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Capítulo I - Só mais um dia (continuação)

Com a agilidade que somente os anos de costume poderiam dar, Lauren abriu a janela e saiu pelo telhado, subindo rapidamente e parando na ponta contrária à rua. Ali, exatamente ali, era o seu lugar, onde conseguia aquietar os pensamentos. Não demorou muito para ouvir o barulho de metal batendo levemente contra a parede e, pouco mais de quinze segundos depois, ver os cachos do amigo aparecendo. Gabriel andou ao encontro dela com a mesma dificuldade de quando era criança, a cena a fez sorrir enquanto, como de costume, ajeitava-se mais no canto, dando espaço para ele se sentar.

— Sabe... acho que já estamos grandinhos para subir no telhado e, talvez, você pudesse encontrar um lugar mais baixo ou com um apoio melhor para andar? – Ele sorriu com o carinho de sempre e a olhou. – O que, afinal, está acontecendo com você?

Não havia mais o porquê mentir ou tentar amenizar a situação. Se não falasse com Gabriel, falaria com quem mais? Lauren sustentou o olhar dele por um longo tempo e não viu um único resquício de inquietação em seu rosto. Respirou fundo, como se estivesse tomando coragem, e deixou sair todas as palavras de uma só vez:

— Eu sou... diferente, Gabriel, e não! – Levantou a mão como se para conter o amigo. – Não me diga que isso está claro e você sempre soube. Não é dessa diferença que falo... Eu... vejo coisas... me perco em mundos que não existem. À noite, sinto-me revigorada, Gabriel, como se pudesse correr o mundo. Mas, quando durmo, meu Deus, quando durmo é horrível, pois a sensação que tenho é que saio de mim... Meu corpo fica na cama, mas não estou ali e o pior de tudo isso... é que sinto que aquela pessoa é quem eu realmente deveria ser.... – Ela ainda o mirava enquanto falava, esperando que, a qualquer momento, ele a chamasse de louca ou gritasse pedindo ajuda à mãe dela. Mas Gabriel nada fez, continuava quieto ouvindo-a com atenção. – Sinto como se... como se me chamasse.

— Quem? – ele perguntou tão baixo que Lauren não sabia se realmente o fizera.

— Não sei... não sei... mas quero descobrir, quero muito descobrir e isso me assusta, Gabriel... O medo e a euforia vêm na mesma proporção, e tudo isso está me enlouquecendo... – As palavras se perderam em um lamento murmurado e, como se por instinto, ele puxou a amiga para um abraço, protegendo-a de algo que nem mesmo sabiam o que era. Lauren deixou-se perder na segurança daqueles braços já tão conhecidos por seu corpo, sabendo que, não importava o que estivesse para acontecer, Gabriel estaria sempre ao seu lado. Ficaram um bom tempo abraçados, sem se mexer, somente desfrutando do silêncio.

— Sabe que ficaria aqui com você até amanhecer, não sabe? – Ela o olhou confusa. – Mas sério, Lauren, está doendo todo o meu corpo e o cheiro do pudim que sua mãe fez está me matando.

— E como sabe que é pudim? Você nem entrou lá em casa.

— Depois de todos esses anos, acha mesmo que não saberia? – Ela riu. Sim, ele saberia, sempre saberia, havia algo bom em ter alguém que conhecesse até mesmo o cheiro do pudim que a sua mãe fazia.

— Vamos, fominha, vamos entrar. Minha mãe deve estar em pânico na cozinha, querendo saber o que aconteceu comigo.

— E você vai contar?

Conversavam enquanto se equilibravam na volta para o quarto de Lauren.

— Não, seja lá o que for, tudo o que não preciso é ouvir minha mãe chorando, pedindo a Deus por mim e meu pai, convocando toda a congregação para expulsar algo que nem ao menos sei o que é. – Ele não contestou, sabia que seria exatamente assim. Viu a amiga entrando e estendo a mão para ajudá-lo a passar pela janela.

— Essa cena não deveria ser ao contrário?

— Não tem problema, sabemos que sou muito mais ágil do que você. – Ele fez uma careta enquanto a ouvia rir. Desceram conversando sobre a aula. Lauren olhou para a mãe quando chegaram à cozinha e se aproximou, envolvendo-a em um abraço apertado e beijando sua bochecha para se desculpar.

— Está bem, está bem – Anna dizia, dando tapinhas afetuosos no braço da filha. – Eu a desculpo por entrar em casa como um furacão e quase me matar de susto ao bater à porta do quarto na minha cara.

— Sei que sempre posso contar com a sua compreensão, mãe. – A jovem sorriu dando uma piscadinha para ela e indo sentar-se ao lado de Gabriel na bancada.

— Bem, se já estão desculpadas, acredito que agora a senhora pode nos presentear com um grande pedaço de pudim! – A expressão de Gabriel era um infinito mar de carinho e alegria para Anna.

— E como sabe que eu fiz pudim, menino?

— Eu sei, tia, eu sempre sei...

E assim, em meio à iluminada cozinha, comendo pudim, conversando e rindo, os pensamentos tumultuados de Lauren se acalmaram e o episódio aterrador em sala de aula se perdeu em sua mente.

Não demorou muito para o dia passar, Gabriel ficou para o jantar. Estavam ainda na cozinha, conversando, quando o pai de Lauren entrou trazendo consigo toda a seriedade que vivia estampada em sua face, acabando com o clima de descontração.

— Não parem o riso, podem continuar o que estavam fazendo. – Ele tentou sorrir, deixando a pasta sobre o aparador e indo em direção ao centro da cozinha. Lauren notou que o sorriso não combinava com o pai, parecia não se encaixar no rosto dele.

— Vá se lavar, querido, já estou servindo a janta. Achei que não fosse voltar para casa tão cedo hoje.

— Bem, resolvi fazer uma surpresa. Não deveria? – Aquilo sim era novidade. Ter o pai em casa já era algo raro, tê-lo em casa sabendo que realmente queria estar lá era um pouco demais.

— Claro que sim, pai! Aliás, deveria fazer isso mais vezes, já havia me esquecido que estava usando bigode, por exemplo. – Lauren tentou deixar as palavras suaves, mas não conseguiu esconder por completo o tom de acusação. O olhar que recebia do pai era sempre um misto de decepção e angústia.

— Sabe que minha ausência é justificável, Lauren. Afinal, deveria se lembrar que nem todos têm para onde voltar à noite ou o que comer. É nosso dever como cristãos ajudar os mais necessitados.

— E por acaso nessa sua lista de dever não há nada especificado sobre não se esquecer que tem família? – O clima de guerra já fora declarado, não era possível pai e filha estarem no mesmo ambiente sem que acusações nas entrelinhas fossem reveladas. Estava claro que o pai não admitia não ter a filha ao seu lado, trabalhando na congregação. A ausência dela significava a ausência da mãe, que não conseguia estar longe de sua menina, de modo que, sem as duas como modelos para as pessoas, o Pastor Robert se sentia inevitavelmente irritado e incapaz. Lauren, por outro lado, não entendia como o pai poderia se doar tanto em favor de pessoas que nem ao menos conhecia e não conseguir enxergar o quanto sua esposa e filha precisavam dele, o quanto sentiam sua falta. A situação criava um atrito claro entre os dois, impossibilitando qualquer momento de paz.

Robert se levantou e encarou severamente a filha por um longo momento, sem nada dizer, então se virou e saiu, levando consigo a pasta enquanto subia para o quarto. A mãe lançou à filha uma expressão acusadora, mas a jovem somente deu de ombros.

— Vamos jantar, pois estou faminta! E não me olhe assim, mãe. Ele nunca está aqui, hoje não fará diferença.

Não havia mais nada a ser dito. Anna sabia que, apesar de tudo, a filha estava certa e não valia a pena tocar naquele assunto. Se insistisse, seria pior para todos. Para dar fim à discussão, depois levaria um prato para o marido. Eles jantaram em um clima menos agradável e a mãe subiu logo após se despedir de Lauren e Gabriel com beijos no rosto, suas mãos equilibravam a bandeja com o jantar do marido.

— Pegou pesado – o amigo disse ao secar a louça que Lauren estava lavando.

— É só que... nossa... ele me irrita tanto – deixou as palavras saírem sem saber ao certo os sentimentos que o pai despertava nela.

Lauren se deu por vencida, sabia que o amigo estava certo.

— Ah, que droga, Gabriel! Por que faço tudo errado?

— Não é tudo, Lauren, só uma boa parte. – Como sempre, Gabriel tentou aliviar a tensão sobre os ombros dela ao fazê-la quase sorrir com o comentário.

Deixaram a cozinha limpa e se despediram enquanto ela o acompanhava até a porta. Após um banho rápido, Lauren sentou-se na beira da cama vagando em pensamentos. Suas mãos praticavam um ritual rotineiro ao dividirem os longos cabelos em dois, deixando as mechas sobre os ombros e desembaraçando assim um lado, depois o outro. A jovem caiu na cama, enterrado o rosto no travesseiro e abraçando-o, não queria pensar em mais nada, não queria lembrar do que acontecera na escola ou da noite em casa. Queria somente deitar e apagar, talvez lembrar dos momentos em sua infância em que era feliz, onde o mundo louco em que somente vivia, parecia não incomodar os adultos ao redor e nem a ela mesma, por alguns segundos, forçou a mente a se lembrar do rosto do seu amigo imaginário, mas tudo o que conseguiu, foram fleches de um sorriso bonito e fios loiros balançando com o vento e nada mais. Em minutos, Lauren dormiu. Sua mente agitada se desligou de tudo e foi sendo levada pela escuridão. O corpo relaxou e se entregou ao prazer da cama, seu último pensamento foi que o dia, enfim, havia acabado.

Ela não se lembrava de como chegou às escadas da

casa nem o porquê de estar ali, ainda vestindo o curto pijama e suas meias. Abriu a porta de casa e saiu. Mesmo sabendo que ainda estava no meio da madrugada, não conseguia se impedir, não conseguia se conter, como se o corpo ouvisse um chamado e sem ter o controle de si, fosse ao encontro dele. Andou pelas ruas do bairro sem ser notada por ninguém, afinal, quem estaria acordado naquele horário? Lauren se viu entrando na igreja local, abrindo as grandes portas de madeira, passando pelo corredor repleto dos longos bancos... Seus olhos reconheciam o lugar, é claro, pois passou toda a infância brincando ali. Suas mãos tocaram o altar no qual a grande bíblia do pai estava sempre aberta. Os dedos deslizaram devagar, folheando o livro com o cuidado que as páginas finas mereciam e, como se soubesse exatamente o que estava procurando, Lauren sentiu as letras arderem sob o toque enquanto sua mente registrava as palavras: Pesado foste na balança e foste achado em falta.

Então tudo aconteceu muito rápido. Uma escuridão engoliu Lauren, era algo pesado, denso, que a sufocava e obrigava a respirar em intervalos curtos, de forma entrecortada. Ela caiu sobre os joelhos, sentindo a dor aguda pela queda, e seu corpo pareceu explodir em um arquejo! Sua cabeça foi lançada para trás, os olhos viraram nas órbitas e as íris se multiplicaram de tamanho até lhes tomarem toda a cor. E ela finalmente ouviu, tão claramente como se a pessoa estivesse ali:

— Minha filha, fruto dos meus mais terríveis sonhos, prova viva das minhas fraquezas, pedaço guardado e protegido, é chegada a hora de se levantar e assumir seu lugar ao meu lado! Inexplicável é o momento em que o bem e o mal deixarão de ser o que todos aqui pensaram. Naiara, filha da Luz da Aurora, gerada por aquele chamado Heylel, prepare-se.

E o silêncio invadiu o ambiente outra vez. O corpo da jovem estava no chão, inconsciente, dolorido, sua mente perdida em meio a uma escuridão devastadora. Lauren não sabia por quanto tempo esteve ali, mas a luz do amanhecer tocou sua face e suas pálpebras se abriram devagar. Ela se permitiu não fazer movimentos bruscos, pois seu corpo ainda doía quando se levantou aos poucos e, vagarosa, caminhou para casa.

Foi para o seu quarto em silêncio, seguindo direto para o banheiro. Ela parou em frente ao espelho e observou-se atentamente. Não havia sinal de pânico em sua face, não havia dúvida ou desespero, mas, para sua surpresa, todos os seus traços, cada linha de expressão, estavam carregados de certeza, convicção. Seus olhos, antes já pretos, haviam assumido uma tonalidade ainda mais escura.

Lauren se despiu, ligou o chuveiro e se deixou ficar parada sob a água quente. Por longos minutos não se moveu, sentindo as juntas relaxarem ao toque da água. Lavou os cabelos minuciosamente, permitindo que cada parte de seu corpo fosse tocado pelo sabonete com perfume de baunilha, o aroma tão familiar tomava o ambiente e misturava--se ao vapor do chuveiro. Quase duas horas depois, Lauren entrava na cozinha vestindo calça jeans, tênis e uma blusa de manga longa preta, que realçava ainda mais sua pele clara. Aproximou-se da mãe que, como de costume, já estava arrumando a mesa para o café da manhã.

— Oh, céus! Lala, me assustou! – disse Anna sem ter notado a entrada silenciosa da filha. – O que faz em pé tão cedo? Não tem aula hoje, querida, esqueceu que é sábado? – Muitas perguntas, Lauren pensou, mas sorriu para a mãe de forma carinhosa e beijou a face dela.

— Não, não me esqueci, apenas não conseguia dormir. Quero andar, vou sair para dar uma volta, mãe – explicou sobre o ombro enquanto seguia em direção à porta.

— Espere, para onde vai a essa hora? Não pode sair sem comer nada, menina! – Mas Lauren não a ouvia, já estava fechando a porta de casa quando ouviu ao longe a mãe gritando ainda mais alto: – Não fique andando sozinha, chame o Gabriel, ele...

Não descobriu o final da frase, pois não acordaria o amigo àquela hora da manhã. Além disso, sentia que naquele momento precisava estar sozinha. Andou pelas ruas sem saber ao certo para onde ir, mas tendo a certeza de que seguia na direção correta. Não andou muito quando, depois de passar pelas ruas, sentiu os pés pisarem em solo macio e úmido. A claridade da manhã estava sendo substituída por sombras escuras e frias. Notou, finalmente, já estar cercada por árvores antigas, de troncos largos e copas altas, os galhos e folhas serviam como uma proteção a fechar o lugar. Lauren não sabia o porquê, só sentia que ali era o lugar onde queria estar. Deixou o corpo cair ao chão, apoiando-se em uma das árvores, e imediatamente o jeans ficou úmido em contato com a grama. A jovem não ligou. Apoiou a parte de trás da cabeça e fechou as pálpebras enquanto respirava devagar, sentindo os pulmões se encherem de ar e o soltarem lentamente.

Poderia passar o dia daquele jeito, simplesmente sentada e respirando, sentindo o cheiro de grama, umidade e... açúcar? Ela abriu os olhos, mais rápido do que pretendia, e foi tomada pela claridade que tentava entrar através dos galhos. Sua vista se encheu de pontos brancos, como estrelas brilhando à sua frente, e Lauren demorou um pouco para conseguir o foco. No decorrer do processo, no entanto, pensou ter visto uma sombra à sua frente, alguém borrado e distorcido. Quando, enfim, sua visão se ajustou, para sua surpresa realmente havia alguém parado diante dela. O susto a fez pular para trás, batendo a cabeça no tronco.

— Quem é você? – Lauren perguntou levando a mão ao lugar no qual batera a cabeça, sabendo que ficaria dolorido.

Olhava para a figura e não conseguia pensar em uma definição para ela. Era uma “menina linda”, isso não havia como negar. Baixa como uma criança de sete anos, com cabelos que pareciam grãos de areia caindo como uma cascata em cachos belos e brilhantes, seus pés descalços tocavam a grama gentilmente. Sobre o corpo usava um vestido rosa que Lauren jurava ser feito de pétalas verdadeiras. Seu olhar encontrou o da menina e, agora, sentia que realmente a via de verdade: os cílios longos e dourados eram enormes e causariam inveja às colegas na escola onde Lauren estudava, a cor de seus olhos era de um verde que lembrava o oceano. A menina sorriu e o gesto gerou covinhas em suas bochechas, completando a descrição perfeita da beleza.

— Sou Élida! – ela respondeu com uma voz melodiosa que parecia entoar os mais belos cantos.

— Prazer, Élida, mas quem é você? – indagou Lauren novamente, dando ênfase à informação que desejava.

— Ah, quer saber quem sou, de onde vim, essas coisas... – O riso da menina ecoou e, como se dando vida ao lugar, pequenas flores desabrocharam ao redor de onde elas estavam. Os olhos de Lauren se maravilhavam com o que viam, suavizando sua expressão desconfiada. – Bem, sou somente a Élida – continuou a pequena à sua frente. – Alguém que você não conhece, mas precisava conhecer. Vim encontrar você.

— Mas... bem... eu não estou perdida.

— Ah, bobinha, não a encontrar dessa forma. – A menina parecia se divertir. – Quis dizer que vim mesmo para lhe conhecer. Conheço seu pai há anos... Não, não... Conheço seu pai há anos e sua mãe há... hum... bem... – Parecia analisar Lauren de cima a baixo. – Você é muito parecida com ele, exceto por esses olhos... Hum... não, os olhos não sei a quem puxou. – As palavras saíam de uma forma fácil, como se Élida estivesse visitando um recém-nascido em uma maternidade e discutindo a origem dos seus traços.

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