Ele não sabia o que falar, não sabia como agir, toda aquela situação acontecia há anos. Quando ainda eram pequenos, enquanto brincavam no parque, Gabriel via-a conversando com pessoas que somente a amiga enxergava; ela ria e se entrega as brincadeiras com o amigo imaginário e a sincronia entre os dois era tamanha, que Gabriel pega-se enciumado. Aquilo lhe tirava a paz, ainda muito pequeno, pois sentia-se ridículo, sentindo ciúmes da imaginação da amiga. Via-a dividir o lanche da escola com "pequenas princesas", como ela chamava. Conforme cresciam, aquele mundo paralelo tomava maiores dimensões e passava a exigir da amiga algo que ela não conseguia dar. Ele respirou fundo e fez a única coisa que poderia naquele momento: segurou-a pelo pulso e puxou-a para dentro de seus braços, envolvendo-a com força o bastante para que conseguisse se sentir segura. Notou o corpo de Lauren relaxar aos poucos e, enquanto a cabeça dela se apoiava em seu peito, as palavras saíram baixas, mas carregadas de verdade:
— Estou aqui, sempre estarei aqui e, seja lá o que for isso, vamos resolver juntos, está bem? – Não precisava dizer mais nada. Ela sabia o peso daquela promessa e, de alguma maneira, sentia-se protegida. Lauren afastou-se do amigo, deu um beijo em sua bochecha e sorriu da forma mais convincente que pôde.
— Obrigada. Você sabe o quanto isso significa para mim, não é? Saber que posso contar com você é tudo o que eu preciso. Mas agora precisamos correr. Não sei você, mas tenho aula com a senhora Walker. – Não precisou explicar mais. A senhora Walker não era famosa por sua bondade e compreensão com os alunos.
Eles andaram juntos para as salas de aula, sabendo que se encontrariam mais tarde. A manhã passou rápido em meio a matérias e distrações. Hora ou outra, Lauren se perdia olhando para fora como se algo a chamasse, fazendo com que seu nome fosse dito pelos professores mais vezes do que ela gostaria. O resultado dessa distração foi um bom atraso na matéria escrita nas duas lousas que existiam na classe, de modo que, quando o sinal tocou e Gabriel apareceu na porta para buscá-la, Lauren ainda estava com o rosto no caderno copiando tudo o que havia perdido.
— Sei o quanto você gosta da escola e quão boa aluna é.... mas acabou, Lauren. Vamos embora, tenho um encontro marcado com o almoço da minha mãe e aquele gato do Prince que está me esperando na sala de casa! – As palavras ditas com um sarcasmo absurdo fizeram a jovem sorrir, imaginando o carinha do videogame do amigo sentado no sofá à espera dele.
— Pode ir, Gabriel, vou demorar eras aqui!!!
— Sua distração ainda vai me matar de fome! – zombou divertido. – Estarei esperando na lanchonete. Se vai demorar, preciso comer. – E com uma piscadela em meio ao sorriso, o amigo saiu deixando-a sozinha.
— Céus, Lauren, presta atenção no que está fazendo, menina, anda! Vai sair daqui só amanhã assim – disse a si mesma enquanto tentava se concentrar no que fazia e escrever mais rápido.
Quando estava passando para a segunda parte do texto que copiava, três coisas aconteceram ao mesmo tempo. A porta se fechou, batendo forte, e o barulho da pancada ecoou pela classe vazia. Então, as cortinas se fecharam deixando o ambiente mais escuro e, finalmente, toda a matéria que estava exposta na lousa imediatamente desapareceu. Lauren sentiu o ar escapando dos pulmões e olhou ao redor, tentando entender o ocorrido. Em desespero, jogou o material dentro da mochila e sua reação foi correr até a porta fechada para tentar sair da classe, mas não conseguiu. Era como se alguém segurasse a maçaneta pelo lado de fora e, por mais força que fizesse, a porta não cedia.
Lauren começou a gritar por ajuda, mas as palavras morriam dentro da sala. Não conseguia virar o rosto para o escuro ambiente, sua atenção estava firmemente focada na porta azul. Sentia que, se olhasse em qualquer outra direção, encontraria o que não estava preparada para ver, não queria ver. Após segundos que pareceram horas, as cortinas se abriram de uma vez, clareando tudo novamente. Ela não conseguiu impedir a si mesma dessa vez, seus olhos varreram a classe e pararam na lousa onde, ao invés da matéria escrita, havia uma frase com letra cursiva que mudou completamente a sua vida: Naiara, chegou o momento.
A porta se abriu e ela correu pelo corredor, caindo no meio do caminho e se levantando sem nem ao menos olhar para trás. Ela se lembrava daquele nome, ouvia-o em seus sonhos constantemente. Encontrou Gabriel sentado na lanchonete, comendo algo que desabou de sua mão quando ela se jogou sobre ele. Em meio às lágrimas tentava explicar o que havia acontecido, sem muito sucesso, já que não conseguia formular uma frase inteira e seus lábios só diziam "lousa", "porta fechada", "está escrito" e nada mais. Gabriel quase arrastou a amiga de volta à sala de aula para entender o porquê de suas atitudes, mas, para a surpresa dela, tudo estava exatamente como deveria estar. Todo o conteúdo que Lauren copiava estava nas lousas e o sol que adentrava a sala parecia zombar dela com sua luminosidade calma.
— Bem, se foi um ataque alienígena, eles arrumaram tudo antes de irem embora, Lauren. Sempre soube que seriam criaturas acima da média e não uns arruaceiros quaisquer. – Gabriel se sentou sobre a mesa dos professores, seus pés balançavam despreocupados enquanto olhava para Lauren sem conseguir conter o sorriso.
Ela retribuía seu olhar incrédula, não acreditava no que estava acontecendo. Precisou respirar fundo três vezes antes de conseguir falar.
— Gabriel, me escuta! Aconteceu, tá?! As cortinas se fecharam, a porta bateu e, quando tentei sair, não consegui. Tudo foi apagado da lousa e, do nada, estava escrito “Naiara, o momento chegou”. – Encarou-o esperando algum crédito às palavras dela.
— Ok – disse ele. – Talvez chegou o momento de você prestar mais atenção na aula e não ficar depois do horário. Até porque o recado nem era para você, seja lá quem foi, errou o destinatário.
Foi o bastante para ela, que saiu batendo os pés e deixando o amigo para trás. Uma onda de raiva a tomava, queria correr, sair dali, sumir, ir para um mundo onde não precisasse provar o tempo todo que não estava louca, um lugar onde as coisas que via fizessem sentido... Sentia que, a distância, Gabriel a estava seguindo em silêncio. O jeito como ele insistia em cuidar dela a fazia se sentir culpada. Sabia que precisava voltar e se desculpar, afinal, não poderia acusar o amigo de não acreditar nela. Quem acreditaria? Mas não conseguia, exigia demasiado esforço fingir que a incredulidade dele não a feria. Desceu a pacata rua da escola correndo, sentindo o vento bater em seu rosto e os cabelos longos se emaranharem. Lauren entrou em casa batendo a porta atrás de si, assustando a mãe que deveria estar fazendo alguma guloseima na cozinha, pois o cheiro doce de caramelo tomava conta da casa.
— Lala? O que houve? Lauren...
E as palavras se perderam quando a jovem entrou e fechou à chave a porta do quarto. Sabia que a mãe iria atrás dela, mas sabia também que não insistiria quando tentasse abrir a porta e não conseguisse. Ao contrário das garotas da sua idade, Lauren não costumava se fechar e o acesso ao seu quarto sempre foi liberado para a mãe. Esse comportamento lhe dava a vantagem de saber que seria respeitada quando a porta estivesse trancada, e foi exatamente o que a mãe fez: depois de tentar abri-la, afastou-se em seguida murmurando algumas palavras enquanto descia as escadas.
Com a agilidade que somente os anos de costume poderiam dar, Lauren abriu a janela e saiu pelo telhado, subindo rapidamente e parando na ponta contrária à rua. Ali, exatamente ali, era o seu lugar, onde conseguia aquietar os pensamentos. Não demorou muito para ouvir o barulho de metal batendo levemente contra a parede e, pouco mais de quinze segundos depois, ver os cachos do amigo aparecendo. Gabriel andou ao encontro dela com a mesma dificuldade de quando era criança, a cena a fez sorrir enquanto, como de costume, ajeitava-se mais no canto, dando espaço para ele se sentar. — Sabe... acho que já estamos grandinhos para subir no telhado e, talvez, você pudesse encontrar um lugar mais baixo ou com um apoio melhor para andar? –Ele sorriu com o carinho de sempre e a olhou. – O que, afinal, está acontecendo com você? Não havia mais o porquê mentir ou tentar amenizar a situação. Se não falasse com Gabriel, falaria com quem mais? Lauren sustentou o olhar dele por um l
— Conhece meu pai? – Lauren a questionou incrédula. – Não acredito que seja o tipo de pessoa que meu pai conheça ou que gostaria que fizesse parte do seu dia a dia. – A menina à sua frente agora parecia pensar, seus olhos vagavam como se procurassem sentido no que Lauren dizia e sua expressão mudou quando, enfim, compreendeu. — Robert? Você fala de Robert, mas não me refiro ao mortal que lhe criou. Que ele não saiba, mas é muito mal-humorado e possui uma visão extremamente limitada. Falo do seu verdadeiro pai: Heylel. — Espere... esse nome... –Lauren sabia que já o ouvira, mas não se lembrava onde. —É o nome de seu pai. Alguns o chamam de Estrela da Manhã... Luz da Aurora... mas acredito que seja mais conhecido como Lúcifer mesmo. –A simplicidade daquelas palavras atingiram Lauren em cheio. Lúcifer?! A menina à sua frente, que não conseguia se definir, acabara de falar que Lauren, a estudante de 17 anos, sem graça e nunca notad
— Élida, você veio. — Claro que vim, você me chamou. Lauren e Gabriel trocaram um olhar confuso. — Não chamei não. – A pequena soltou o seu riso melodioso e, para o espanto de Gabriel, flores desabrocharam ao redor dela, da mesma forma que Lauren descrevera. — Claro que chamou, tolinha. Estava pensando que, se eu estivesse aqui, poderia lhe ajudar. Bem... aqui estou. O que você quer? — Lauren quer falar com o pai – respondeu o rapaz sorrindo para Élida, que se virou como quem parecia ter notado sua presença somente naquele momento. Analisou--o da cabeça aos pés, até que o olhar dos dois se encontrou. — Hum... interessante. Prazer, Gabriel, sou Élida – apresentou-se com educação e sorriu para ele, que gaguejou um "prazer" e se calou. Ela, então, virou-se para Lauren e se aproximou. – Mas se quer falar com o seu pai, por que está aqui? Por que simplesmente não o chamou lá onde você estava mesmo? Gabriel não conseguiu evitar, enca
O tecido leve e claro da cortina balançou com a brisa suave. O sol aquecia o quarto como se desse boas-vindas ao novo dia. Lauren despertou e se espreguiçou devagar, sentindo o corpo reagir ao dia anterior. No relógio ao lado de sua cama os números em vermelho avisavam não passar das nove da manhã do domingo, dia que provavelmente, se Gabriel não invadisse o quarto dela arrastando-a para fora, ela não sairia da cama tão cedo, a lembrança de um sonho bom, ainda ecoava em sua mente, não se lembrava de detalhes, mas pacificou sua noite. Mas não foi isso o que aconteceu, estava disposta, alerta e fervendo de curiosidade. Pulou da cama, correndo para o banheiro. O ritual matutino aconteceu de forma calma e a garota aproveitou cada detalhe, cada momento a sós no banheiro, lavando seus cabelos, sentindo o aroma de baunilha se misturar ao vapor. Já passava das doze horas quando apareceu na cozinha, a mãe tirava a mesa do almoço ao vê-la. — Ah, querida, já acordou? — Já, mãe?
— Pode me chamar de Heylel, isso para você – orientou o anfitrião apontando para Gabriel. – Quanto a você, pequena guerreira, pode me chamar de pai.Heylel começou a andar enquanto Lauren revirava os olhos para o que acabara de ouvir. Sem soltar Gabriel, acompanhou-o enquanto adentrava a casa. Por dentro, então, era ainda mais surpreendente. Os cômodos eram amplos e bem decorados, as janelas abertas permitiam a entrada do sol a iluminar todos os ambientes. Eles foram para uma das salas, que pareceu a Lauren ser o lugar com a menor quantidade de móveis. Havia três grandes sofás formando um semicírculo e, no centro dele, uma baixa mesa quadrada recheada de guloseimas que tornariam a cena perfeita, se esta não fosse a casa do Diabo. Sentaram um de frente para o outro, com o jovem que foi apresentado como Yeung no sofá à direita. Gabriel, ao lado de Lauren, ainda estava tenso.
— Onde estamos? — Você desmaiou na sala e seu... aquele homem trouxe você para cá – explicava Gabriel enquanto se levantava e andava até ela. — Cadê minhas roupas? — Elas a trocaram, não sei se teve algum pesadelo, mas estava muito agitada e suando demais. Coloquei as meias – disse quase com um sorriso, sentando-se ao lado dela. – Já faz muito tempo que estamos aqui, mas ele disse para não me preocupar. — Você está bem? – Desde que chegaram ali, essa era a primeira vez em que Lauren realmente observava o amigo. Ele estava abatido, a sombra escura sob os olhos e as sobrancelhas juntas lhe davam um ar preocupado. Ela levantou a mão e tocou, com as pontas dos dedos, a ruga que se formou no semblante masculino. – Não, você não está. — Não era o que eu havia programado para o nosso domingo afinal... Ida ao inferno e conversa amigável com Satanás? – Gabriel tentou sorrir limpando as lágrimas do rosto da amiga, que até aquele momento não havia notado
Ele explicava como se fosse algo fácil de se entender, mas a cabeça da menina dava voltas e voltas. Seus pensamentos corriam de forma desenfreada. — De. Que. Merda. Você. Está. Falando? – Toda a raiva controlada e toda aquela loucura estavam pronunciadas nas palavras dela. Ele riu, riu alto como se Lauren tivesse lhe contado a mais engraçada piada, e foi o que bastou... Como se alguém lhe tivesse possuído, a menina saltou sobre a coisa em sua janela! Num instante estava parada ao lado da porta, no outro estava no ar com as mãos espalmadas em uma formação estranha para si mesma, influenciada por um instinto que desconhecia; os braços sobrepostos e as palmas viradas em direção à escuridão. Seu pensamento foi somente um: “DESTRUA”. O grito de pavor ecoou no silêncio do quarto e a escuridão explodiu, se dissolvendo. Lauren caiu abaixada, defensiva, procurando pela criatura. Seus olhos varriam o quarto e nada encontraram. Levantou-se devagar, esperando que a coisa
Os primeiros raios de sol tocaram a face de Lauren, que se espreguiçou devagar avisando ao corpo que era hora de acordar. Seus olhos percorreram o quarto até encontrar os números em vermelho que ficavam fora do alcance de suas mãos, obrigando-a a se levantar para evitar o barulho ensurdecedor que o despertador faria a qualquer momento. A segunda-feira havia chegado, enfim, e Lauren sentou-se em sua cama. Sentia-se estranhamente exausta, com a sensação de que algo não estava onde deveria, mas não conseguia se lembrar o quê. Somente quando ouviu uma voz melodiosa que vinha da janela foi que se deu conta do porquê daquela sensação. — Bom dia, minha pequena margarida. – A recém-chegada sorria, sentada no batente da janela. — Ah, não... não... não... É tudo um terrível pesadelo! Você não está aqui, você não existe – dizia a jovem enquanto se jogava na cama e cobria a cabeça com o travesseiro. —Assim você me magoa, Naiara. Claro que existo, não há como imagin