Agora meu grito foi um soluço. Não desviei o olhar um só instante do canivete, enquanto ele percorria o trajeto em câmera lenta em direção ao meu peito.
O homem parou diante de mim. A princípio, apenas como se fosse deixar o pânico me devorar um pouco mais antes que ele finalmente fizesse o que pretendia. Mas vi suas duas mãos serem puxadas para trás; ele se abriu como se estivesse sendo pregado numa cruz. Não era à toa: uma segunda silhueta surgia às suas costas, surpreendendo não apenas a mim.
Instintivamente, abaixei-me e tentei me esconder atrás de uma árvore. A corda presa não permitiu.
O homem encapuzado se virou, e teve seu pulso torcido por quem havia acabado de fazê-lo parar. Reconheci instantaneamente a nova figura. Apesar do escuro, dos cabelos agora curtos e do rosto barbeado, identifiquei Leon.
A figura misteriosa o empur
Eu não estava na fábrica. Estava… sonhando?Corda na boca, corda nas mãos. Ao meu redor, a floresta perto da cabana. Como era possível? Eu já havia deixado esse lugar.O homem de capuz e lenço no rosto surgiu à minha frente. Tinha um canivete. Pretendia me machucar. Estava acontecendo de novo.Meu grito, um soluço. A lâmina partiu para meu peito; dessa vez, não apareceu ninguém para impedir que isso acontecesse.A dor era aguda, gelada, visceral.Ele investiu uma segunda vez. E então, uma terceira. Senti o sangue na garganta. Minhas pernas fraquejaram, e eu caí de joelhos.O homem me empurrou de costas ao chão e acertou o canivete uma última vez. Letal.Eu já não respirava. Não mais resmungava. A dor insuportável finalmente partia. Minha visão se enturvou bem quando ele levou a mão ao
— Você não é mais vegetariano? — perguntei.Leon parou, virou-se e abriu um sorriso ao me ver.Já era quinta-feira à noite, dois dias desde o incêndio. Eu havia deixado a rua cheia de curiosos, paramédicos, bombeiros, policiais e — antes que a notícia se espalhasse por outros meios — repórteres do Diário Catedral. Após isso, minha visita ao Hospital Memorial de Santa Alice não havia sido um passeio; eu passara a noite apoiando Leon enquanto não recebíamos novidade sobre Dário. Finalmente fôramos informados de que o homem estava bem, que seria mantido sedado por alguns dias, talvez semanas, e que depois poderia ir para a casa de algum parente. Eu não tivera a chance de conversar sobre nada relevante com Leon.Por isso eu estava ali hoje, no estacionamento atrás do Delícias Fluminenses, que já estava fecha
— Você mentiu para mim — sufoquei. Era como se estivessem comprimindo meu peito.Ele correu até mim e puxou violentamente o frasco.— Mexeu nas minhas coisas?— Você mentiu para mim…Leon tapou o frasco e se aproximou, levando as mãos ao meu rosto.— Natasha, escute…Dei um salto para trás.— Você disse que Natasha parecia feliz com Murilo. Disse que isso incentivou você a superá-la!Agora estava gritando, com os dentes trincados. Não sabia se sentia ira, medo, desapontamento. Talvez raiva de mim mesma. Os últimos minutos de felicidade e prazer se derretiam numa névoa tóxica. Se ele vinha me enganando desde o início, tudo o que dissera ou fizera desde então também podia ser mentira.— É verdade. Eu e Natasha não tínhamos nada — defend
Já era meio da tarde quando acordei de um pesadelo. Não, não havia sido um pesadelo. Eu havia visto outra vez a casa em chamas, mas, dessa vez, Dário não saía dela vivo. Era uma lembrança de outra ramificação. A mesma dor martelava minha cabeça.“Um paradoxo”, concluí, “provoquei mais um paradoxo”.Isso não importava agora. Em breve, estaria acabado. Precisava agir rapidamente.Servi canja para Dário mais uma vez e dei continuidade ao meu plano. Sobre a cama, o notebook mostrava o comprovante de passagem de ônibus. A viagem começaria às 21:00; quando eu chegasse à capital, partiria para o aeroporto e compraria passagem para qualquer lugar: Uruguai, Canadá, Suécia ou sei lá.Glinda me seguia pela casa, sentia minha agitação. Juntei uma quantidade significativa de sucos de caixinha,
Voltei o celular ao ouvido.— Henrique, chame a polícia! — gritei.O homem partiu para cima de mim, puxou o telefone e o lançou para longe.Soltei um berro, saltando para trás e chocando as costas contra a parede.Estudei-o. O cabelo estava muito curto, a barba ainda crescia; tinha a faixa em torno do braço. Era idêntico a Dário. Mas não era ele.Lembrei-me de que, mais cedo, ele se recusara a tomar a canja. Produto animal; o tipo de alimento que Dário normalmente comia, mas não o Dário daquela tarde.— Você não é ele — acusei, juntando as informações. — Ela trouxe você para cá, não trouxe?Leon ainda sorria. Também não era o Leon que me seguira pelo corredor de seu prédio apenas de toalha. Era outro. Da mesma maneira que vinha existindo, esse tempo todo, duas Nat
— Fique longe de mim — murmurei. Comecei a andar.Leon me segurou com força pelo braço.— Espere. Vamos conversar — pediu. — Juro que não escondi mais nada de você. Juro que não vou esconder nada de agora para a frente.Pensei em pegar minha bolsa e sair pela porta. Dizer que ele desse meia-volta toda vez que me visse na rua. Mas seu toque me segurava no lugar; depois de eu ter feito tanto para tê-lo ali comigo, vivo, afastar-me dele seria como perder meu propósito na vida.Olhei em seus olhos.— Não sei…— Natasha, eu amo você. Nunca faria nada para machucá-la. — Eu percebia um tom de sinceridade em suas palavras. E se eu estivesse exagerando? — O que passou, já passou. Só temos o agora.Ele se aproximou ainda mais. Seu toque foi ficando cada vez mais delicado. Senti o cheiro de banho
Era como não conseguir despertar de um sono inquieto.Eu sabia onde estava, mas estava em muitos lugares. O tempo era como uma criança, tentando encaixar a peça quadrada no buraco circular — no triangular, no retangular… várias outras formas geométricas, até, finalmente, encontrar o encaixe correto.A discussão na cozinha do apartamento. Giu me olhando com estranhamento no quarto da pensão, após eu sair do banheiro com a blusa molhada e suja de café. O corpo de Eva, suspenso no ar. O gosto podre da corda. O cheiro característico do hospital. Os quadros post mortem no museu. As mãos que apertavam minha garganta. O beijo. As plantas do pomar. A chuva…De novo, mas diferente. De novo e igual.Algo estava finalmente mudando. As peças voltavam a se organizar. Senti meus braços, minhas pernas… mas não meu peso. Estava flut
… do carro.Um estampido agudo torturava meus ouvidos. Algo viscoso e quente escorria do meu nariz.Saiam do carro!— Você está bem? — Leon perguntou ao meu lado. Levantei a cabeça, tonta. Tudo doía. Meu rosto, meus braços, minhas pernas. Olhei pelo para-brisa despedaçado e vi a árvore bem perto de nós. Fumaça cinza-escura saía do motor. Havíamos parado. — Natasha, me responda!— Estou — falei.O estampido ia diminuindo. Eu ouvia choro… o choro de Eva:— Não. Não, não, não, não, não…Saiam agora!Passei a mão pelos cabelos e senti dezenas de fragmentos de vidro presos neles. Olhei pelo retrovisor e vi que os passageiros haviam conseguido se segurar bem. Ninguém parecia machucado; ninguém além de mim.