Acordo sozinha na cama. Ouço barulho de pessoas conversando na rua e de carros. Por segundos esqueço o que estava fazendo ali, mas logo as lembranças de como fui parar na casa de Manu e o fato de que estou grávida atingem minha realidade. Sinto o desejo de vomitar com essa afirmação, me sento e respiro o mais fundo que consigo, na tentativa de me acalmar e não começar a chorar mais uma vez.

Resolvo descer para a cozinha, mas antes passo no banheiro, escovo os dentes e ajeito meu cabelo. Meus olhos estão fundos e escuros...

— Bom dia, Bela Adormecida — diz tio João assim que me vê. Ele está comendo um pão e tomando seu café. Sorrio em resposta à sua animação.

— Bom dia, tio! — ele sorri — Bom dia, tia! — ela me olha rapidamente.

— Bom dia, anjo! Como está se sentindo hoje?

— Muito enjoada — digo o que teoricamente não é mentira, mas é melhor do que tocar no assunto de ontem — Olha, eu sei que a senhora falou que posso ficar aqui, mas eu não quero atrapalhar, sério mesmo. Posso ligar para minha tia e... — Me assusto quando ela j**a o pano de prato em minha direção.

— Garota boba, eu falei que você pode ficar e você vai ficar. — Olho para ela chocada, e em seguida para o pano caído em meu colo.

— Acredite, se você fosse a Manu, Cida teria tacado a tampa da panela! — diz tio João e eu explodo em gargalhadas.

— Não exagere, homem — diz a mulher, puxando uma cadeira ao lado dele — Olha, Analu... eu tenho você como uma filha e quero proteger você. Falei com João ontem e ele aceitou, não viu problema — o homem concorda com a cabeça — Agora o que não pode ocorrer é eu deixar você sair daqui sem ter para onde ir.

— Eu entendo tia, mas...

— Mas nada. Vamos fazer assim, você fica aqui até se resolver com o pai da criança, pode ser? — bufo em resposta.

— Se for assim, vocês estão prontos para eu morar aqui o resto da minha vida? — tio João sorri, mas tia Cida sabe que isso pode ser sério — Olha tia, eu vou ficar aqui, mas não vejo chance de me resolver com uma pessoa que nem conheço. Eu cometi um erro e vou ter que arcar com as consequências, mas não quero ter nada a ver com aquele homem.

— Ok, seja como for, você tem tempo para pensar em tudo. Pensar no que fazer e como vai lidar com a gravidez.

Ela volta para a pia e o seu marido volta à atenção para o pão em sua frente. Como dizer os dois que, antes de dormir, meu último pensamento foi que o certo a se fazer seria tirar aquele feto de dentro de mim? Nunca pensei que um dia optaria pelo aborto, contudo agora a ideia é bem tentadora.

— Bom dia! — sinto Manu beijando minha cabeça e indo dar um beijo no pai e na mãe. — Acordou bem? — diz já sentada ao meu lado.

Minha resposta é apenas uma careta, não confio na minha voz e nem na minha possibilidade de abrir a boca sem chorar, agora que os pensamentos voltaram a me perturbar.

— Mãe, tia Simone pediu para a senhora ir lá. Diz ela que é urgente... — se é verdade não sei, só sei que tia Cida começa a secar as mãos, brava por precisar sair. Não demora para que o pai da garota também saia para o trabalho, ficamos apenas eu e minha amiga na cozinha, e já sei o que virá.

— Já consegue falar sem chorar? — pergunta.

— Não, mais foda - se. Eu vou tirar esse bebê — se eu tivesse dado um tapa na cabeça de Manuela teria deixado ela menos chocada — Manu, não tem como eu seguir em frente. Fui expulsa, não sei se o chefe vai me querer lá ainda. E tem mais, não vou conseguir sustentar a criança, nem a mim mesma. Não vou dar conta, Manu...

— Na hora de sentar pra dar foi bom, né rapariga? E outra, sozinha nada! Além da gente, a criança tem um pai. Sabe disso, não sabe?

— Não vou falar com ele... — digo e ela respira fundo.

— Olha, Ana. Não me faz te bater logo de manhã, não. O Dan é a melhor pessoa que eu conheço e tenho certeza que ele vai amar a ideia de ser pai — reviro os olhos em resposta.

— Claro que vai... — Digo com ironia e minha amiga perde a paciência.

— Daniel é o pai do bebê que você estar esperando e você tem que contar sim isso para ele! Não seja a infantil! — assim que abro minha boca para responde-la, ouço Luan.

— Puta que pariu, fodeu! — ele grita.

— Merda... — diz Manu olhando para ele

— Não é isso que você está pensando, ok? — Luan abre e fecha a boca várias vezes — Senta! — digo e ele obedece.

— Não venha me tratar igual criança. Eu ouvi, e puta que pariu... Você tá grávida do Dan!

— Luan, me escuta, você não pode contar nada a ele, entendeu? Nunca! — peço.

— Nunca? — os dois perguntam juntos.

— Nunca!

— Então vai criar sozinha a crian... — ele começa a dizer, mas o interrompo.

— Não vou ter essa criança — ao dizer isso Manu respira fundo e Luan levanta com tudo da mesa.

— Tá maluca ou o quê? Fumou pedra, foi?

— Não Luan, não estou maluca! Mas não foi ninguém aqui que perdeu tudo o que tinha, ok? Ninguém perdeu nada. Ninguém ouviu nada do que ouvi! — as lágrimas retornam com força e cubro o rosto.

Sinto as mãos de Manu nas minhas costas alisando-a.

— Desculpe, eu imagino como esteja mal. De verdade, deve ser muito difícil, mas só quero que você veja que não tem só esse lado, Analu. Você precisa ver o outro...

— Tá difícil, muito difícil amiga...

— Só porquê não está sendo fácil para você, você quer desistir? — diz Luan e fico em silêncio — Não te conheço mais... Me procure quando tirar essas ideias da cabeça.

— Não diga nada a ele, é a única coisa que eu peço. Prometo pensar direito, mas não diga nada, Luan.

— Tá ligada que nessas paradas as mulheres podem morrer, né? — fico calada, pois, não havia pensado nisso — Não vou dizer uma só palavra, minha boca é um túmulo, mas pensa... — dito isso, ele sai.

— Você sabe que sou sua amiga, vou sempre proteger você e sempre lhe dizer a verdade e essa é a verdade: você está indo longe demais com esses pensamentos. Sabe que não está certa, contudo, se ainda assim quiser seguir em frente com toda essa ideia sem noção, eu estou com você.

— Obrigada, amo você — nos abraçamos.

Logo em seguida deixo Manu na mesa e subo para seu quarto. Para piorar, ainda preciso trabalhar. Depois do banho me sento na cama e tudo começa a rodar em minha cabeça. Não sei o que fazer, não tenho nada na vida, o pai dessa criança é o chefe do tráfico e meu pai não quer me ver nem com dez malas de dinheiro. Estou basicamente sozinha e perdida na vida, será que vale a pena trazer uma criança a este mundo para sofrer?

Deixo esses pensamentos de lado e visto a roupa do uniforme, amarro meu cabelo e passo maquiagem leve. Tudo que eu quero é sentar e chorar, mas parece que nem isso estou conseguindo fazer agora. Isso é bom, pois posso me atrasar. Pego minhas coisas, contudo paro nas escadas ao ouvir a voz de Luan, Manu e dele.

Daniel está aqui!

— Passei para dar um recado para a tia Cida, minha mãe pediu. Aí encontro Luan na esquina, puto de raiva — vejo quando ele passa a mão no cabelo de Luan.

O garoto é o primeiro a me ver e agradeço mentalmente por não ter dito nada a Daniel.

— Minha mãe foi lá na tia Simone, quer ir lá comigo? — eu sabia o que Manu estava tentando fazer. Ela sabia que não queria ver o rapaz.

— Luiza, que prazer — todo a gratidão que tive por Luan minutos atrás se esvai como chegou — Está se escondendo do Daniel? — os três me olham, me obrigando a descer as escadas.

— Por que eu estaria me escondendo dele? — paro quase em frente a Daniel — Oi, quanto tempo! — sinto o mundo girando conforme tento manter a atuação.

Juro que havia me esquecido do quão Daniel era um homem é bonito. Seus lábios, cabelos, rosto e corpo. Sinto meu coração acelerar assim que ele inclina cabeça e sorri para mim.

— Ana Luíza... — diz, testando meu nome — Faz um tempo que não aparece nos bailes.

— Pois é, o vestibular e o trabalho tomam todo meu tempo — olho de soslaio para Manu — Foi bom ver você, mas preciso ir... trabalhar, sabe — Daniel encara meu uniforme.

— Mudaram a cor! — olho para a roupa, sem entender o comentário, e ele continua — Da última vez que vi era vermelho, o branco ficou mais legal.

Ele lembrava a cor da minha farda? De lado Manu sorri e pisco algumas vezes.

— Sim, ficou mesmo — digo sem jeito.

— Posso te dar uma carona, vou para aquelas áreas — Manuela é mais rápida e responde por mim.

— Você é um amor, Dan. A Analu já está atrasada, seria muito útil. Vamos só pegar a garrafinha d'agua— ele assente e me puxa para a cozinha — Essa é sua chance — minha amiga diz.

— Você tá louca? Não vou contar, e nem vou com ele! — ela me entre a garrafinha e sussurra um "Você consegue, confio em você".

Se ela me jogasse na cova de leões, seria menos complicado. Contudo, quando vejo já estou no carro dele, encarando a janela enquanto saio do morro. Não vou falar com ele, não posso dizer que simplesmente eu estou grávida e pronto. Não, isso não funciona assim e eu ainda nem decidi o que fazer.

— Você está bem? — a voz dele me puxa para a realidade. Olho para ele — Luan me contou que ontem foi buscar você com Manu na sua casa e você estava toda molhada...

— Aquele fofoqueiro safado — ele ri —Mas sim, estou bem. Não foi nada...

— Você não é muito de conversar, né? — lhe dou um sorriso rápido.

— Não.

Talvez eu esteja sendo mal educada, mas não consigo olhar para ele e pensar que é desse homem que espero um bebê. Que é por conta de apenas uma noite com ele, que agora eu espero uma criança... Isso não me desce. Nem percebo quando ele para o carro.

— Bom, chegamos! — concordo.

— Obrigada pela carona e desculpe se incomodei — ele sorri, e que sorriso...

— Imagina. — Ele diz e saio do carro.

Assim que me distancio, ouço sua voz me chamando — Seja qual for o problema, vai resolver, tá? Agora sorria, você tem um sorriso lindo — ele liga o carro e sai.

Não seja educado demais Daniel, isso fode tudo!

***

Uma semana depois.

A semana passa rápido e eu ainda não sei o que fazer. Ainda não tenho contato com meu pai, não sei o que vou fazer com essa criança e não falei com Daniel desde o dia em que deu carona para o trabalho. Até agora estou na casa da Manu, todos aqui me tratam muito bem e realmente me fazem sentir parte da família, contudo minha presença na casa não passa despercebida pela vizinhança.

Todos querem saber o motivo de eu estar aqui, alguns perguntam para tia Cida, outros para Manu, e os boatos rolam soltos. Para aqueles que tem a ousadia de perguntar para minha amiga, recebem uma resposta nada educada.

Subo a ladeira na força do ódio. Estou cansada, minhas pernas doem e minha cabeça também, mas não tiro os fones de ouvido. Já é quase 20h, a rua está calma e quase vazia, o que me traz certa paz. Confesso que aqui é bem bonito e a relação do povo é melhor ainda. São alegres mesmo na dificuldade e não importa a hora, estão sempre sorrindo, pelo menos é assim com a maioria.

Olho para o beco ao lado e vejo Duda, o cara daquela noite. Ele está sentado e fumando alguma coisa, parece não perceber que estou ali, então só sigo meu caminho. Deixo meus pensamentos serem levados pela música, contudo me assusto quando algo toca meu braço.

— Caralho, Duda! — digo ao ver que é ele, e tiro os fones — Não faz mais isso, pelo amor de Deus... — ele ri de lado e sinto o cheiro da maconha.

— Foi mal aí. Eu chamei, mas você não respondeu... — mostro os fones para ele ver — Enfim, o Dan está atrás de você o dia todo, véi.

— Atrás de mim? O que ele quer?

— E eu vou saber? Ele não mandou a real, apenas me colocou aqui e mandou eu ficar de olho se você passasse e quando passasse. Pediu pra te levar direto pra ele.

— Não vou até ele. Acabei de chegar do trabalho, estou cansada e com dor, se ele quer tanto falar comigo, pelo menos espere!

— É melhor trocar as ideias com ele logo. Dan odeia que faça ele esperar e principalmente que não obedeça às ordens dele... — Reviro os olhos em resposta e levanto o dedo em riste.

— Se ele tiver com pressa, sabe onde me encontrar! — Duda não diz mais nada e eu sigo meu caminho.

O que ele quer tanto comigo? Sei que não tem nada a ver com a gravidez já que não tem como ele saber. Enfim, foda - se. Tio João me deu uma chave da casa e por isso vou logo entrando na residência. Assim que coloco os pés para dentro me deparo com Manu e Luan sentados no sofá. Quase de imediato ambos se levantam.

— Você o viu? — Manuela vem em minha direção rapidamente.

— Quem? — pergunto.

— Claro que ela não viu ainda, Manuela. Se não ela estaria apertando meu pescoço agora! — Luan respira fundo e o encaro com seriedade.

— Por que eu apertaria seu pes... — minha mente vai resolvendo tudo aos poucos. Arregalo meus olhos e Luan faz uma defesa com os braços — LUAN EU NÃO ACREDITO! — vou para cima dele e o covarde corre para a cozinha.

— EU VOU MORRER! — ele grita e começa dar a volta na mesa enquanto tento alcança-lo.

— Você contou? Contou para ele? — grito — Mano! — corro com tudo em sua direção, e o mesmo se esconde atrás de Manu.

— Se acalma, Analu. Respira. Você não pode ficar agitada assim — diz ela.

— Um jegão desse se escondendo atrás de tu parece até piada — encaro Luan fixamente — Você não tinha que contar, Luan! Qual é o problema de ficar com a boca fechada, peste ruim?

— Tínhamos bebido e eu soltei sem perceber... — começo a gelar — Só para deixar claro, ele está furioso, Analu...

— Que ódio de você! Sinto vontade de socar tua cara, sério mesmo! Eu quero matar você com minhas próprias mãos — o garoto se abaixa atrás de Manu e fica me olhando por cima do ombro dela — Tenho que sair daqui, agora!

— É melhor mesmo... Deixar ele se acalmar — fuzilo Luan com o olhar — Faça o que achar melhor — ele sorri por fim.

— Pra onde tu vai? —Manu pergunta.

— Pra casa da minha tia. — Pego a bolsa do trabalho e coloco nas costas novamente — Se ele perguntar por mim digam que não sabem, entenderam? — eles concordam — Entendeu mesmo, Luan?

— Sim, prometo — ele cruza os dedos e os beija.

Nossa como eu queria matar esse filho da puta!

Pego o celular e encaro Luan mais uma vez. Ele sorri com minha desgraça e reviro meus olhos com raiva.

— Diz para sua mãe que eu ligo para ela, ok? — Manu assente.

E então abro a porta, mas sou pega de surpresa. Daniel está parado na porta e seu olhar estar diferente. Algo que eu nunca tinha visto. Ele me encara e sinto minha respiração falhar.

— Você não tem nada para me contar, Luíza? — meu peito sobe e desce, a respiração quase nula.

— Fodeu — ouço a voz de Luan — Talvez dê para ela correr pela porta dos fundos — Manu deve ter batido nele, pois o ouço reclamar.

— Vamos conversar, aqui e agora! — Daniel entra e eu dou um passo para trás.

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