítulo I - Jeremias 29.11 (continuação)

— Ouvi o burburinho, mas precisava ver com meus próprios olhos — começou a dizer Gabriel, que virava-se revelando ser o dono das asas. — Estamos mesmo sem nenhum ponto de referência, demônios andam entre nós agora?

O sarcasmo escorria ácido em suas palavras. Em nada ele lembrava o menino carinhoso e gentil que Naiara sempre chamou de melhor amigo. Estava mais alto, ombros largos, olhar altivo, até mesmo os cabelos estavam maiores e os cachos caíam perfeitos sobre sua testa.

— Acredito que sim, já que aceitaram sua entrada aqui. — Agares respondeu arqueando a sobrancelha, incitando a resposta de Gabriel.

Jamais faria algo para machucá-lo, ainda que a vontade de dar uma boa surra nele fosse uma ideia bem vinda, sabia que não poderia magoar Naiara daquela forma, mas nada o impedia de aproveitar cada encontro para provocá-lo.

— Não se compare comigo, demônio. — A voz ecoou alta atingindo a todos ao redor, deixando claro que, a cada dia, espelhava-se mais em Miguel.

— Jamais, bonzinho. — Agares queria atingir e sabia como. Gabriel jamais gostou do apelido e agora, sendo um anjo, achando-se superior, ele sabia que o apelido iria incomodá-lo demais. — Sei que seria doloroso para você lembrar que não é loiro, lindo e de olhos azuis.

Gabriela riu alto, enquanto passavam por ele, continuando sua caminhada. Não encontravam nenhum perigo em Gabriel, por mais que tentasse ser semelhante a Miguel, não conseguia. Ignorá-lo sempre era a saída mais fácil e prática.

— Vou arrancar esse sorriso da sua cara. — A frase foi dita baixa, mas uma ameaça selada.

Agares riu ainda mais alto, afastando-se, deixando o anjo possesso para trás.

O salão estava completo, não havia um único espaço disponível para ser ocupado, a imagem era digna de ser representada no teto de um grande templo religioso. Diego no meio da pequena elevação de terreno verde, seu olhar sereno e pacífico, esquadrinhava a todos e parou de súbito quando encontrou o olhar de Gabriel, parado na última fileira de anjos, braços cruzados no peito, olhar ameaçador, peito nu, em uma posição que aprendeu com seu líder.

Diego sorriu de forma amigável, e a sensação de alívio por saber que ele estava bem se revelou na face do anjo, que não conseguiu disfarçar. Desde o castigo de Miguel, não teve notícias de Gabriel. Um burburinho chegou ao seus ouvidos, alertando que Gabriel estava na morada de Belial, mas ele não quis acreditar naquilo.

Seu discurso começou, somente sendo um ser sobrenatural para ouvir as palavras baixas e brandas que saíam dos lábios grossos de Diego, lembrando uma oração.

— Irmãos, sabemos que dEle vem toda a sabedoria e todas as coisas estão no domínio de Suas mãos. Sendo assim, nosso Pai, mais uma vez, nos constrangeu com o seu amor, levando nossos irmãos Miguel e Lúcifer para serem tratados. — Um pequeno alvoroço começou entre os anjos com a menção de Lúcifer ser ainda chamado de irmão, alguns compadeciam-se do desejo de redenção de Heylel, mas sua grande maioria não acreditava ou não achava justo que, após sua traição, ainda conseguisse a atenção do Pai e tratá-lo como irmão não era admissível.  — Quem sois vós, para julgar o querer dEle? — perguntou Diego da forma mais baixa e branda que poderia, revelando que entendia o que via estampado na face de cada um, calando todos os outros e os constrangendo com tamanho carinho. Continuou: — Ambos estavam se distanciando da verdade e, como cegos, caminhavam sem direção. Precisamos ter em mente que não somos e jamais seremos superiores ao nosso Pai, e Seu querer e vontade são absolutas. — Ele olhava diretamente para Gabriel, desejando com todo o seu coração que as palavras ditas encontrassem morada em sua mente e lhe fizesse voltar atrás em seu comportamento. — Portanto acalmem-se, aquietem os vossos sentimentos e desejos, pois a justiça não está em nossas mãos. Até que a ordem seja liberada do alto, ninguém, ninguém — disse novamente, dando ênfase a palavra — tem autorização para ir até o Sheol ou para aproximar-se da menina de Lúcifer. — E o alvoroço recomeçou. Indignação e falatório tomava o lugar. — Isso é uma ordem! — disse com o tom de voz elevado, dando o assunto por encerrado e o silêncio ganhou lugar.

Anjos caminhavam em grupos, afastando-se, outros sobrevoavam o campo, indo para mais longe. Diego desceu da elevação e caminhou, indo ao encontro de Agares e Gabriela, que o esperavam com um sorriso nos lábios, concordando em silêncio com cada palavra dita.

— Parabéns! — disse Agares com sinceridade. — Suas palavras são sempre carregadas de sabedoria.

— É verdade, irmão, nos lembrou muito o jovem Pedro. — Gabriela recordava sobre um dos jovens da congregação de Robert.

— Pedro tem chamado muito a atenção do Pai, seu caráter e a forma que tem tratado e direcionado as pessoas que tem procurado a congregação, tem sido realmente inspirador.

Um jovem humano se sobressaia dos demais, revelando a sabedoria para conduzir a sua fé, sem insultar ou destratar a fé dos demais, deixando claro que seguia o mandamento, amando o seu próximo sem se preocupar a quem servia, amava ou cria, somente amando como Deus o ensinou a amar.

— Sabedoria é uma virtude que poucos tem, fico feliz em saber que existe alguém entre os humanos parecido com você. — O demônio estava sendo realmente sincero em seu elogio, acreditava no coração e na verdade de Diego.

— Toda a sabedoria vem do alto, meu caro Agares — ele respondeu em meio ao sorriso, nitidamente constrangido com os elogios que recebia.

— Nem toda, já que Ele permitiu isso aqui. — Gabriel disse com raiva, referindo-se a Agares, intrometendo-se na conversa dos três.

Aproximou-se e nem ao menos notaram, como se estivesse se esgueirando, quieto, ouvindo, colhendo informações.

— Gabriel! — repreendeu Diego que já estava cansado de toda aquela situação, sentia-se como um pai sempre no meio da briga de dois filhos mal criados.

— Não precisa se preocupar, Diego — começou Agares. — Deve ser complicado para ele. Quando era bonzinho passou a vida desejando a melhor amiga, ela preferiu se envolver com um demônio do que beijar a boca ressecada dele. Quando ganhou as asas que vieram na caixa do cereal, achou que teria chance e a perdeu para um caído. Difícil para ele essa rejeição toda. — Agares terminou o seu pequeno discurso com uma piscadela na direção de Gabriel.

Seu tom de voz calmo e brincalhão não conseguiu esconder o desejo de atingir Gabriel e fazê-lo se calar. Sabia que usar Naiara era jogo baixo, até mesmo para Agares. Deixar claro que ela não estava com ele e sim nos braços de outro, era insuportável, não conseguia imaginar como o anjo iria se sentir com isso.

— Eu vou matar você! — rosnou em alta voz, deixando claro que foi atingido com toda a força.

Não houve tempo para conter Gabriel, que saltou sobre Agares, fazendo os dois caírem no gramado. Gabriel disparava socos sobre o rosto de Agares, que ria alto com a situação, não ligando para o filete de líquido preto que escorria no canto de sua boca, manchando a pele branca e alguns fios dos cabelos loiros. O demônio estava há centenas de anos à frente do anjo, forjado em grandes batalhas, combates corporais que renderam dias em estado vegetativo, não seriam alguns socos que o intimidaria.

— Sério isso? — perguntou enquanto levava os pés ao peito de Gabriel, jogando-o longe.

Em um impulso, Agares se colocou em pé e caminhou em direção ao corpo de Gabriel que ainda estava caído e não havia cordialidade em seu andar, e muito menos apreço. Ele era o caçador e Gabriel a sua presa.

— Vou te ensinar como brigar com um ser sobrenatural, não está mais na escola, bonzinho. — Os olhos de Agares assumiram sua forma natural, perdendo completamente o azul, dando espaço para o soturno.

Não o mataria, mas daria a surra que deveria ter dado no momento em que se juntou a Miguel e afastou-se de Naiara sem ter dado a ela a chance de se desculpar por seus erros.

— Não me chame assim! — gritou, colocando-se em pé em um pulo, correndo na direção de Agares, que ainda andava decidido e mortal.

Mas não houve o encontro dos corpos. Diego e Gabriela voaram ao mesmo instante, ela parando na frente de Agares, o detendo com as mãos espalmadas em seu peito, ele surgindo na frente de Gabriel, levando as mãos nos braços dele, segurando-o com força e elevando o corpo dos dois em um voo para longe dali.

— Não precisava disso — Agares disse contrariado, tirando com cuidado as mãos de Gabriela de seu corpo.

— Eu sei que não precisava, mas iria matar Gabriel — ela respondeu olhando-o seriamente.

— Jamais faria isso. Matar o bonzinho, mataria a Nai — disse virando-se e andando para longe dela.

Gabriela ficou parada no mesmo lugar, olhando-o se afastar, vendo o único que havia mexido com seus sentimentos, um demônio vindo do Sheol que ainda carregava no peito o sentimento não resolvido pela Herdeira do inferno, ir embora.

— Me larga, Diego! — ele gritava e debatia-se. Diego abriu as mãos, deixando-o cair do alto, vendo Gabriel bater contra o chão.  — Porra! Quer me matar?

Levantou-se extremamente mal humorado, seu racional sabia que jamais teria chance contra Agares ou qualquer outro, nunca brigou em sua vida, não fazia parte de sua personalidade agir por impulso, resolver as coisas com agressão, nada disso fez parte da sua adolescência, então, brigar contra um demônio iria, com toda a certeza, lhe garantir ferimentos sérios.

— Se está querendo mesmo saber... — Diego descia e andava na direção de Gabriel, que o encarava, batendo as mãos na calça branca. — Nesse momento, Gabriel, quero muito descer sua calça, deitar você em meu colo e lhe dar umas boas palmadas. Mimado!

— Eu? Ele me agride verbalmente, me ameaça e o mimado sou eu? Não deveríamos estar do mesmo lado, irmão? — respondeu ironizando a última palavra.

— Nós — começou a responder Diego, apontando na direção onde havia deixado Gabriela e Agares — estamos do mesmo lado, e você Gabriel? De que lado você está, irmão?

Estavam parados de frente um para o outro, tão próximos que a respiração se misturava, o peito de ambos subia e descia com a raiva que latejava dentro deles. Diego o desejava, desde o momento em que colocou os olhos sobre Gabriel, ele o queria. Sabia que não o amava, não encontrou nele o seu destino, mas a tensão física era tão forte que se tornava palpável entre eles.

— Quero te beijar — Diego disse em tom baixo ainda o encarando, furioso por suas atitudes.]

— Por quê? — Gabriel questionou no mesmo tom, não sentia-se confuso por estar ouvindo isso de um anjo do mesmo sexo, há tempos deixou de lado os preconceitos sobre isso.

— Você me enlouquece de muitas formas. — Moveu-se um pouco mais, colando o peito ao de Gabriel.

— Estava querendo me bater alguns segundos atrás. — Sustentou o olhar de Diego e não se moveu diante a aproximação.

— Ainda quero.

— Mas quer me beijar também?

— Quero.

Diego não esperou por aceitação, levou a mão à nuca de Gabriel e, com cuidado, puxou-o para si. Permitiu que seus lábios macios e quentes deslizassem sobre os dele. Gabriel não se afastou, levou a mão à cintura de Diego e o puxou para mais perto, seus lábios se abriram, desejando por mais.

A ponta da língua de Diego tocou a língua de Gabriel e de imediato afastou-se, o olhando incrédulo.

— Como você pôde? — A acusação sentida, gritada pelo anjo, confundiu Gabriel.

Nojo, raiva e decepção estavam estampados na face de Diego.

— Como eu pude o quê? Está louco Diego? Você que me beijou. — Ele não entendia o que estava acontecendo.

—Você se entregou a ela? Após tanto tempo amando Naiara, após tanto tempo buscando algo real, entregou seu corpo a ela?

Estava impresso em seu gosto. Samyaza percorria todo o corpo de Gabriel, corpo intocado e protegido para ser entregue a alguém especial. Gabriel sempre sonhou com o dia em que Naiara enfim o veria, se entregaria a ele e o amaria, assim como ele a amava. Mas isso não aconteceu, preferiu perder-se com um demônio do que corresponder ao amor dele, então não via motivos para continuar se guardando.

— E daí? — Gabriel sentia-se no tempo da escola novamente, quando não sabia como responder as acusações dos colegas.

— Achei que fosse diferente, Gabriel, acreditei que, mesmo sendo envenenado por nosso irmão, ainda assim não se igualaria, não se corromperia. — A tristeza tingia a voz de Diego.

— Me igualar? — Todo o mau temperamento ensinado por Miguel veio à tona em uma explosão, aos berros. — Você não somente se envolve, como vive, dorme e se alimenta na mesa de Lúcifer, traz um demônio para o nosso meio e acha que está em posição de me acusar?

Diego era a personificação da decepção. Olhava para Gabriel sentindo todos os seus desejos se esvaindo, como se estivesse perdendo-o entre os dedos.

— Deveria se lembrar que aqueles seres faziam parte de sua vida, cresceu alimentando-se na mesa de Amarantha e Naiara, ela ainda te chama de melhor amigo, te defende e coloca-se contra todos por você. Quem é mesmo o demônio Gabriel?

Não esperou por resposta, virou-se levantando voo e partiu para o mais longe dele que poderia.

Gabriel sabia, sua razão o alertava que suas atitudes não condiziam com o que aprendeu, com o caráter que sempre possuiu, mas não conseguia conter sua emoção todas as vezes em que se lembrava que ela virou as costas para ele, o afastou de sua vida e apagou sua memória, sem dar a ele o direito de escolha. Estava ferido, magoado, rejeitado e não via motivos para ter qualquer tipo de consideração por aqueles que o riscaram de suas vidas.

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