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Capítulo II - Êxodo 20.12

— Não aguento mais vê-la assim. — Naiara olhava a mãe sentada sozinha em meio ao terreno cinzento e pedregoso, buscando por sua deusa.

Há dias não comia, sequer falava com as pessoas que cuidavam e zelavam por ela, saía da cama somente quando a dor em seu coração era tamanha que precisava se conectar com seu sagrado e buscar algum consolo para seu sofrimento.

— Ela precisa disso para sentir-se bem — respondeu Yekun, entrelaçando os dedos aos de Naiara. — Ou tão bem quanto ela consegue, vida.

— Queria poder fazer mais, odeio essa sensação de impotência.

Naiara não deu a ele chance de resposta, virou-se beijando com carinho a sua face e foi direção onde estava sua mãe. Ela sabia bem qual era a sensação de ter alguém que amava longe dela, sem notícias. Mas conseguiu entrar em contato, tanto com Gabriel quanto com Agares, quem sabe não conseguiria fazer isso com o pai também, só não queria dar a mãe falsas esperanças.

Assim que alcançou-a, sentou-se ao seu lado, colocando sua mão sobre a dela. Pensou em seu pai, na falta que ele fazia, no riso alto dele pela casa, na forma como a mãe e ele estavam sempre juntos. Seu coração encheu-se de esperança, desejoso por notícias.

Naiara não clamou aos deuses da mãe, não pediu aos deuses do Sheol, nem conversou com o Deus que cresceu conhecendo como o único existente, mas seu coração gritou para que o mundo escutasse o quanto elas sofriam desde que o pai sumiu.

“Não sei a quem pedir ou de que forma deveria falar, mas aprendi desde pequena que o nosso coração é sondado e nossos pensamentos escutados. Sabe então o quanto ele nos faz falta e eu entendo que fez o que achou melhor, e não o culpo pela forma que isso aconteceu. Sei que só existe correção para quem se ama e eu sei que ainda o ama, mesmo quando todos dizem ao contrário. Mas ela está sofrendo muito. Está vendo que sua alma se desfaz cada vez que abre os olhos e não encontra-o aqui? Então, por favor, deixe com que ela veja-o, por favor.”

Amarantha sorriu. Não ouviu o que a filha pediu, mas a paz e o amor que inundou o seu coração, era inconfundível. Sentia um orgulho sem limites da filha, em saber que ela transitava entre deuses e religiões e somente acreditava com todas as forças que havia dentro de si. Não existiam placas, barreiras, toda a religiosidade se desprendia, pois Naiara simplesmente cria.

O cenário mudou diante de seus olhos, não estavam mais sentadas do lado de fora da morada, era como se as duas estivessem andando em alguma cidade do interior. Viu-se em um campo aberto, com a grama verde e árvores espalhadas ao redor, ao longe uma pequena cabana, um ou dois gados, e um cercado que parecia ter galinhas.

— Onde estamos? — Amarantha perguntou a Naiara enquanto sondava tudo ao redor sem entender o que a filha havia feito.

Não poderiam desaparecer também, não poderiam deixar a todos sem respostas quanto a elas, já estavam sobrecarregados com todos os acontecimentos, o desaparecimento de Heylel, um possível ataque de Belial e a ajuda da guarda celestial. Deixar com que se preocupem com elas, seria demais.

— Não sei, mãe. — Ela olhava tudo ao redor, procurando por resposta para aquela situação.

Saindo de dentro da humilde cabana, um homem alto, forte, com os cabelos tão pretos quanto a noite mais escura, olhou diretamente na direção das duas e o sorriso tomou seus lábios. Ele correu na direção delas, que de imediato reconheceram-no, correndo para ele também, encontrando-se no meio do caminho, perdendo-se nos braços um do outro. Foram ouvidas. Eram uma família, estavam juntos novamente, só não sabiam por quanto tempo.

— Não acredito, não acredito! — Heylel gritava enquanto abraçava o mais forte que conseguia a esposa e a filha. — Estão aqui, vocês estão aqui!

Amarantha chorava sem conseguir conter o soluço alto que escapava de seu peito. Segurava o rosto de Heylel em suas mãos e o beijava onde seus lábios conseguiam tocar. Naiara ainda estava agarrada na cintura do pai e agradecia aos céus por sempre ser ouvida.

— O que aconteceu? — Amarantha, questionava aflita. — O que está fazendo aqui? Por que não volta para casa?

Antes mesmo que conseguisse responder e contar a esposa o que havia acontecido a eles, Naiara afastou-se do pai e o olhou incrédula.

— Pai, o que fizeram com você? — A menina o sondava como se não existisse nada mais do caído.

Neste momento Amarantha afastou-se dele e o olhou de verdade, seu rosto era o reflexo do desespero de Naiara. Heylel abaixou a cabeça e seus olhos buscaram o chão, sem graça e com medo de que sua situação atual afastasse-o de sua vida, sua família. Não sabia se aquela seria sua condição para sempre e o medo de não ser o suficiente para defendê-las ou para mantê-las ao seu lado o sufocava.

— Ele achou que deveríamos ser moldados... — disse baixo, quase em um sussurro.

— Deveríamos? — Naiara perguntou, enquanto Amarantha somente encarava o amor de sua vida. — Quem está aqui com você?

Como se a pergunta fosse uma invocação, Miguel surgiu na porta da pequena cabana e sorriu para Naiara da forma mais debochada que alguém poderia sorrir.

— Surpresa, cria! — Abriu os braços como se fosse o presente de Natal.

— Eu vou matar você.

Ela gritou e, antes mesmo que pudessem piscar, uma rajada vermelha atingiu o peito de Miguel, o jogando para dentro da cabana. Um grande barulho se ouviu, seguido de coisas se quebrando e um grito de dor.

— Naiara!

Heylel gritou e correu ao socorro de Miguel, tendo Amarantha em seu encalce, encontrou-o deitado em forma fetal, gemendo de dor. Com cuidado o levantaram, colocando-o sobre o pequeno sofá, Naiara estava parada na porta, olhando toda a cena a sua frente e seus olhos ainda ardiam em raiva.

— Somente saiam da frente, vou acabar o que eu comecei — disse levantando as mãos em direção ao sofá.

Ela o mataria, aniquilaria a fonte de seus problemas e não teria a menor culpa por isso, iria matar Miguel e acabar com o joguinho sujo dele de uma vez por todas.

— Pare, minha filha! — Heylel colocou-se entre ela e o corpo de Miguel. — Vai matá-lo, ele não passa de um humano também.

— Eu sei — afirmou ela sem desviar sua atenção. — Senti no momento em que ele apareceu na porta.

— Então por quê...? — Ele não conseguiu concluir a pergunta.

Não iria se explicar para o pai, jamais desejou tirar a vida de alguém, mas entendia que se Miguel não existisse, poderia seguir sua vida em paz e nada mais aconteceria com todas as pessoas que amava. Gabriel estaria vivendo sua vida, estudando e se apaixonando por alguém, seus pais não estariam em perigo, Belial não teria a guarda celestial ao seu lado, acabando com qualquer possibilidade de se levantar contra o primeiro reino e Agares ainda estaria ao lado dela.

Esse último pensamento foi o suficiente para elevar sua raiva a um nível jamais sentido antes. Queria acabar com a vida do anjo naquele momento.

Amarantha não prestava atenção nos dois, sua atenção estava voltada para Miguel. Assim que rasgou a camisa que vestia, viu um grande círculo vermelho vivo em seu peito, exatamente onde Naiara o atingiu. As mãos delicadas da bruxa, estavam sobre a vermelhidão, seus lábios pronunciavam palavras antigas, como se estivesse cultuando algum deus.

Heylel afastou-se e foi em direção à filha, que ainda ameaçava atingir Miguel. Ele parou de frente para ela, tampando sua visão e segurando suas mãos com cuidado, fazendo-a olhar somente para ele.

— O que está acontecendo com você, minha filha? — Sua pergunta, estava carregada de preocupação. Ele conhecia a escuridão, serviu as trevas por tempo demais para entender que a filha caminhava sobre uma tênue linha.

— Nada, quero só matar ele — disse sem titubear. — Desde que atravessou nossas vidas, tem se mostrado pior do que Belial, acabou com a nossa paz e não pensa duas vezes antes de te prejudicar de alguma forma. Não entendo como ainda pode defendê-lo, pai.

Ela estava certa. Miguel realmente não facilitava as coisas para eles e, de todas as formas possíveis, agrediu e feriu não somente Heylel, mas todos os que o cercavam. Ainda assim ferir ou matar o irmão não estava nos planos de Heylel. Ele respirou fundo e envolveu a filha em seus braços, ela ainda relutava e respirava com dificuldade. A voz doce e calma de Heylel chegou ao ouvido da menina, não iria permitir que ela se perdesse. Sabia que as trevas que ele lutava tanto para sucumbir se esgueirava ao redor de sua filha, esperando uma única brecha para habitá-la e tomar conta de tudo.

— Acalme-se, Naiara, não agimos dessa forma. De que adiantaria revidar com agressão? — perguntou, mas sem dar a ela a chance de resposta. — Estamos buscando sermos diferentes filha, estamos buscando o perdão e não seremos perdoados se não soubermos perdoar. Lutamos contra as atitudes de Miguel e a tudo o que ele representa, não podemos agir como ele agiria.

Ela encontrava razão nas palavras que ouvia, mas não queria agir com a razão. Estava cansada de ter sua vida dominada pela opinião de outras pessoas, de lutar contra seres que acreditavam que a existência dela era um erro. Queria agir no impulso e acabar com tudo aquilo de uma vez por todas.

— Mas pai... Ele é tão... As coisas que ele fez... — Não conseguia colocar em palavras o que sentia no momento.

Estava confusa, enfurecida, devastada.

— Eu sei, filha, eu sei. — Ele realmente sabia, lutava contra o que sentia pelas atitudes de Miguel todos os dias, mas não deixaria que a filha fosse vencida pelo castigo que foi lançado sobre ele há milhares de anos.

Sentia as batidas do coração da filha desacelerarem, a respiração voltar ao ritmo normal e, aos poucos, sua pequena guerreira voltava ao eixo e ao comando de suas emoções.

— Segure sua cria, Lúcifer — Miguel disse baixo, mas o tom carregado de raiva.

Ele ajeitava-se no sofá, afastando-se o máximo que conseguia de Amarantha, torcendo o nariz para ela. Levou a mão ao peito, que agora estava levemente rosado, curado pelo poder da bruxa e seu olhar fuzilava Naiara que estava a sua frente.

— O que estava fazendo comigo, bruxa? — perguntou enraivecido, sem ter o trabalho de olhar para ela.

— Salvando sua vida — disse Amarantha de forma branda, levantando-se e indo ficar com o marido e filha.

— Quero matar ele. — Naiara balançava a cabeça, incrédula com a forma que Miguel reagia, sentindo toda a fúria voltando com força.

— Salvar minha vida? — ele gritou. — Sua cria me atacou!

— Vou arrancar sua cabeça do pescoço se me chamar de cria novamente. Estou te avisando — berrou o encarando e dando um passo à frente, sendo contida pelos braços do pai.

Estavam em um barril de magia, raiva e ressentimentos, qualquer faísca de uma palavra mal dita e tudo explodiria sem deixar vestígios dos que ali estavam.

— Não espero nada diferente de algo como você. Atacar seres inocentes. — Estava encolhido no pequeno sofá e se não o conhecessem, poderiam realmente acreditar que era somente um pobre homem inocente e machucado.

Naiara deu dois passos à frente, cintilando em vermelho. Dessa vez, nem mesmo Heylel conseguiu contê-la no lugar.

— Você não tem nada de inocente, Miguel. É uma víbora peçonhenta da pior espécie — cuspiu as palavras e seus olhos faiscaram.

— Olha aqui sua...

— Chega! — Heylel gritou, assustando assim a todos na pequena cabana.  — Vamos sair daqui.

Naiara titubeou, olhando entre o pai e Miguel que ainda a encarava com desdém. Amarantha, envolveu a cintura da filha com seu braço, puxando-a para fora da cabana, usando toda sua força, sentindo pela primeira vez o ardor da filha em seu próprio corpo. Ainda que muito poderosa, jamais havia sentido algo assim em nenhuma outra bruxa, mas deixaria para falar sobre isso quando conseguissem voltar para casa e levassem Heylel com elas.

Caminharam alguns minutos sem nada dizer, somente afastando-se e adentrando na floresta fechada. Naiara parou de súbito, cruzando os braços ao peito, estava enfurecida e ainda não conseguia conter as pequenas flamas ao redor do corpo.

— Vamos andar até sair do mapa? — disse mal humorada.

Tentava entender a atitude do pai, mas lhe fugia a razão quando via o quão pequeno ele se fazia para os outros, entulhando-se a si mesmo para que sua real essência não se manifestasse, deixando com que todos os seres ao seu redor se sentissem maiores e mais poderosos do que ele.

— Não, só vamos andar o suficiente para manter você e seu temperamento longe de Miguel — Amarantha riu baixo piscando para Heylel, que olhava para a filha, analisando-a.

Entendia a preocupação do marido e a frustração da filha, sabia que era o norte dos dois e o equilíbrio que precisavam.

O silêncio se instaurou entre eles e, por segundos que pareceram a eternidade, nada foi dito. Todos presos em seus pensamentos, debatendo suas crises e dúvidas.

— Não entendo... — ele disse baixo, quebrando o silêncio entre eles e atraindo a atenção da mulher e filha, tirando-as de seus pensamentos. — O que estão fazendo aqui?

Amarantha havia parado de andar e sentava-se, puxando para baixo o marido e a filha. Sentaram-se como em uma brincadeira de roda, lembrando a forma como as crianças ficavam em acampamentos em noite de fogueiras e histórias.

— Eu também não entendo como, mas acredito que seja algo parecido com o que eu consegui com Gabriel e Agares, a diferença é que estamos mesmo aqui — dizia, mas não olhava para os pais. Ainda se analisava, olhando para o corpo, notando o vermelhidão diminuir, mas não desaparecer por completo.

— Fico me perguntando se o nosso corpo físico também está aqui ou se estamos deixando nossa família enlouquecida lá em casa. — A voz doce da bruxa chamou a atenção da menina, conseguindo enfim tirar seus pensamentos do foco de sua magia. Estava preocupada com a filha, acreditava que a raiva a fazia perder o controle de si e, pela expressão de Heylel, ele estava pensando o mesmo.

E novamente o silêncio da dúvida plantada por Amarantha tomou o espaço entre eles, nada foi dito por longos minutos.

— Me conte, pai — Naiara começou a dizer, voltando-se para Heylel. — Como veio parar aqui? O que aconteceu naquele dia?

— Estávamos lá e em um piscar de olhos, não estávamos mais. Ele nos colocou aqui e entendo, mesmo não aceitando, a decisão que meu Pai tomou. — Havia compreensão em sua voz, deixando claro a verdade em suas palavras.

— Mas e agora? — Amarantha dizia. — Será que voltaremos todos para casa?

E como se a pergunta fosse o estopim para a realidade, elas estavam de volta na morada. Surgiram na frente de duas bruxas que as esperavam aflitas, dois caídos preparados para um conflito inexistente e um povo esperando por um líder desaparecido.

— Não! — Amarantha começou a chorar baixinho. — Nem consegui me despedir... — Sentou-se em um dos sofás e foi logo acolhida por suas irmãs.

— O que houve? — O tom austero e inconfundível de Azazyel ecoou pela sala, dando voz à pergunta que todos no ambiente esperavam pela resposta.

A menina respirou fundo, buscando dentro dela uma gota sequer de paciência. Ela devia isso à sua família e ao seu povo. Todos, assim como a mãe e ela, estavam aflitos com o sumiço de Heylel, preocupados com uma guerra iminente.

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