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Capítulo I - Só mais um dia (continuação)

A jovem sorriu da forma mais sincera que conseguia naquele momento, beijou a face da mãe e, enquanto pegava a mochila jogada ao lado da porta, falou sobre os ombros

— Cuide-se, mãe, volto mais tarde hoje. Vou à biblioteca terminar meu trabalho. Amo você.

Não esperou resposta ao sair fechando o zíper do casaco e andando sem olhar para trás, tinha a impressão de que veria a mãe com aquele olhar triste de abandono caso se virasse. O caminho para a escola era curto, não mais do que três quadras. Ter a casa de Gabriel, seu melhor amigo, ao lado da sua facilitava muito a vida dela, pois as garotas de sua idade estavam sempre em turma, quase como se não conseguissem viver sem pertencer a um bando. Lauren não conseguia agir desse modo, até já havia tentado ser amiga de uma ou duas delas, mas eram sempre tão vazias que tudo acabava em disputa.

Com Gabriel as coisas eram fáceis, sem pressão, as conversas fluíam de forma natural e os dois pareciam se encaixar como peças defeituosas que nunca completariam um quebra-cabeça. Ela sorriu com o pensamento ao vê-lo parado do lado de fora da casa à sua espera. Ele não era como os outros garotos. Ostentava uma pele morena que parecia estar sempre bronzeada de sol, mesmo nos meses mais frios, e quando sorria suas bochechas faziam covinhas que o deixavam com um ar ainda mais infantil. Não era alto nem baixo com seus 1,75m e parecia que não passaria disso, mas Lauren não se importava em ser apenas um pouco mais baixa que ele. Quando estavam de costas, os ombros de ambos ficavam quase na mesma altura. Os cabelos de Gabriel caíam em seus olhos com pequenos cachos, seu corpo não era musculoso, tampouco era magrelo, e Lauren agradecia por não ser um daqueles obcecados por viver na academia. Assim, parado, esperando por ela, o amigo lhe parecia perfeito. O sorriso nos lábios dela se alargou quando se aproximou e deu um beijo em seu rosto.

— O que ainda está fazendo aqui? Perdeu a primeira aula, sabe disso, não é? – Claro que sabia, Lauren era a rainha do atraso e Gabriel o rei da paciência que não iria a lugar algum sem ela.

— Levando em consideração que você perde a hora pelo menos três vezes em cada semana, só poderia estar lhe esperando, senhorita.

A lealdade de Gabriel a ela, era surreal. Lauren não se lembrava em que exato momento ele passou a ser a peça chave para que ela pudesse continuar existindo, mas sentia-se exatamente assim. Como se a ausência de Gabriel em sua vida, fosse deixar um buraco tão imenso, que seria impossível mate-la viva. Ele era como seu escudo particular contra a maldade do mundo que os cercavam, como se o sorriso espantasse qualquer escuridão e a sua simples presença, fosse capaz de erguer uma muralha ao redor de Lauren, protegendo-a contra tudo.

Seu único e melhor amigo.

Eles caminharam lado a lado sem nada dizer, era um silêncio agradável, do tipo que só se consegue com um amigo. Os pensamentos de Lauren estavam ainda em como a mãe se sacrificava por ela. Não entendia a necessidade do pai em estar ausente, passava sempre a impressão de que queria estar em qualquer lugar, menos onde a família estava. Às vezes Lauren acreditava que o pedido, a tal oração, fora coisa só de sua mãe, não sabia bem o porquê, mas o pai não parecia assim tão grato pelo presente. Sentiu o ombro do amigo empurrando o seu, como se a chamasse de volta, e ela o olhou ainda meio perdida.

— Entendo que minha presença não é assim tão marcante e que, talvez, eu seja tão entediante que você precise criar um mundo paralelo só para fugir das nossas conversas, mas acredite: Prince of Persia é um clássico e deveria me dar mais atenção quando estou contando meus feitos no videogame. – Gabriel piscou para a amiga, o que a fez se recordar do jogo bobo que ele jogava há anos em seu velho console.

Por mais que tentasse, sempre fracassava em entender alguma coisa sobre games, mas não ligava de passar seu fim de semana na casa dele, sentada ao seu lado no sofá vendo-o jogar. A casa era acolhedora e Lauren cresceu em sua companhia, recebendo o sorriso carinhoso da mãe de Gabriel todas as vezes em que se encontravam e ouvindo as piadas do pai dele, que a faziam realmente gargalhar mesmo quando mais ninguém ria.

— Lauren! Por Deus, menina, o que houve com você hoje?!

— Desculpe, nossa, já pedi tantas desculpas hoje e o dia nem ao menos começou direito. Sabe como fico pela manhã... estou só... desligada.

— Bem mais que o normal, que fique claro!

Ele envolveu o braço da amiga com o seu e ambos atravessaram a avenida. Ao passarem pelo portão da escola, olharam-se como se entendessem tudo; sem a necessidade de palavras, soltaram um longo e desesperador suspiro, então se dividiram no corredor, indo cada um para sua classe.

Lauren respirou fundo e atravessou a sala para sentar-se na última cadeira do lado esquerdo, onde poderia se perder observando a paisagem através da janela. Ela sabia que o professor já estava na sala e falava algo que parecia ser importante, pois ouviu as palavras "prova" e "ponto" em determinado momento, mas não conseguia prender sua atenção ali. Seus olhos vagavam, observando as grandes árvores que cercavam a escola; conseguia ver os galhos balançando, ritmados, quase como se dançassem uns com os outros. Não conseguiu impedir o leve sorriso em seus lábios, amava aquela sensação! Sua vontade era estar lá, deixando o vento soprar ao seu redor e mexer em seus cabelos, permitindo ao seu corpo se mover juntamente com ele. E foi assim, perdida em pensamentos estranhos, que sentiu estar sendo vigiada novamente. Não eram os olhos dos colegas de classe ou do professor que a observavam, esses pareciam já ter desistido de ter sua atenção há muito tempo. Eram olhos que prendiam o desejo de Lauren, que capturavam sua vontade ao ponto de atrair sua total atenção. Olhos acompanhados de pequenos pontos coloridos que se moveram com uma rapidez incrível por entre as árvores.

Sem pensar, Lauren se levantou e pediu licença ao professor com a desculpa de que não estava se sentindo bem. Ela saiu da classe antes mesmo que pudesse ter uma resposta. Correu em direção ao lado externo da escola, vasculhando entre as raízes das árvores à procura dos pontos coloridos. Estava tão concentrada que quase caiu de susto quando uma mão segurou seu ombro com firmeza.

— Posso entender que as aulas do senhor Clark sejam mesmo entediantes, mas daí a preferir ficar aqui fora procurando esquilos já é demais, Lauren.

— Como... você...? – Somente quando se levantou e encarou o amigo é que conseguiu formular uma frase inteira: – Afinal de contas, o que está fazendo aqui, Gabriel?

O rapaz demorou alguns segundos para entender a pergunta. Para ele, estar onde Lauren estava era o natural. Passavam tanto tempo juntos, estavam tão conectados, que a pergunta, parecia incabível.

— Ora, vi você passando, aliás, correndo pelo corredor, pedi para ir ao banheiro e aqui estou. E, como imaginava, aí está você... Hum... andou vendo aquelas coisas novamente? – perguntou em um tom de voz mais baixo, sabendo o quanto aquele assunto desagradava a amiga.

— Não sei, Gabriel, não sei de mais nada, na verdade. – Ela o fitou nos olhos esperando que o amigo conseguisse sentir toda a intensidade de suas palavras. – Tem ideia do que é viver assim? Achando que está sendo seguida o tempo todo, despertando de pesadelos no meio da noite e tendo a sensação de que são reais, que não acabarão quando acender a luz do quarto?

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