Como caíste desde o céu, ó Lúcifer, filho da alva! Como foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações!
E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte.
Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo.
E contudo levado serás ao inferno, ao mais profundo do abismo.
Isaías 14:12-15
Não havia um ruído sequer, o silêncio tomava o Sheol; não o silêncio costumeiro, mas diferente, como um presságio, um anúncio de algo incrivelmente ruim. Heylel andava no corredor estreito e mal iluminado de sua morada. Seus olhos, que levavam a vantagem de centenas de anos vividos, vasculhavam a escuridão que se formava ainda mais densa nos cantos escondidos.
— Acredito já ter sido mais cuidadoso com sua chegada, Belial. – Heylel disse, soltando uma risada baixa e abafada enquanto continuava seu trajeto até uma ampla sala.
A decoração com móveis antigos remetia à época medieval e dava ao ambiente um aspecto quase teatral. Sentou-se em uma pequena poltrona de tecido grosso e vermelho, a moldura de metal pesado destacava a cor.
— Já que teve o trabalho de sair dos confins que chama de lar, ao menos apareça e sente-se. Quem sabe ainda exista algum tipo de educação em você e possa lhe oferecer algo para beber?
Uma nuvem negra ajuntou-se sobre o sofá à sua frente, ganhando a forma de um corpo de tamanho desproporcional para um humano. Era um ser com mais de três metros, exibindo pernas cujos pés formavam-se de fumaça negra e braços curtos que projetavam mãos com sete dedos. A criatura sorriu, sua boca revelando dentes pontiagudos.
— Ora, ora, ora, Heylel! Não acredito que tenha algo que realmente eu queira beber aqui. Há tempos você não é mais o que deveria ser, não é mesmo? Agradeço, mas não foi para desfrutar de sua bebida ou companhia que vim.
— Ainda estou ouvindo.
A coisa à sua frente olhou-o com atenção, como se estudasse o que deveria dizer naquele momento.
— Sempre direto. Sabemos que a hora é chegada, Heylel: ou está com os seus, ou está contra nós. Não podemos mais, aliás, não queremos continuar aqui. Merecemos mais!!! – A última frase soou com uma ganância elevada. Heylel o observava, analisava as palavras ouvidas com toda a seriedade que o assunto exigia, mas sem deixar transparecer.
— Sheol é o lugar em que devemos ficar, Belial, não permito que façam nada além do que já fazem. De uma forma terrível, ainda lhes dou o direito de interferir no livre-arbítrio deles. Acredita mesmo que tomar a terra que o sol aquece não atrairia a atenção dEle?
— Não, claro que não. Somente não entendo por que isso nos impede. Após tantos anos, enfim, cedeu ao medo?
Não poderia permitir um desrespeito daquele! Heylel se levantou e, por mais humano que parecesse, sua figura se elevou de tal forma sobre a criatura que a fez se encolher abaixando o olhar.
— Não ouse usar esse tom comigo novamente. Da mesma forma que permito sua presença entre os meus, dou fim às suas insubordinações em um estalar de dedos.
— Perdoe-me, mestre – respondeu com a voz trêmula, mas contendo uma dose de cinismo. – Apenas notamos sua recente falta de tempo para nós. Muitos reclamam que não mais nos procura ou inspeciona nossas investidas. Está nos largando à própria sorte e muitos dos seus têm sucumbido.
Heylel não se sentou, ainda o olhava sentindo o que viria a seguir e não gostava daquela situação. Não queria impor sua ira sobre seu caído, mas não permitiria que a conversa continuasse naquele rumo.
— Acredito que tenho um exército de anjos caídos e não um bando de incompetentes que precisam de orientação ou aplausos diante dos acertos.
— Essa não é a questão.
— E qual é a questão, então?
— Muitos já pensam em se rebelar, em se juntar contra você e tomar a Terra...
— Pense bem no que está me dizendo! – Heylel interrompeu, mas Belial não se deixou abater e continuou com seu discurso quase como se lhe fornecesse um favor.
— São somente murmúrios que ouço nos lugares mais distantes em Sheol, lugares que não mais marca com sua presença e que, gostando ou não, ganham força para rejeitar sua liderança.
— Hum, interessante, então agora terei uma rebelião dos meus – expressou, muito mais como um pensamento do que como uma acusação. Heylel agora andava pela sala. – Acredito que esqueceram quem sou e quão rápido posso dissipar qualquer plano.
— Bem... se me permite dizer, mestre, sugiro não esquecer que todos sabem sobre Naiara.
Foi o bastante para o frágil temperamento de Heylel. Em uma fração de segundo, sua mão empunhava uma lâmina que parecia conter todos os gritos de lamentos e dor do mundo em seu corte. Não foi possível conter o golpe veloz que percorreu do alto da cabeça da criatura até a base de sua barriga, partindo-a em dois e transformando-a em nada além de fumaça... O som gutural de sofrimento de Belial ecoou no ar.
— Vai, mais alto. – A menina pedia em meio ao riso – Quero mais alto. A risada da pequena ecoava pelo ar, preenchendo cada espaço com alegria e vida. Ele ria com a felicidade que conseguia proporcionar a ela, dentro de sua existência condenada, sentia-se, completo por faze-la sorrir. — Isso! – ela gritou quando o balanço subiu alto, fazendo seus pés, em sua imaginação ilimitada, tocar os céu. – Viu, eu “to” chutando as nuvens. — Está mesmo. – Concordou com ela e sua voz carregada de carinho e admiração. Passaram algum tempo brincando e rindo um para o outro, mas ele precisava voltar, aparecia sempre que sentia a menina chamando por ele, era assim desde seu nascimento. Ainda bebe, ele a admirava no berço enquanto todos dormiam, branca como a mais alva neve, os cabelos liso e os olhos expressivos, tão escuros que pareciam engolir a própria noite. Com o passar dos anos, a necessidade que a menina sentia de entender as coisas que aconteciam em seu redor e
Lauren tentou acordar pela terceira vez nos últimos 20 minutos. As manhãs eram difíceis para ela. Sabia que, para a maioria das pessoas, as manhãs eram sonolentas e a tarefa de sair da cama, deixando as cobertas para trás, parecia quase impossível. Mas para Lauren esse processo chegava a ser doloroso, principalmente após alguns sonhos que a acompanhavam sempre, não conseguia entender se eram somente momentos projetados por sua mente, ou lembranças de sua infância. Sentia-se vazia, sem forças, como se a noite de sono, geralmente mal dormida e atormentada pelos tais sonhos, totalmente sem pé nem cabeça, não fosse o suficiente para fazer seu corpo descansar. Não havia como negar, sentia-se muito mais disposta à noite, mais ágil e cheia de vontade. Para Lauren, o anoitecer trazia consigo uma estranha vontade de conquistar o mundo, sair sem destino em busca de tudo e nada ao mesmo tempo, perder-se em lugares desconhecidos, deparar-se com novas pessoas e situações... No entanto, é
A jovem sorriu da forma mais sincera que conseguia naquele momento, beijou a face da mãe e, enquanto pegava a mochila jogada ao lado da porta, falou sobre os ombros — Cuide-se, mãe, volto mais tarde hoje. Vou à biblioteca terminar meu trabalho. Amo você. Não esperou resposta ao sair fechando o zíper do casaco e andando sem olhar para trás, tinha a impressão de que veria a mãe com aquele olhar triste de abandono caso se virasse. O caminho para a escola era curto, não mais do que três quadras. Ter a casa de Gabriel, seu melhor amigo, ao lado da sua facilitava muito a vida dela, pois as garotas de sua idade estavam sempre em turma, quase como se não conseguissem viver sem pertencer a um bando. Lauren não conseguia agir desse modo, até já havia tentado ser amiga de uma ou duas delas, mas eram sempre tão vazias que tudo acabava em disputa. Com Gabriel as coisas eram fáceis, sem pressão, as conversas fluíam de forma natural e os dois pareciam se encaixar como peças
Ele não sabia o que falar, não sabia como agir, toda aquela situação acontecia há anos. Quando ainda eram pequenos, enquanto brincavam no parque, Gabriel via-a conversando com pessoas que somente a amiga enxergava; ela ria e se entrega as brincadeiras com o amigo imaginário e a sincronia entre os dois era tamanha, que Gabriel pega-se enciumado. Aquilo lhe tirava a paz, ainda muito pequeno, pois sentia-se ridículo, sentindo ciúmes da imaginação da amiga. Via-a dividir o lanche da escola com "pequenas princesas", como ela chamava. Conforme cresciam, aquele mundo paralelo tomava maiores dimensões e passava a exigir da amiga algo que ela não conseguia dar. Ele respirou fundo e fez a única coisa que poderia naquele momento: segurou-a pelo pulso e puxou-a para dentro de seus braços, envolvendo-a com força o bastante para que conseguisse se sentir segura. Notou o corpo de Lauren relaxar aos poucos e, enquanto a cabeça dela se apoiava em seu peito, as palavras saíram baixas, mas carregadas
Com a agilidade que somente os anos de costume poderiam dar, Lauren abriu a janela e saiu pelo telhado, subindo rapidamente e parando na ponta contrária à rua. Ali, exatamente ali, era o seu lugar, onde conseguia aquietar os pensamentos. Não demorou muito para ouvir o barulho de metal batendo levemente contra a parede e, pouco mais de quinze segundos depois, ver os cachos do amigo aparecendo. Gabriel andou ao encontro dela com a mesma dificuldade de quando era criança, a cena a fez sorrir enquanto, como de costume, ajeitava-se mais no canto, dando espaço para ele se sentar. — Sabe... acho que já estamos grandinhos para subir no telhado e, talvez, você pudesse encontrar um lugar mais baixo ou com um apoio melhor para andar? –Ele sorriu com o carinho de sempre e a olhou. – O que, afinal, está acontecendo com você? Não havia mais o porquê mentir ou tentar amenizar a situação. Se não falasse com Gabriel, falaria com quem mais? Lauren sustentou o olhar dele por um l
— Conhece meu pai? – Lauren a questionou incrédula. – Não acredito que seja o tipo de pessoa que meu pai conheça ou que gostaria que fizesse parte do seu dia a dia. – A menina à sua frente agora parecia pensar, seus olhos vagavam como se procurassem sentido no que Lauren dizia e sua expressão mudou quando, enfim, compreendeu. — Robert? Você fala de Robert, mas não me refiro ao mortal que lhe criou. Que ele não saiba, mas é muito mal-humorado e possui uma visão extremamente limitada. Falo do seu verdadeiro pai: Heylel. — Espere... esse nome... –Lauren sabia que já o ouvira, mas não se lembrava onde. —É o nome de seu pai. Alguns o chamam de Estrela da Manhã... Luz da Aurora... mas acredito que seja mais conhecido como Lúcifer mesmo. –A simplicidade daquelas palavras atingiram Lauren em cheio. Lúcifer?! A menina à sua frente, que não conseguia se definir, acabara de falar que Lauren, a estudante de 17 anos, sem graça e nunca notad
— Élida, você veio. — Claro que vim, você me chamou. Lauren e Gabriel trocaram um olhar confuso. — Não chamei não. – A pequena soltou o seu riso melodioso e, para o espanto de Gabriel, flores desabrocharam ao redor dela, da mesma forma que Lauren descrevera. — Claro que chamou, tolinha. Estava pensando que, se eu estivesse aqui, poderia lhe ajudar. Bem... aqui estou. O que você quer? — Lauren quer falar com o pai – respondeu o rapaz sorrindo para Élida, que se virou como quem parecia ter notado sua presença somente naquele momento. Analisou--o da cabeça aos pés, até que o olhar dos dois se encontrou. — Hum... interessante. Prazer, Gabriel, sou Élida – apresentou-se com educação e sorriu para ele, que gaguejou um "prazer" e se calou. Ela, então, virou-se para Lauren e se aproximou. – Mas se quer falar com o seu pai, por que está aqui? Por que simplesmente não o chamou lá onde você estava mesmo? Gabriel não conseguiu evitar, enca
O tecido leve e claro da cortina balançou com a brisa suave. O sol aquecia o quarto como se desse boas-vindas ao novo dia. Lauren despertou e se espreguiçou devagar, sentindo o corpo reagir ao dia anterior. No relógio ao lado de sua cama os números em vermelho avisavam não passar das nove da manhã do domingo, dia que provavelmente, se Gabriel não invadisse o quarto dela arrastando-a para fora, ela não sairia da cama tão cedo, a lembrança de um sonho bom, ainda ecoava em sua mente, não se lembrava de detalhes, mas pacificou sua noite. Mas não foi isso o que aconteceu, estava disposta, alerta e fervendo de curiosidade. Pulou da cama, correndo para o banheiro. O ritual matutino aconteceu de forma calma e a garota aproveitou cada detalhe, cada momento a sós no banheiro, lavando seus cabelos, sentindo o aroma de baunilha se misturar ao vapor. Já passava das doze horas quando apareceu na cozinha, a mãe tirava a mesa do almoço ao vê-la. — Ah, querida, já acordou? — Já, mãe?