Você disse vinte e seis graus negativos?

Isabelle 

Chequei o horário mais uma vez para garantir que não me atrasaria. Eu precisava sair de casa em vinte minutos se não quisesse perder o meu voo até Fairbanks, onde Gwen e Zachary estavam vivendo no Alasca pelos últimos anos.

Há três anos, quando meus amigos decidiram deixar Missoula, onde vivíamos na época, eu considerei seriamente pedir um teste de sanidade, mas ao ouvir o quanto eles, principalmente Danny, tinham se adaptado bem à nova vida, eu senti que eles tinham tomado a decisão correta.

Eu sempre falava com eles e com Danny por chamada de vídeo, mas não era a mesma coisa de tê-los ao meu lado. A última vez que os vi foi há quase dois anos, quando eles decidiram vir até Miami ao saber da minha mudança, e apesar de sempre me convidarem para visitá-los, essa era a primeira vez que conseguia uma folga para isso.

Eu fechei a última mala, tendo a certeza que não tinha roupas de frio o suficiente para aguentar o inverno no Alasca, eu teria que comprar algumas peças lá. Com minhas malas em mãos eu fui até a garagem da pequena casa que eu mantinha em Miami com o meu salário como chef.

Antes que eu conseguisse tirar meu carro da garagem meu celular começou a tocar, me fazendo bufar ao ver o número estampado na tela.

— Cora…

— Dempsey, estamos com um problema com os fornecedores — ela começou, sem sequer me desejar bom dia.

— Os fornecedores? — eu franzi o cenho enquanto colocava o cinto de segurança.

— Sim, eu preciso que você…

Precisa? Eu vou embarcar daqui uma hora! Ela enlouqueceu?

— Cora, a não ser que você termine a sua frase com "se divirta muito em suas três semanas de férias no Alasca" eu não quero saber! — eu a cortei.

Aquilo era típico, não podia surgir o menor problema que fosse que ela esperava que eu resolvesse.

— Izzy, você é a chef!

— Não, pelas próximas três semanas Hugo Diaz é o chef, e eu serei apenas uma turista na terra de gelo — eu a corrigi.

Apesar de trabalhar bastante e nem me lembrar da última vez que tirei férias, eu não era o tipo de pessoa viciada em trabalho, apenas contava com um emprego que não me dava muito tempo livre.

— Mas…

— Cora, eu vou embarcar em uma hora, não posso te ajudar!

Eu encerrei a chamada sem me preocupar em esperar uma resposta. Não podia negar que me tornar chef no Le Petit Cuisine havia feito maravilhas para minha carreira, aos vinte e oito anos eu havia alcançado uma posição que muitos passavam a vida lutando. 

Mas em momentos como esse, eu me perguntava se valia a pena. Muitas vezes eu cogitei a possibilidade de pedir demissão e abrir meu próprio restaurante. 

Talvez até um pequeno quiosque à beira mar.

Mas afastei aqueles pensamentos, me focando no curto trajeto até o aeroporto internacional de Miami.

Cerca de meia hora mais tarde, eu liguei para Gwen, já aguardando pelo embarque.

— Por favor, por favor, por favor. Me diz que você não desistiu! — a voz da minha amiga soou ansiosa do outro lado me fazendo rir.

— Eu aposto que ela está ligando pra avisar que ficou presa no trabalho e não vai conseguir vir — Zachary zombou.

Eu não podia culpa-lo por aquele comentário, já que foi exatamente o que aconteceu no último verão, quando eu tinha prometido passar uma semana com eles. Gwen ficou tão chateada com minha atitude que passamos algumas semanas sem nos falar, mas acabamos nos resolvemos e eu prometi que passaria o natal com a família. E eu cumpriria minha promessa.

— Se você esperava que eu desse para trás, vai se decepcionar, Monaghan. Eu embarco em vinte minutos —  avisei.

A animação do outro lado da linha foi palpável, me fazendo sorrir.

— Ahhh eu estou tão feliz, a gente está morrendo de saudades, principalmente o Danny. Ele está tão animado para te ver. 

— Eu também. Mas você não me passou o seu endereço, eu preciso pegar o táxi.

— Nós vamos te buscar, não se preocupe. Que horas você vai pousar? 

Eu pensei em negar aquela oferta, mas eu faria o mesmo por ela. 

— Eu pouso às nove da manhã. Como está o clima aí? Aqui em Miami está fazendo cerca de dezessete graus e eu estou com medo de não ter roupas o suficiente — eu suspirei.

Por um momento, silêncio foi a única resposta que eu obtive, até que Zachary se manifestou.

— A gente arruma alguma coisa para você. Ainda veste o mesmo tamanho?

— Sim…

— Então não se preocupe com isso, nós não vamos deixar você congelar. Até amanhã, Izzy — Gwen garantiu.

Eu estou prestes a embarcar para o alasca em pleno inverno. É oficial, eu perdi meu juízo.

Mas eu não iria voltar atrás. Eu passaria o natal com a minha família, para variar. Ou pelo menos, a família que eu passei a considerar como minha, já que meus próprios pais estavam mais interessados em suas próprias vidas.

A verdade é que Zachary, Gwen e eu éramos apenas desajustados, vindos de lares disfuncionais que acabaram se juntando no ensino médio e nunca mais nos separamos.

Afinal, apesar da distância, o sentimento e consideração continuava o mesmo.

Eu não tinha percebido o quanto sentia falta até aquela ligação. Durante todo o tempo que estive acordada no voo, eu me peguei presa nas lembranças que me esforcei para deixar para trás, enquanto pensava o que me esperava no Alasca.

Um milhão de possibilidades passou pela minha cabeça até que eu pousasse, e nenhuma delas chegou nem perto do que me esperava. Para começar, o céu estava bastante escuro quando pousei, apesar de já passar das nove da manhã, e depois de conseguir minha mala e ir até a área de desembarque, Gwen e Zachary não estavam em lugar nenhum.

Eu olhei em volta praguejando mentalmente, até que uma pequena placa com o meu nome chamou minha atenção.

O homem que a segurava era alto, seu cabelo era curto e cuidadosamente arrepiado, seus olhos castanhos eram intensos e eu me senti corar quando seu olhar se prendeu ao meu e ele veio em minha direção.

Tudo bem, eu posso perdoar aqueles dois por não me recepcionar.

— Izzy? — um sotaque incomum se fez presente na voz daquele desconhecido.

Meu Deus, tem como melhorar?

— Sou eu…

— Gustaf Bergqvist, eu sou amigo do Zachary e da Gwen, eles tiveram um pequeno contratempo, então eu me ofereci para buscá-la.

Ele soltou a placa com uma das mãos, a estendendo para mim em seguida, eu retribui o gesto, vendo minha mão ser totalmente engolida pela dele.

Gustaf, um nome interessante. De que parte da Europa será que ele é?

— Sinto muito por terem te incomodado com isso, se tivessem me avisado eu teria pego um táxi — eu garanti.

— Não foi incomodo nenhum, eu te garanto — Seu olhar não se desprendeu do meu, fazendo com que eu tivesse uma ligeira palpitação.

A viagem com certeza já valeu a pena. 

Foi quando percebi que minha mão continuava entre a dele, enquanto eu o encarava com uma expressão idiota.

— Gwen me avisou que você viria de Miami e pediu para te entregar isso.

Gustaf parece ter notado o mesmo que eu, já que soltou minha mão depressa, se inclinando para pegar duas grandes sacolas no chão.

— Você pode ir até o banheiro se vestir, eu espero.

Quando ele diz que eu posso ir me vestir, ele quer que eu troque toda a minha roupa num banheiro de aeroporto?

— Eu tenho que ir ao banheiro? Não posso só colocar as blusas aqui? — eu fiz uma careta.

— Depende, você está usando algo por baixo da calça? 

Gustaf me mediu, fazendo meu rosto corar imediatamente. Que tipo de pergunta é essa?

— Isso soou totalmente errado — ele fechou os olhos por um momento, parecendo mortificado — o que eu quero saber é se você está usando alguma segunda pele ou meia calça, e se sua bota é forrada.

Tudo bem, olhando dessa maneira não foi uma pergunta tão inconveniente.

— Essa calça é grossa e eu estou com uma bota simples e uma meia, mas eu só tenho que aguentar até chegar no carro, não é? O que pode acontecer? — eu tentei evitar a todo custo a possibilidade de me trocar em uma cabine de banheiro de aeroporto.

Gustaf me avaliou com uma expressão ilegível antes de dar de ombros.

— A escolha é sua, o máximo que pode acontecer é você ter que amputar os dedos dos pés por enfrentar uma temperatura de vinte e seis graus negativos vestida assim.

Ele disse que a temperatura lá fora é de vinte e seis graus negativos? Por que eu não os convenci a ir para Miami? 

— O banheiro fica naquela direção — Gustaf apontou ao ver o choque estampado em meu rosto.

— Obrigada — eu balbuciei, pegando as sacolas de sua mão.

Eu demorei quase meia hora para voltar para o lugar onde Gustaf me esperava com paciência, eu mal conseguia me mover através de tantas camadas de roupa, mas devo confessar que me sentia bem melhor.

— Está pronta? — Gustaf se levantou do banco onde estava sentado, mexendo no celular.

— Sim, espero conseguir manter meus dedos dos pés seguros agora — eu brinquei, recebendo um pequeno sorriso em resposta.

Nós dois passamos a caminhar lado a lado em direção ao estacionamento. Assim que deixamos o aeroporto, eu observei o brilho alaranjado do nascer do sol que se aproximava, mas minha contemplação logo foi interrompida quando uma rajada gelada me atingiu no rosto. 

— Me diz, é sempre assim? — Eu ajeitei o cachecol que usava em volta do pescoço para cobrir parte do meu rosto exposto.

— No inverno o sol geralmente nasce quase às onze da manhã e se põe por volta das três da tarde — ele não precisou de nenhuma explicação adicional para compreender sobre o que eu estava falando.

Eu parei de caminhar, arregalando os olhos diante da informação.

— Você está brincando! Quer dizer que vocês têm apenas quatro horas de luz do sol? — Eu balbuciei.

— No inverno sim. 

Eu fiz uma pequena careta antes de voltar a caminhar. Eu vou passar três semanas quase sem sol!

— Em Miami nós temos no mínimo doze horas por dia — eu choraminguei.

Gustaf alcançou um SUV, abrindo o porta malas para colocar a minha bagagem.

— As coisas aqui são um pouco diferentes de Miami, — ele me avisou.

— Se você não falasse, eu não perceberia diferença nenhuma — ironizei.

Gustaf soltou uma pequena risada, antes de abrir a porta do lado do passageiro, indicando que eu entrasse.

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