À minha frente, um jazigo. Eu costumava gostar de visitar cemitérios quando mais nova. Lá pelos nove anos, assistira ao sepultamento de minha avó. Havia sido um dia triste para toda a família, especialmente para minha mãe; entretanto, eu me sentira inspirada durante toda a manhã.
Enquanto os familiares prestavam suas condolências uns aos outros ou se despediam da senhora no caixão, eu caminhava por entre as lápides, analisando a data de nascimento e de falecimento de cada pessoa sepultada. Fazia as contas, “quantos anos essa moça tinha quando morreu? Será que sofreu? Será que foi de repente? Acreditava em vida após a morte? Tinha posses? Sentiu medo, arrependimento, alívio?”. Quem visitava o cemitério, via a terra para onde todos eram mandados quando seu tempo no mundo expirava. Como criança, eu via personagens. Cada nome entalhado, cada fotografia
Minha saliva era cáustica. Um refluxo com gosto de composto químico subiu até minha garganta, e eu achei que vomitaria.Estava sonolenta, sentada desconfortavelmente. Tentei me mexer e percebi minhas mãos amarradas atrás das costas. Senti couro sintético sob mim. Pequenas gotas de chuva batiam em vidro. Quando finalmente consegui enxergar, notei que o escuro era diferente. Eu estava dentro de um carro, no banco do carona.Olhei ao redor. O banco do motorista estava vazio e a chave não estava na ignição. Era o Range Rover.Havia árvores ao redor, e nenhuma fonte de iluminação. Chuviscava. Eu não sabia se ainda estava perto da fábrica abandonada ou em outra parte da floresta.Lutei contra a vertigem e me curvei para alcançar a maçaneta da porta, usando o tato como recurso. Puxei, mas a porta não se abriu. Então, empurrei meu corpo co
Agora meu grito foi um soluço. Não desviei o olhar um só instante do canivete, enquanto ele percorria o trajeto em câmera lenta em direção ao meu peito.O homem parou diante de mim. A princípio, apenas como se fosse deixar o pânico me devorar um pouco mais antes que ele finalmente fizesse o que pretendia. Mas vi suas duas mãos serem puxadas para trás; ele se abriu como se estivesse sendo pregado numa cruz. Não era à toa: uma segunda silhueta surgia às suas costas, surpreendendo não apenas a mim.Instintivamente, abaixei-me e tentei me esconder atrás de uma árvore. A corda presa não permitiu.O homem encapuzado se virou, e teve seu pulso torcido por quem havia acabado de fazê-lo parar. Reconheci instantaneamente a nova figura. Apesar do escuro, dos cabelos agora curtos e do rosto barbeado, identifiquei Leon.A figura misteriosa o empur
Eu não estava na fábrica. Estava… sonhando?Corda na boca, corda nas mãos. Ao meu redor, a floresta perto da cabana. Como era possível? Eu já havia deixado esse lugar.O homem de capuz e lenço no rosto surgiu à minha frente. Tinha um canivete. Pretendia me machucar. Estava acontecendo de novo.Meu grito, um soluço. A lâmina partiu para meu peito; dessa vez, não apareceu ninguém para impedir que isso acontecesse.A dor era aguda, gelada, visceral.Ele investiu uma segunda vez. E então, uma terceira. Senti o sangue na garganta. Minhas pernas fraquejaram, e eu caí de joelhos.O homem me empurrou de costas ao chão e acertou o canivete uma última vez. Letal.Eu já não respirava. Não mais resmungava. A dor insuportável finalmente partia. Minha visão se enturvou bem quando ele levou a mão ao
— Você não é mais vegetariano? — perguntei.Leon parou, virou-se e abriu um sorriso ao me ver.Já era quinta-feira à noite, dois dias desde o incêndio. Eu havia deixado a rua cheia de curiosos, paramédicos, bombeiros, policiais e — antes que a notícia se espalhasse por outros meios — repórteres do Diário Catedral. Após isso, minha visita ao Hospital Memorial de Santa Alice não havia sido um passeio; eu passara a noite apoiando Leon enquanto não recebíamos novidade sobre Dário. Finalmente fôramos informados de que o homem estava bem, que seria mantido sedado por alguns dias, talvez semanas, e que depois poderia ir para a casa de algum parente. Eu não tivera a chance de conversar sobre nada relevante com Leon.Por isso eu estava ali hoje, no estacionamento atrás do Delícias Fluminenses, que já estava fecha
— Você mentiu para mim — sufoquei. Era como se estivessem comprimindo meu peito.Ele correu até mim e puxou violentamente o frasco.— Mexeu nas minhas coisas?— Você mentiu para mim…Leon tapou o frasco e se aproximou, levando as mãos ao meu rosto.— Natasha, escute…Dei um salto para trás.— Você disse que Natasha parecia feliz com Murilo. Disse que isso incentivou você a superá-la!Agora estava gritando, com os dentes trincados. Não sabia se sentia ira, medo, desapontamento. Talvez raiva de mim mesma. Os últimos minutos de felicidade e prazer se derretiam numa névoa tóxica. Se ele vinha me enganando desde o início, tudo o que dissera ou fizera desde então também podia ser mentira.— É verdade. Eu e Natasha não tínhamos nada — defend
Já era meio da tarde quando acordei de um pesadelo. Não, não havia sido um pesadelo. Eu havia visto outra vez a casa em chamas, mas, dessa vez, Dário não saía dela vivo. Era uma lembrança de outra ramificação. A mesma dor martelava minha cabeça.“Um paradoxo”, concluí, “provoquei mais um paradoxo”.Isso não importava agora. Em breve, estaria acabado. Precisava agir rapidamente.Servi canja para Dário mais uma vez e dei continuidade ao meu plano. Sobre a cama, o notebook mostrava o comprovante de passagem de ônibus. A viagem começaria às 21:00; quando eu chegasse à capital, partiria para o aeroporto e compraria passagem para qualquer lugar: Uruguai, Canadá, Suécia ou sei lá.Glinda me seguia pela casa, sentia minha agitação. Juntei uma quantidade significativa de sucos de caixinha,
Voltei o celular ao ouvido.— Henrique, chame a polícia! — gritei.O homem partiu para cima de mim, puxou o telefone e o lançou para longe.Soltei um berro, saltando para trás e chocando as costas contra a parede.Estudei-o. O cabelo estava muito curto, a barba ainda crescia; tinha a faixa em torno do braço. Era idêntico a Dário. Mas não era ele.Lembrei-me de que, mais cedo, ele se recusara a tomar a canja. Produto animal; o tipo de alimento que Dário normalmente comia, mas não o Dário daquela tarde.— Você não é ele — acusei, juntando as informações. — Ela trouxe você para cá, não trouxe?Leon ainda sorria. Também não era o Leon que me seguira pelo corredor de seu prédio apenas de toalha. Era outro. Da mesma maneira que vinha existindo, esse tempo todo, duas Nat
— Fique longe de mim — murmurei. Comecei a andar.Leon me segurou com força pelo braço.— Espere. Vamos conversar — pediu. — Juro que não escondi mais nada de você. Juro que não vou esconder nada de agora para a frente.Pensei em pegar minha bolsa e sair pela porta. Dizer que ele desse meia-volta toda vez que me visse na rua. Mas seu toque me segurava no lugar; depois de eu ter feito tanto para tê-lo ali comigo, vivo, afastar-me dele seria como perder meu propósito na vida.Olhei em seus olhos.— Não sei…— Natasha, eu amo você. Nunca faria nada para machucá-la. — Eu percebia um tom de sinceridade em suas palavras. E se eu estivesse exagerando? — O que passou, já passou. Só temos o agora.Ele se aproximou ainda mais. Seu toque foi ficando cada vez mais delicado. Senti o cheiro de banho